segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Consanguinidade entre a música e a alma

O mais íntimo tutano da alma


Jan Kupecký - O Pintor David Hoyer (1716) 
Uma expressão que sempre me fascinou desde que a encontrei pela primeira vez no v. 255 do Hipólito de Eurípides é “o mais íntimo tutano da alma”. Fascinou-me, acima de tudo, a ideia expressa nessa tragédia grega de que tal zona da alma é vulnerável a sensações neurológicas como o amor. A reflexão feita pela Ama de Fedra, na referida peça, é que quando o amor atinge o mais íntimo tutano da alma, o que daí resulta é perigoso.
No entanto, há outra coisa que, além do amor, é capaz de atingir em cheio o mais íntimo tutano da alma: a música. E esta também acarreta perigos que podem prejudicar a alma, tanto mais porque há uma espécie de consanguinidade entre a música e a alma, como se ambas partilhassem da mesma essência. Por isso, a alma é ainda mais receptiva – e vulnerável – à música do que ao amor.

Na verdade, já os Pitagóricos na Grécia entendiam a alma em termos de harmonia musical e, se relermos o Livro III da República de Platão, encontramos afirmações que confirmam a ideia de que os Gregos já tinham plena noção de como somos profundamente afectados pelo efeito da música. A conversa naquele livro da grande obra platónica gira em torno dos modos musicais: há modos que nos deixam tristes, outros que incentivam a moleza, outros que nos tornam efeminados, pelo que não podem ser utilizados nos cantos guerreiros.
Platão também não parece aceitar assim sem mais nem menos todos os instrumentos musicais: os que poderão ser utilizados na Cidade por si idealizada são os de corda dedilhada: a lira, a cítara, etc. (Devo dizer que, como cravista, fico aliviado pelos instrumentos de corda dedilhada escaparem ao opróbrio platónico, já que o cravo é um instrumento em que as cordas são beliscadas e não percutidas, como no caso do piano.)
Pondo agora de parte o meu preconceito positivo em relação a liras, harpas, alaúdes e cravos, pergunto-me muitas vezes sobre o que acontece ao tutano mais íntimo da alma quando somos expostos a certo tipo de música. Penso nas três vezes que tive oportunidade de ouvir ao vivo a “Paixão segundo São Mateus” de Bach. É difícil descrever o efeito que esta obra, ouvida integralmente ao vivo, exerce sobre o tutano mais íntimo da alma; mas em qualquer um dos casos, saí do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian com a sensação de o efeito da obra em mim ter sido de me transformar numa pessoa completamente diferente. Claro que, fisicamente, eu era a mesma pessoa, tão gordo ou tão magro quando era no momento em que começou o concerto. A minha alma é que se tornara diferente. O seu mais íntimo tutano tinha sido atingido.
Frederico Lourenço, Facebook, 21-11-2016.

MUSICOTERAPIA
A música na Antiguidade Grega era considerada a Arte das Musas, sendo uma forma de revelação divina, e se demonstrava importante para harmonização do corpo e da mente (TYSON, 1981). Segundo Podolsky (1954), Platão acreditava que a saúde mental e física poderia ser obtida através da música. Os gregos entendiam que a música possuía um Ethos, ou seja, ela podia criar determinados estados de ânimo. Eles consideravam dever do Estado regular a música para estimular o crescimento moral e ético dos cidadãos (TYSON, 1981). A crença da música como um estimulador da mente, e em seu poder profilático é tida por Tyson como um dos primeiros princípios relacionados à música como terapia. Na mitologia grega há diversos exemplos da música sendo utilizada como elemento curativo. Porém, o primeiro uso da música como uma modalidade terapêutica, segundo Podolsky (1954), vem dos gregos Zenocrates, Sarpender e Arion, que utilizavam a harpa para diminuir surtos violentos de pessoas com mania, evitando o uso do método mais comum, o da força física. […]
O médico Robert Burton (1577-1640) foi um dos primeiros a escrever a respeito dos efeitos da música em tratamentos médicos, especialmente da melancolia. Em sua obra “Anatomia da Melancolia” – publicada em 1621, Burton (1961/2012) descreve os efeitos terapêuticos da música, discorrendo sobre as possibilidades da música extenuar medos e fúrias, e do uso da música como cura de “aborrecimentos da alma”. Com relação à melancolia ele colocava que a música podia alegrar o melancólico e reavivar sua alma, mas também advertia quanto aos malefícios e doenças que podem ser “geradas pela música”.
No fim do século XVIII começam a ser estudados os efeitos fisiológicos da música (TYSON, 1981; COSTA, 1989). A partir do advento do Empirismo, buscavam-se terapias no fazer psiquiátrico que atingissem o sistema sensorial dos internos. A música, assim, possuía um lugar privilegiado nas pesquisas da época (COSTA, 1989). As pesquisas desenvolvidas nesse período abordavam os efeitos dos sons no sistema sensorial humano. Eram utilizados os elementos da música (ritmo, melodia, harmonia) para verificar as influências fisiológicas da música e seu impacto sobre os sentimentos do homem (TYSON, 1981).
Ler mais: “A História da musicoterapia na psiquiatria e na saúde mental: dos usos terapêuticos da música à musicoterapia”, Mariana Cardoso Puchivailo e Adriano Furtado Holanda. Revista Brasileira de Musicoterapia Ano XVI n° 16 ANO 2014. p. 122-142.


