domingo, 15 de novembro de 2015

Amo como o amor ama, Fernando Pessoa



Fernando Pessoa conheceu a impossibilidade do amor mas viveu-o no papel, “de todas as formas possíveis e imaginárias”. O romantismo confessado em “cartas de amor ridículas” a Ophélia, o seu “bebé pequenininho”, terá ficado platónico. A imagem de um Pessoa apaixonado, sedutor, dilui-se no retrato oficial do homem quase sempre vestido de escuro, de chapéu ligeiramente amachucado, óculos redondos de lentes grossas, reservado, tímido e solitário.
Magazine Cultural, Filbox produções, 2014.



Fernando Pessoa

MARIA: Amo como o amor ama.

                MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
Se te vejo não sei quem sou; eu amo.
Se me faltas, (...)
Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas
Quando deves amar-me. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
O Alguém pra te falar de quem tu amas.
Diz-me porque é que o amor te faz ser triste?
Canso-te? Posso eu cansar-te se amas?
Ninguém no mundo amou como tu amas.
Sinto que me amas, mas que a nada amas,
E não sei compreender isto que sinto.
Dize-me qualquer palavra mais sentida
Que essas palavras que, como se as perderas,
                                                               buscas
E encontras cinzas.
Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não o fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro,
E com essas alegrias e esse prazer
Eu viria depois a amar-te. Quando,
Criança, eu, se brincava a ter marido,
Me faltava crescer e o não sentia,
O que me satisfazia eras já tu,
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma estrada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
Tens um segredo? Dize-mo, que eu sei tudo
De ti, quando m'o digas com a alma.
Em palavras estranhas que m'o fales,
Eu compreenderei só porque te amo.
Se o teu segredo é triste, eu saberei
Chorar contigo até que o esqueças todo.
Se o não podes dizer, dize que me amas,
E eu sentirei sem qu'rer o teu segredo.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já hoje, mas de longe,
Como as coisas se podem ver de longe,
E ser-se feliz só por se pensar
Em chegar onde ainda se não chega.
Amor, diz qualquer coisa que eu te sinta!
                FAUSTO:
Compreendo-te tanto que não sinto.
Oh coração exterior ao meu!
Fatalidade filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
                MARIA:
Para que queres compreender
Se dizes qu'rer sentir?
s.d.
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
  - 99.
1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.126).





Fernando Pessoa

Amei-te e por te amar

Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...
Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...
Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.
Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...
Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.
Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...
Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...
Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar
Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?
Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual
A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.
Em que és [...J fictício,
Em que tempo parado
Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...
[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo
Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...
Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…
Horas de inquieta calma!
E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim
Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…
Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho
Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?
Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.
Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...
Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...
Mas não sei que passou
Por nós e acordou...
Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?
Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.
Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...
Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?
Talvez sintas como eu
E não saibas sentil-o...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobril-o,
Hoje que te deixei
É que sei que te amei...
Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...
Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...
Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,
Nada será perdido...
E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.
2-12-1913
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
  - 11.



Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...
Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!
Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
1928
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). 
 - 92.


Bernardo Soares

Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral...

L. do D.
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o relevo intelectual não sejam de pigmeu ou de charro, ama, quando ama, com o amor romântico. O amor romântico é um produto extremo de séculos sobre séculos de influência cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à sequência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a quem não o perceba comparando-o com uma veste, ou traje, que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes cabe.
Mas todo o traje, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e em breve, sob a veste do ideal que formámos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 267.
"Fase confessional", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.


Bernardo Soares

ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO

L. do D.
ESTÉTICA DO ARTIFÍCIO
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir é — crede-me bem — para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas — onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, unificando os meus sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa. Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma lógica soberba, séria, seria tudo segundo um ritmo de voluptuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha alma, perdida até [o] cais à beira de um comboio calmo, muito longe dentro de mim, muito longe... E tudo nítido, inevitável, como na vida exterior, mas, estética de Morte do Sol.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 204.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.



Bernardo Soares

Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras...