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sábado, 19 de novembro de 2016

O poema tem mais pressa que o romance






ARREPENDO-ME DE A METER NUM ROMANCE

O poema tem mais pressa que o romance,
Asa de fogo para te levar:
Assim, pois, se houver lama que te lance
Ao corpo quente algum, hei de chorar.

Deus fez o poeta por que não descanse
No golfo do destino e amores no mar:
Vem um, de onda, cobri-la — e ela que dance!
Vem outro — e faz menção de me enfeitar.

Os outros a conspurcam, mas é minha!
Chicoteá-la vou com a própria espinha,
Estreitam-me de amor seus braços mornos,

Transformo seus gemidos em meus uivos
E torno anéis dos seus cabelos ruivos
Na raspa canelada dos meus cornos.

      A poética vitoriana, percebida na estrutura do soneto “Arrependo-me de a Meter num Romance”, aborda como filão temático a magnitude do fazer poético, concebida de forma totalizante, um ato de entrega entre o poeta e a poesia.
      O título do poema, por si, já traz um ar de enigma. O eu lírico lamenta um ato cometido contra determinado ser, cuja identificação torna-se oculta, camuflada pelo demonstrativo “a”. Sabe-se que esse ser sofrera uma imposição do sujeito poético: fora encerrado (metido) com brutalidade num romance. Numa primeira visão, pode-se perceber que o título trata de uma desilusão num relacionamento amoroso e que o ser em questão seria uma mulher, obrigada a comprometer-se com o sujeito poético. O fracasso dessa relação reside justamente no fato desse sujeito conscientizar-se de que o romance imposto à mulher amada não condizia com a necessidade da mesma: ela queria algo rápido, porém intenso; já o eu lírico buscava um vínculo mais duradouro e suave.
      O verso inicial (“O poema tem mais pressa que o romance”) funciona como justificativa para a constatação do eu lírico no título no soneto. A partir desse verso, tem-se a real identidade do ser, anteriormente velada. Trata-se da poesia. O fazer poético tem mais urgência que o fazer prosaico, visto que a construção de um poema requer total fluidez da inspiração, uma entrega absoluta do poeta ao sentimento que se quer revelado. Assim também captou Herberto Helder, ao escrever Sobre um Poema: “Um poema cresce inseguramente/ na confusão da carne”. O poema “cresce inseguramente” porque o poeta jamais poderá ter a certeza que o ímpeto que o levou a escrever, impulso “na confusão da carne“, que ainda se encontra no reino abstrato da alma e no pulsar imediato dos sentidos, ainda impreciso e misterioso, virá a se realizar como um corpo total e íntegro. Por isso, o cosmo poético é diferente do romance e não pode ser incluído nesse universo.
      A poesia possui “asas de fogo”, numa referência à Fênix, pássaro mitológico cuja principal característica é a capacidade de regeneração. Sendo as cinzas, das quais a Fênix ressurge, uma visão interpretativa dada a qualquer texto poético, o renascimento da ave alegoriza a potencialidade que a arte poética têm de suportar várias interpretações.  Assim, renascer das cinzas funciona como uma renovação do poético, em cada nova interpretação que o leitor consegue conceber. Contudo, o eu lírico evidencia uma ressalva que poderá afetá-lo. Ele há de chorar, caso lancem lama sobre o corpo quente. A lama representa o despojamento da poesia de sua essência; é camuflá-la, encobri-la de algo que não lhe é próprio, desconfigurá-la. O corpo quente é a vida da poesia, aludindo à ave de fogo, em cujas veias pulsa intensamente a essência vital poética. Se houver alguma tentativa de moldar a poesia, enquadrá-la em paradigmas que não condizem que a dinâmica do fazer poético, o eu lírico chorará, não haverá contentamento. A lama, com sua propriedade gélida, enterrará o corpo quente da poesia, numa visão imagética de sepultamento.