L. do D.
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras (...)
Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas — és momentos, atitudes, espiritualizadas em minha(s).
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne não é
espiritual mas é espiritualidade (És a mulher anterior à Queda) […]
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem (...) têm de suportar o peso movediço de um homem — quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula... Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido? Que nojo de nós não punge a ideia da origem carnal da nossa alma — daquele inquieto (...) corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia de origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à ideia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol, possuídos em ti!
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite-Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiarae o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja pó? Janela no teu quarto que importa que eu seja espaço? Hora (...) na tua clepsidra que importa que eu passe se por ser teu ficarei, que eu morra se por ser teu não morrer, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, seguidora [?] de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua (...) me adormeça, que o teu mero ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgo-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da guarda dos abandonados, Paisagem humana — irreal [?] de triste e eterna Perfeição.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.I. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.
  - 256.
"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

http://arquivopessoa.net/

 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

 

sábado, 24 de outubro de 2015

Antipoemas de Daniel de Sá











Na próxima terça-feira, dia 27, pelas 19h30, vai decorrer na livraria Solmar uma sessão de apresentação de um livro que tem por tema aquele que, histórica e factualmente, é o primeiro livro de Daniel de SáEm Nome do Povo. Amem. O livro a apresentar tem como título Prós sem Contra traduzindo, de alguma forma, com cambiantes várias, o pensamento expresso nos textos de três autores diferentes que dão a sua opinião sobre o livro - Luiz Fagundes Duarte, Sidónio Bettencourt e quem assina estas linhas.
Em relação ao livro do Daniel – Em Nome do Povo. Amem – as considerações de maior interesse com que se pode abordar este livro podem reduzir-se a três.
Em primeiro lugar, não é, não pretendeu ser nunca, um livro de poesia, mas de antipoesia. O seu subtítulo di-lo expressamente   Antipoemas e outras palavras. E coerentemente com isto, em todo o livro, Daniel só usará por duas vezes a palavra poesia, mas sempre no sentido de a menorizar. Numa das vezes, para contrapô-la à prosa nos seguintes termos: “Porque a prosa é a arquitectura e a poesia é o ornato”. E carregará na minimização apodando-a do “belo superficial das coisas essenciais”. Doutra vez, para ironizar com os chavões desse simples ornato que é a poesia. Dirá num parêntese, que isolará o termo do restante texto, como para não o contaminar:
(Na poesia, quando há olhos
E alma,
Há quase sempre abrolhos
E calma).
É de salientar que esta consideração pejorativa desse artifício verbal, deste convencional e estereotipado jogo de consonâncias e rimas será precisamente um dos aspectos fulcrais realçado pela corrente da Antipoesia, nomeadamente do seu principal corifeu – o chileno Nicanor Parra.
Ainda com a mesma coerência, o livro não se compõe de poemas, mas de “Textos” que Daniel cataloga com a aridez pouco poética do número, contabilizando-os tabelionicamente de I a XXV.
A segunda observação a fazer deriva da anterior. Esta detinha-se na forma que assumia nos seus cultores a poesia tradicional. A poesia, segundo Parra tinha de libertar-se dos formalismos useiros e vezeiros da poética tradicional, porque ela já não correspondia às exigências de um mundo, em que a relação com a natureza, como objecto de contemplação, mais ou menos lírico, e a relação com a sociedade se transformara de um mundo de certeza e certezas e de ordem, num mundo de inquietação, dúvida e angústia . E esse mundo, nesta nova desarmonia, reclamava não o lirismo subjectivista, mas o pessimismo, o cepticismo e a crítica sarcástica. Em resumo, a alteração formal pretendia responder às novas exigências de uma alteração de fundo. Este fenómeno de rotura e mudança radical, no caso do Em Nome do Povo. Amem, não será ao nível da relação com a natureza, mas com a história e os acontecimentos dos tempos de então que Daniel vivia no seu quotidiano e revivia nos seus “textos”. A rotura será o abalo social e político do “25 de Abril” que exigia também outras formas de abordagem da sociedade e dos acontecimentos. Com este livro, Daniel traduz as etapas de uma ruptura social e política que assumiu, inicialmente, a magia de todas as mudanças radicais num contexto adverso e contraditório. Penso que poucos autores, em Portugal, terão traduzido como Daniel com vestes de antipoesia, ou mesmo de poesia, as vicissitudes, as contingências, a ambivalência, os avanços e recuos do chamado “PREC” e de todas as transformações ansiadas e sonhadas no 25 de Abril.
Todo o livro capta em cheio este sinuoso contexto e percurso sequente ao 25 de Abril de 74.
Apenas um exemplo a ilustrar o que fica dito:
“Achou-se que era velho demais um velho Estado Novo
E descobriu-se que um estado é a voz do povo.
E houve a sublime certeza
De que é o povo quem manda,
Sem clero nem nobreza.
Mas é com estes ainda que tudo anda”.
Finalmente, o terceiro aspecto. Trata-se de um livro que o Daniel retirou da sua bibliografia. Não creio que o tenha renegado, mas sem dúvida que o enjeitou.
Que alcance e significado se deve retirar desse facto? Em primeiro lugar, enquadrá-lo nos numerosíssimos exemplos de rejeições das suas Juvenílias ou primeiras obras por muitos autores. Desde Virgílio, que tentou queimar a Eneida por duas vezes, até autores que, em alguns casos, já depois de publicada a obra, tentarão fazê-la desaparecer, como Nathaniel Hawthorne, celebrado autor do século XIX com a sua Letra Escarlate, ou ainda como Vitorino Nemésio que “enjeitou” a sua obra de estreia. Em segundo lugar, que, na sua maturidade, e depois da sua evolução até à plena posse de todos os seus recursos de conteúdo e expressão, muitos autores tendem a condenar ao limbo obras de estreia que a seus olhos apenas sobressaem pelas insuficiências ou imperfeições.