      O ofício do poeta é estar em constante processo de criação, pois “Deus fez o poeta por que não descanse”. O fazer poético é divinizado, o poeta tratado aqui como um “deus” da poesia. O trabalho do poeta se equipara ao trabalho de Deus quando criou o mundo, descansando depois de sete dias, após o episódio genesíaco. Porém, o poeta não descansa. A missão que lhe é destinada é por demais árdua e elaborativa que o torna um ser compenetrado em sua arte poética, não lhe sendo permitido desviar-se “no golfo do destino” para outras veredas, deslumbrar-se com a própria capacidade criacionista que detém. Nem mesmo descansar “no mar (de) amores”, isto é, não se iludir com uma possível e posterior fama ou “glorificação” de seu trabalho, justamente pelo fato de que o fazer poético é sacralizado, desprovido de preocupações terrenas.
      No âmbito artístico, um mar de onda vem e cobre a produção poética do artista “e ela que dance!”. Um segundo mar aparece “e faz menção de (…) enfeitar” o eu lírico. Essa onda, identificada como uma aglomeração de louvores, a fortuna crítica de determinada produção poética, tem o poder de reduzir a importância estética que esta possui, fazendo-a “dançar conforme a música”. Por outro lado, essa mesma onda enaltece a figura do poeta, atribuindo-lhe maior prestígio e relevância, quando quem deveria ser o principal objeto de apreciação é a própria poesia. A pessoa do poeta é um mero instrumento para a concretude de algo maior: o poema.
      Ciente de que “os outros a conspurcam”, a tornem inferior ao poeta, excluída de sua real dimensão, o eu lírico se sente inconformado e, ao mesmo tempo, sente-se no direito de reivindicá-la em sua importância. Ela (a poesia) é dele! O elo que os une é indissociável; são carne da mesma carne, as metades que se juntam num só ser. O poeta é o único que possui o direito de “chicoteá-la (…) com a própria espinha”, e o faz não como os outros, por meio do discurso oralizado, mas com a única arma que dispõe: a palavra escrita. Somente escrevendo a poesia, ele pode castigá-la, “depreciá-la”, “imaculá-la”, isso feito com a espinha de sua inspiração. O sujeito lírico reconhece sua pequenez ao ser tomado “de amor” pelos “braços mornos” da poesia. Novamente, retoma-se o caráter do “corpo quente” atribuído à arte poética, a vivacidade que reside na tessitura do poema, que não lhe queima, mas o aquece. Pela relação poeta/poesia, o aspecto intelectual é deixado de lado, transcende para uma instância maior, alimentada por este envolvimento “amoroso” entre ambos. Contudo, um deve se sobressair diante do outro; e quem cede deve ser sempre o poeta: “Diminua eu para que tu cresças! (Evangelho de São João)”.
      O eu lírico toma posse de todas as emoções que povoam a superfície e a profundeza da poesia. Num processo de materialização da poesia, percebe-se uma espécie de relacionamento entre o poeta com esse ser-mulher-poesia que ganha corpo.   Ela o fala aos ouvidos com “gemidos”, cuja voz suave é tão inaudível que o poeta tem que transformá-los em seus “uivos” agudos, para poder gritar a todo o mundo o que está lhe perpassando a alma nesse instante. O eu lírico também torna os cabelos ruivos (o vermelho retomado como símbolo do ardente que habita a poesia) da poesia-mulher em “anéis”, dado o caráter cíclico que a arte poética apresenta, diferente da superfície lisa, linear que a prosa manifesta. Por fim, a poesia deixa “raspas caneladas” nos “cornos” do poeta. É como se, a cada poema produzido pelo poeta, fosse lhe retirado uma parte de si próprio, retira-se algo que existia em sua essência, deixando-lhe marcas profundas.
      Em resumo, o discurso poético de Vitorino Nemésio no soneto “Arrependo-me de a Meter num Romance” revela a relação indissolúvel do poeta diante de seu labor artístico. O poeta tem que se envolver de corpo e alma quando mergulhado no processo do fazer poético. É um ato de entrega e restritamente vinculado ao momento de inspiração. Por isso, devido a sua unicidade, não se pode meter a poesia num romance, deslocando-a de seu universo para outro universo. Fazer poesia é muito mais do que enquadrá-la num molde prosaico. É o mergulho no insondável de próprio ser, é como pescar a pérola que se traz suspensa na alma. É aventurar-se na descoberta da própria essência.
Saulo Lopes e Wildes de Oliveira Silva
Enviado por Saulo Lopes em 31/01/2012 para:
http://www.recantodasletras.com.br/resenhas/3472168

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► NEMÉSIO,Vitorino, 1901-1978
[Cadernos de caligrafia] / Victorino Nemésio. — 1973-1977. — 2 cadernos : [130] p. em 66 f. : il. ; 12,6 x 17,3 cm ou menos



Autógrafo a tinta azul, assinado, com datas a vermelho e ilustrações a vermelho e a azul. — Tem como suporte dois cadernos de «autógrafos» com capas cartonadas forradas a napopel castanho e verde, com filete duplo e corte das folhas a ouro. — O primeiro caderno contém cinquenta e três poemas copiados e ilustrados pela mão do autor, incluindo na folha de rosto o título «Caderno de caligraphia / Pertencente à menina Margarida Victória / q. lhe oferece o victorino nemésio» e a data «Lisboa, 29 de Março de 1973» e terminando com um «Índice de primeiros versos». Muitos dos poemas mencionam o local de escrita (Lisboa, Nice, S. Pedro do Estoril e Açores) e a data (29 Mar. 1973-4 Out. 1974). O segundo, com uma folha de rosto semelhante à do primeiro («2º Caderno de Caligraphia / Offereçido / à Menina Margarida Victória / pelo seu / menor criado e bem querido / Victorino Nemésio / Lisboa, 4 de Junho de 1977») inclui apenas 4 poemas, escritos em Barcelona, entre 28 Mar. 1976 e 14 Maio 1977. Existem vários poemas soltos que fariam provavelmente parte deste conjunto, mas não chegaram a ser copiados. — Dois poemas foram publicados na revistaAtlântida, Jan.-Mar. 1979, p. 5-6, e um na Colóquio/Letras, n.º 35, Jan. 1977, p. 59-60. Os dois cadernos foram publicados na íntegra por Luiz Fagundes Duarte, no vol. 3 das «Obras Completas de Vitorino Nemésio», com o título Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga. Lisboa: IN-CM, 2003. — Integram a colecção de Margarida Jácome Correia. Versões anteriores de alguns destes poemas fazem parte do espólio de Vitorino Nemésio (BNP Esp. E11).
BNP Esp. N51/cx. 5
http://purl.pt/13858/1/geneses/1/5-134.html