Dionísio Sousa, 22.10.2015 (23h41).
“Daniel de Sá - o único grande nome da antipoesia na literatura açoriana”,
Correio dos Açores, Ano 96, n.º 30766, 2015-10-24








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O homem que escreveu uma carta de amor auma ilha”, Azorean Spirit Magazine – SATA Magazine n.º 58, 20 outubro / 20 dezembro 2013.

Verbete “Sá, Daniel Augusto Raposo de”, Enciclopédia Açoriana [em linha].



          

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

SOPA DE PEDRA


Ilustrações de Paula Rego para Sopa de Pedra, Texto de Cas Willing. Porto Editora, 2015



SOPA DE PEDRA

Um escrevia o nome da mulher amada com letras de macarrão
Enquanto a sopa esfriava no prato.
Outro era metade solidão e metade multidão.
Estou de olho neles.
Um andava com a espada sangrenta na mão.
Outro fingia que sentia o que de verdade sentia.
Este dizia que não cabe no poema o preço do feijão.
Estou de olho neles.
Este vê a vida como origem da sua inspiração,
A vida que é comer, defecar e morrer.
Todo poeta é maluco.
Estou de olho neles.
E também tem que ser maluco o pintor
E o músico e o prosador.
A loucura é muito boa
Para todo o criador.
Mesmo para os cozinheiros
Ou qualquer inventor.
Estou de olho neles.
É melhor ser capenga do que cego.
A poesia é uma sopa de pedra.
Cabe tudo dentro dela.

Rubem Fonseca, Amálgama.
Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2013
.


 

O CALDO DE PEDRA

 

       Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:

       – Vou ver se faço um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiulhe a terra e pôsse a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôsse a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:

       – Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.

       Responderamlhe:

       – Sempre queremos ver isso.

       Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:

       – Se me emprestassem aí um pucarinho…

       Deramlhe uma panela de barro. Ele encheua de água e deitoulhe a pedra dentro.

       – Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas…

       Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:

       – Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor…

       Foramlhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:

       – Está um bocadinho insonso, bem precisa de uma pedrinha de sal.

       Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:

       – Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.

       A dona da casa foi à horta e trouxelhe duas couves tenras. O frade limpouas e ripouas com os dedos, deitando as folhas na panela.

       Quando os olhos já estavam aferventados, disse o frade:

       – Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça…

       Trouxeramlhe um pedaço de chouriço; ele botouo na panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjouse para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela, ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntoulhe:

       – Oh senhor frade, então a pedra?

       Respondeu o frade:

       – A pedra, lavoa e levoa comigo para outra vez.

       E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

 

BRAGA, Teófilo – “O caldo de pedra”. In Contos Tradicionais do Povo Português (uma seleção), Porto Editora, 2015, pp. 4546.

 

 

UMA SOPINHA PARA O CAMINHO

Se o frade alguma vez existiu por aqui, ninguém sabe. Mas a história da sopa da pedra era boa e vinha mesmo a calhar para a sopa que José Manuel "Toucinho" inventou nos anos 60. Hoje a sopa faz mexer a economia de Almeirim.