SINOPSE
Um livro inédito de Vitorino Nemésio (1901-1978), com edição de Luiz Fagundes Duarte, que também assina o prefácio à obra. E ali explica o percurso deste livro, que reúne cerca de 130 poemas do autor de "Mau Tempo no Canal". Nemésio escreveu estes poemas entre Março de 1973 e Maio de 1997, dedicados a D. Margarida Vitória, a última das suas paixões. Antes de morrer, o poeta copiou 53 deles para um caderno, onde escreveu, na folha de rosto: "Caderno de Caligraphia Pertencente à menina Margarida Vitória q. lhe ofereçe o victorino nemésio". Num segundo, a que chamou "Caderno de Caligraphia Offereçido à menina Margarida Vitória pelo seu menor criado e bem querido Victorino Nemésio", estão quatro poemas. A estes, LFD juntou outros 70, que Nemésio não tivera oportunidade de copiar para este segundo caderno por causa da doença, de que viria a falecer. Por dificuldades várias, que o organizador explica no prefácio (questões familiares, sobretudo), só agora, passados 25 anos sobre a morte de Nemésio, o livro vê a luz do dia. E, para além da qualidade literária (Nemésio é um dos maiores escritores da língua portuguesa no séc. XX), o livro vem confirmar o grande sedutor que também era. Como diz Rodrigues da Silva (JL, 19/2/03), referindo-se à sedução que eram as suas aulas, "o que os seus alunos, porém, talvez estivessem longe de imaginar é que ele, já depois de catedrático jubilado, dobrados os 75 anos de idade, escrevesse ainda poemas de amor e paixão como estes que ora se revelam".

"Um quarto de século após a sua morte, de Vitorino Nemésio publicam-se ainda inéditos. Notável! Sobretudo porque, neste caso, não se trata apenas de uma ou outra página solta, mas de todo um corpus poético e de alta qualidade."
R. da S, JL, 19/2/03

"Novo, verdadeiramente novo, para além da intensidade obsessiva do envolvimento, é o sensual, o afrodisíaco, o sexual, o fálico, o vulvar, abordado em termos elevados ou corriqueiros, metafóricos ou directos, e também o divertida e sinceramente 'descomposto' ou sabiamente desarrumado aqui e ali, isto para não dizer maesmo quase desbragado.
"(...) Pode dizer-se que esta sua poesia exprime o amor como uma insaciável apetência do mundo, do mesmo mundo de que ele se torna motor, no sentido em que Dante o dizia, como forma de conhecimento, no sentido também cósmico em que Camões o formulou, e, 'last but not least', enquanto dao existencial, a enlaçar a alma e o corpo com um sentido renovado da vida." 
Vasco Graça Moura, Público, suplemento Mil Folhas, 15/2/03 


14.2.14




[...] Aos 72 anos de idade, um ilustre poeta açoriano começa a escrever exaltados versos de amor tardio a uma mulher. Prolonga essa escrita por cerca de quatro anos e ela ocupa para cima de 220 páginas do volume agora editado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em edição da responsabilidade de Luiz Fagundes Duarte, Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga. Pensa em publicar em vida uma parte substancial dessa poesia, embora o livro só venha a sair a 14 de Fevereiro de 2003, isto é, a seis dias de se completarem vinte e cinco anos sobre a sua morte e, pelo menos desta vez adequadamente, a coincidir por um acaso feliz com a data conhecida como «dia dos namora­dos». No deslumbramento que sente, há dois aspectos que permitem relacioná-lo com outros casos: um é o do Garrett das Folhas Caídas, já referido, experiência de maturidade e libertação erótica, vivencial e poética, que na época foi quase revolucionária, mas que hoje, ante os poemas de Nemésio, mais se diria uma tímida produção para ser estudada em colégios de freiras; o outro é um paradigma humano e literário que implica uma experiência em que se cumulam maturi­dade, consciência da idade vivida e rejuvenescimento: refiro-me ao de Fausto e Margarida, com alguma ambiguidade, aliás irrelevante, no deslizamento da identificação com a personagem, Fausto, para a identificação com o próprio autor, Goethe: «Que tudo isto, afinal, são glosas de Goethe e Margarida», diz Nemésio, ou ainda:

No amor de Margarida eu, Goethe, me renovo.
Ah, Goethe victorino, como estes Versos finos cansam!
Goethe, se o for,  —  Victória a Margarida!

Mas paz a Margarida
Na praia da Victória
Onde o mar amanhece
E lhe traz peixe fresco [...]

Para além dos vários jogos de palavras a partir da onomástica, de que fica dado um exemplo, a coincidência de nomes, habilmente explorada pelo poeta português, entre a heroína de Goethe e a musa de Nemésio, funciona de modo a estabelecer o paralelo entre dois homens idosos e sabedores, dois criadores, que se transfiguram pela experiência amorosa. E também nas idades das protagonistas haveria por certo uma notável disparidade, uma vez que a Gretchen do Fausto é uma jovem inexperiente e Margarida Vitória contava 54 anos muito vividos em 1973, à data em que estes textos eclodem e explodem... Mas o princípio actuante de ambas estas figuras femininas, na vida e, para o que nos interessa, na expressão lírica da criação literária, é semelhante porque ambas proporcionam aos seus interlocutores entreverem a recuperação da juventude perdida e um intenso sentimento de felicidade.
  
Vasco Graça Moura
in Discursos vários poéticos ["Anfíbios sistemas de palavras", ou a poesia de amor de Vitorino Nemésio* apresentação de Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga (IN-CM, 2003)]
Edição © Babel, 2013
texto ©Vasco Graça Moura, 2013


6.5.10





carta de Vitorino Nemésio a Margarida




Casaréus do Tòvim,
(Coimbra), 2 Set° 1942. 

A sua carta deu-me muita alegria.  Acabo de lê-la.  Estou na aldeia há dois dias, rodeado de latadas morangueiras, com o vale do Mondego diante de mim, oliveiras derroda e às vezes a paz correspondente... (O meu Jorge partiu pela terceira vez um braço).  Mas basta de paisagem.  O que quero é fazer-lhe chegar rapidamente a minha gratidão por aquilo que me diz.  Vou guardar aquela polegada de cartão como uma das coisas mais honrosas da minha vida.

às vezes, lembrando-me do que tenho cá dentro para dizer, e que poderia sair em poema, romance ou "vida", e vendo a minha baça esterilidade de escritor, apetece-me soltar o "rai’s parto" dos carreiros que por aqui passam com os bois. Não é só o ofício de professor que me tira o tempo : são as mil e uma formas de dispersão para reforçar o orçamento.  Mas depois acontecem-me coisas como esta carta da Margarida, e penso de mim para mim que talvez valha a pena trocar uma hipótese de obra literária pela consolação de sentir que alguma coisa passou do meu entusiasmo a alguém.  "Talvez" !  Que mesquinho !  Mas "com certeza" !...

E até me vejo um velhinho de setenta anos, no esquife do limite de idade, coberto de flores e de cãs (essas minhas difíceis cãs de quarentão sem uma branca), e com uma borla, que ainda não comprei, toda orvalhada de lágrimas...  Haverá música para o"Antigamente a escola era risonha e franca" ?

Perdoe, Margarida ; não há direito de brincar assim numa carta como esta.

Repito que as suas palavras me comovem.  Estimo-as por virem de quem vême pela delicadeza com que escolheu as condições de isenção para mas mandar.

Desejo-lhe boas férias, — verdadeiras, alegres, sem sabedorias.

Minha Mulher retribui os seus cumprimentos.  Lembranças a seu Pai. E creia

na maior estima

Do seu muito amigo


Vitorino Nemésio





Em 1942, Margarida* acabara de se licenciar, com distinção, em Filologia Germânica, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde Vitorino Nemésio fôra seu professor. Nesta altura, Vitorino Nemésio ainda não tinha publicado o romance Mau Tempo no Canal(1944).

Vitorino Nemésio é um dos nossos maiores poetas e escritores do século XX. No fim da sua vida, conquistou o público português com a crónica semanal  "Se Bem Me Lembro", programa transmitido pela RTP de 1969 a 1975 em horário nobre.





Vitorino Nemésio e alunos na Faculdade de Letras,
c. 1942**



*Uma fotografia de Margarida aqui

**Detalhe de fotografia reproduzida no livro Retrovisor, Um Álbum de Família.
À direita de Vitorino Nemésio está Maria da Graça Paço d'Arcos. À frente,no canto inferior direito, Maria Violante Vieira.


sábado, 12 de novembro de 2016

Leonard Cohen, COMO DIZER POESIA


Leonard Cohen, “Como dizer poesia” (dito por Pedro Lamares,
 in "Literatura Agora", RTP 2, janeiro de 2015)