Na realidade esta sopa da pedra tem duas histórias - a lenda, e a história real. A lenda é conhecida de todos. Havia um frade espertalhão que para conseguir comida chegava a casa dos aldeões e garantia que conseguia fazer uma sopa deliciosa só com uma pedra. Os que o recebiam, ansiosos por perceber como é que isso era possível, iam acedendo aos pedidos dele - "Se agora me dessem só um dentezinho de alho é que isto ficava delicioso", "Está quase pronta, mas com um bocadinho de toucinho...", "E umas folhitas de couve." E por aí fora, até a panela estar cheia de coisas boas e a sopa estar deliciosa, com a pedra no fundo e tudo o resto que o frade tinha conseguido que lhe dessem.

A outra história, a real, nasce aqui neste restaurante, que começou por ser uma mercearia, fundada por José Manuel "Toucinho" e pela mulher, Maria Manuela Aranha. "Para receber os viajantes, e para ser mais rápido dar o jantar, os proprietários faziam esta sopa", conta João Paulo Simões. "E o número de viajantes foi aumentando." A fama da sopa começava a espalhar-se. "Alguém terá dito que era tão pesada que parecia as pedras da calçada." Foi então que se lembraram da lenda do frade e começaram a chamar-lhe "sopa da pedra".

Alexandra Prado Coelho, https://www.publico.pt/2011/08/08/jornal/uma-sopinha--para-o-caminho-22619383 (com supressões)


Ilustrações de Paula Rego para Sopa de PedraTexto de Cas Willing. Porto Editora, 2015



A pintora portuguesa de 80 anos juntou-se à sua filha Cas Willing e reinventaram este conto popular

        A história corria mais ou menos assim: era uma vez um frade que andava a pedir esmola para poder ter alguma coisinha para comer. Os aldeões eram todos uns mãos-de-vaca e ninguém lhe dava tostão. O frade espertalhão pegou numa pedra e, perante os olhares curiosos, preparou-se para ferver água só com o seixo lá dentro. “Bom, bom era com um bocado de sal.” E trouxeram-lhe sal. “Bom, bom era com um bocado de azeite.” E trouxeram-lhe azeite. 

A lengalenga segue por aí fora até haver no tacho do frade cebolas, cenouras e até um chouriço. No fim do repasto, com a panela vazia, a pedra é lavada e guardada no bolso do religioso. Como assim?, perguntam os aldeões, indignados. “Guardo-a para a próxima vez que tiver fome.”
Com mais ou menos ponto acrescentado por quem conta este conto, esta história popular portuguesa tem seguido sempre pelo mesmo caminho. Até chegar às mãos da família de Paula Rego. A pintora de 80 anos que vive em Londres juntou-se à sua filha, Cas Willing, e juntas deram nova roupagem à história. 
Em vez do frade, a protagonista passa a ser agora uma rapariga de vestido vermelho e os aldeões conseguem ser ainda mais vis do que no conto tradicional. Também há um pai que acaba por (spoiler alert) morrer de fome e, uma vez na cozinha, a miúda de vestido vermelho, para além da sopa, também sabe fazer o melhor arroz de pedra do reino. E pelo estômago conquista os sacanas da aldeia. Se a filha Cas tornou as esquinas da história mais contemporâneas, a mãe juntou-lhe o seu traço inconfundível e criou 14 pinturas inéditas que, por si só, já são uma narrativa. Tudo junto, o livro torna-se uma pequena obra de arte, capaz de distrair miúdos na hora de ir para a cama, mas igualmente capaz de enriquecer a prateleira de um coleccionador de livros de arte. 

QUEM SAI AOS SEUS Sobre Paula Rego, há pouco de novo a dizer, já que é um dos nomes grandes da arte europeia e a sua obra já ultrapassou há muito as fronteiras de Portugal. Mas Cas Willing é outra história e o exemplo vivo de que filho de peixe sabe nadar. 
Cas, hoje casada e com duas filhas, nasceu em Londres, fruto do casamento de Paula Rego com o pintor britânico Victor Willing. A escrita para crianças não é novidade para si, tendo já trabalhado em vários argumentos e produzido histórias infantis para a televisão. Uma das séries mais emblemáticas em que participou, “Little Princess”, continua no ar no Reino Unido, no Channel 5, nove anos depois da estreia. Antes disso, e já com um mestrado em Artes no Royal College of Art, trabalhou na indústria cinematográfica como designer e marionetista. No filme “O Cristal Encantado”, de Jim Henson (o criador dos Marretas), Cas fez parte da equipa que criou e produziu os skeksis, a raça de vilões da película. E em “Sonhos de Criança”, o filme que retrata a relação de Lewis Carroll (“Alice no País das Maravilhas”) com Alice Liddell, fez parte da equipa que controlava os cabos que davam vida ao Chapeleiro Louco e às outras personagens do conto infantil.


Ana Kotowicz, 23/10/2015
http://www.ionline.pt/artigo/418465/uma-sopa-de-pedra-feita-em-casa-de-paula-rego?seccao=Mais_i















Paula Rego: os contos tradicionais “mostram a natureza humana como ela”


Numa entrevista à agência Lusa, Paula Rego e a filha, Cas Willing, explicaram como foi o processo de recriar a história "Sopa da Pedra", que as duas publicaram em conjunto.

REMY-PIERRE RIBIERE/LUSA
A pintora Paula Rego acredita que as histórias tradicionais são muito importantes para descobrir o mundo e quem somos, e coloca as fábulas portuguesas entre as “melhores de todas”, porque “mostram a natureza humana como ela é”.
“Sopa de Pedra” foi uma dessas histórias tradicionais que recentemente fascinou a pintora, levando-a a criar ilustrações e a pedir a colaboração da filha, Cas Willing, para escrever o texto do livro lançado este mês em Portugal pela Porto Editora.
Numa entrevista à agência Lusa, por correio eletrónico, a pintora e a filha explicaram como foi o processo de recriar uma história – da qual existem versões em vários países – que mantém o enredo principal, mas muda o protagonista.
Na versão tradicional portuguesa, um frade consegue convencer um camponês de que é capaz de fazer uma sopa apenas com uma pedra, mas vai-lhe pedindo ingredientes para dar mais sabor ao caldo.
“‘A Sopa de Pedra’ é uma história universal. Há muitas versões. Em Portugal, o trapaceiro é um frade, mas, em França, é um grupo de soldados e, na Escandinávia, é um mendigo”, observou Paula Rego, artista portuguesa radicada em Londres desde os anos 1970.
Nesta versão ilustrada pela pintora, o frade é substituído por uma jovem que tem de ser muito persistente e perspicaz para sobreviver em tempos difíceis.
Escolher uma jovem para o centro da história tem razões óbvias para Paula Rego: “O mais importante é que o protagonista tem muita fome. Não são só os homens que têm muita fome, as mulheres também. E uma jovem sozinha é muito mais vulnerável”.
Cas Willing – filha de Paula Rego e do artista britânico Victor Willing (1928-1988) — acompanha sobretudo a área da gestão e questões empresariais do trabalho da mãe, assim como a atividade da Casa das Histórias, em Cascais, inaugurada em 2009.
Pela primeira vez, com este livro, fizeram algo juntas ao nível criativo: “Quando tinha nove anos, bordei uma cabeça numa tapeçaria da minha mãe. Acho que foi a última vez que a ajudei num trabalho. Eu nem sequer faço de modelo para as pinturas dela”, disse à Lusa.
Para criar “Sopa de Pedra”, Cas explicou que se sentiu uma espécie de “detetive”. Paula Rego – que completou 80 anos em janeiro – mostrou à filha uns desenhos que dizia serem basicamente a história da sopa de pedra e precisava de um texto para acompanhar, na esperança de que fosse publicada.
“Ela foi muito persuasora e persistente, e, finalmente, eu disse que tentaria. Mas se não conseguisse um resultado ao fim de uma semana, ela teria de procurar outra pessoa”, relatou à Lusa a autora, que tem criado argumentos e produção de programas infantis para a televisão, entre eles “Little Princess”, série exibida no Reino Unido.
A primeira vez que olhou para os desenhos sentiu-se um pouco perdida: “Não percebi do que se tratava. Vi burros alados, casais a discutir e uma rapariga a cozinhar algo numa panela”.
“Espalhei os desenhos no chão e olhei para as imagens como se fossem um ‘story board’ para um filme ou um livro de banda desenhada. Reordenei-os, até sentir que tinha criado uma história visual com um início, meio e fim”, descreveu.
Através da leitura das imagens, e tendo como referência a “Sopa de Pedra”, a autora foi imaginando uma narrativa: um homem que parecia doente passou a ser o pai impossibilitado de sustentar a família; a jovem que, por vezes, aparecia com um vestido vermelho demasiado largo, passou a ser a protagonista, que usava as roupas da mãe já falecida.
Nesta construção – que diz ter sido um processo “interessante e divertido” – também incluiu memórias mútuas em Portugal, da vida de camponeses, em aldeias junto ao mar, e da história da própria família, como o pai doente, e decidiu ainda incluir questões ligadas às mulheres, por a protagonista ser uma rapariga.
“Não basta ter um sorriso doce e ser bonita. É preciso ser-se bom a fazer alguma coisa e ser persistente. Não há um príncipe que apareça para a salvar. Ela vai ter de continuar a trabalhar para ter comida”, salienta a autora.
Para Cas Willing, em resposta às questões colocadas pela Lusa, esta história da sopa de pedra “não acaba com uma moral, mas com a ideia de que a partilha beneficia todos”.
Para Paula Rego, é enorme a importância dos contos tradicionais, sobretudo os mais antigos, porque são “os mais verdadeiros”.
“Mostram a natureza humana como ela é, sem terem sido corrompidos com a ideia de ‘como deve ser’ ou qualquer sentimentalismo. As pessoas acham que as crianças devem ser protegidas da crueldade que há nestas histórias, mas elas não se importam. Gostam porque as compreendem muito bem”, sustenta a pintora.
“Por isso dei ao museu de Cascais o nome Casa das Histórias”.
Texto: Agência Lusa, http://observador.pt/2015/10/29/paula-rego-os-contos-tradicionais-mostram-a-natureza-humana-como-ela/  29/10/2015

sábado, 17 de outubro de 2015

“no help for that” by Charles Bukowski



there is a place in the heart that
will never be filled
a space
and even during the
best moments
and
the greatest times
times
we will know it
we will know it
more than
ever
there is a place in the heart that
will never be filled
and
we will wait
and
wait

in that space.

sábado, 3 de outubro de 2015

LAMURIAS D'UM ELEITOR (José Augusto da Costa Resende)





LAMURIAS D'UM ELEITOR


Muito embora não rufe o tambor,
Nem se ponha a troar o canhão,
Ai que vida a d'um pobre eleitor,
Quando perto vem uma eleição!

Não se sente soar os clarins,
Nem tão pouco rugir a metralha,
Mas vagueiam intrujões galopins,
E se fere renhida batalha!

Não há fumo, nem fogo, nem balas,
Nem há scenas de fera carnagem,
Mas não faltam mentiras nem palas,
Nem proezas de reles coragem!

Não há sangue a correr das feridas,
Não há gritos nem berros crueis,
Mas há pratos de favas cosidas,
E bom vinho a correr dos toneis!

Um aqui se propõe deputado,
Outro ali deputado quer ser,
Cada qual a puxar p'ra seu lado
E mil lerias cantando a valer!

D'esta banda recebe elogios,
D'aquella outra lhe dão pateada;
Aqui diz-se ter tino e ter brios,
Ali diz-se não presta p'ra nada !

Um a patria propõe-se salvar,
Outro quer a nação defender;
Mas em regra (o que cumpre notar)
A mór parte o que quer é comer!

Vê-se em pancas um pobre eleitor,
E mettido no meio de dois fogos,
Sem saber do seu voto dispor,
Tantos são os pedidos e rogos!

Dependente e não q'rendo mal q'renças
E temendo o furor dos mandões,
Põe de parte principios e crenças.
E lá vota c'os taes figurões!


José Augusto da Costa Resende,  Rimas Humoristicas e Satiricas. 
Ponta Delgada, Edição do autor, 1892.


José Augusto da Costa Rezende (1849-1896), jornalista, poeta satírico, natural de Ponta Delgada, aí residiu, trabalhou e veio a falecer. Teve como pseudónimo: Aníbal Metralha.