Tomemos a palavra borboleta. Para usar esta palavra não é preciso fazer com que a voz pese menos de um grama nem dotá-la de asinhas poeirentas. Não é preciso inventar um dia de sol nem um campo de narcisos. Não é preciso estar-se apaixonado, nem estar-se apaixonado por borboletas. A palavra borboleta não é uma borboleta real. Existe a palavra e existe a borboleta. Se confundires estas duas coisas darás razão a quem queira rir-se de ti. Não atribuas grande importância à palavra. Estarás a tentar insinuar que amas as borboletas de uma forma mais perfeita do que qualquer outra pessoa, ou que compreendes a sua natureza? A palavra borboleta não passa de informação. Não é uma oportunidade para pairares, levitares, aliares-te às flores, simbolizares a beleza e a fragilidade, nem de modo nenhum personificares uma borboleta. Não representes palavras. Nunca representes palavras. Nunca tentes tirar os pés do chão ao falares de voar. Nunca feches os olhos, tombando a cabeça para um dos lados, ao falares da morte. Não fixes em mim os teus olhos ardentes ao falares de amor. Se quiseres impressionar-me ao falares de amor mete a mão no bolso ou por baixo do vestido e toca-te. Se a ambição e a sede de aplausos te levaram a falar de amor deverás aprender a fazê-lo sem te envergonhares a ti mesmo nem às tuas fontes.
Qual é a expressão exigida pela nossa época? A época não exige expressão nenhuma. Já vimos fotografias de mães asiáticas enlutadas. Não estamos interessados na agonia dos teus órgãos remexidos. Não há nada que possas estampar no teu rosto que se equipare ao horror desta época. Nem sequer tentes. Apenas te sujeitarás ao desdém daqueles que sentiram profundamente as coisas. Já assistimos a películas de seres humanos em pontos extremos de dor e desenraizamento. Toda a gente sabe que andas a comer bem e que estás até a ser pago para estares aí em cima. Estás a atuar diante de pessoas que passaram por uma catástrofe. Tal facto deverá tornar-te bastante discreto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Toda a gente sabe que estás a sofrer. Não poderás contar à plateia tudo o que sabes sobre o amor a cada verso de amor que disseres. Chega-te para o lado e as pessoas saberão o que tu sabes por já o saberes. Nada tens para lhes ensinar. Tu não és mais belo do que elas. Não és mais sábio. Não lhes grites. Não forces uma penetração a seco. É mau sexo. Se revelares o contorno dos teus genitais, então cumpre o que prometes. E lembra-te que as pessoas não desejam propriamente um acrobata na cama. De que é que nós precisamos? De estar perto do homem natural, de estar perto da mulher natural. Não finjas que és um cantor adorado com um público vasto e leal que tem vindo a acompanhar os altos e baixos da tua vida até ao momento presente. As bombas, os lança-chamas e essas merdas todas não destruíram apenas árvores e aldeias. Destruíram igualmente o palco. Achaste que a tua profissão escaparia à destruição geral? Já não há palco. Já não há ribalta. Tu estás no meio das pessoas. Portanto, sê modesto. Diz as palavras, transmite a informação, chega-te para o lado. Fica a sós. Fica no teu canto. Não te insinues.
Trata-se de uma paisagem interior. É por dentro. É privado. Respeita a privacidade do texto. Estas obras foram escritas em silêncio. A coragem da atuação é dizê-las. A disciplina da atuação é não as violar. Deixa que o público sinta o teu amor pela privacidade ainda que não haja privacidade. Sejam boas putas. O poema não é um slogan. Não poderá publicitar-te. Não poderá promover a tua reputação de seres sensível. Tu não és um garanhão. Tu não és uma mulher fatal. Toda essa treta relacionada com os bandidos do amor. Vocês são estudantes da disciplina. Não representes as palavras. As palavras morrem se as representares, murcham, e a única coisa que sobrará será a tua ambição.
Diz as palavras com a exata precisão com que verificas uma lista de roupa suja. Não te comovas com a blusa de renda. Não fiques de pau feito ao dizer cuecas. Não te arrepies todo só por causa da toalha. Os lençóis não deverão suscitar à volta dos olhos uma expressão sonhadora. Não é preciso chorar agarrado a um lenço. As meias não estão lá para te recordar viagens estranhas e longínquas. É só a tua roupa suja. São só as tuas peças de roupa. Não espreites através delas. Veste-as.
O poema não é senão informação. É a Constituição do país interior. Se o declamares e deres cabo dele com nobres intenções, então não serás melhor do que os políticos que desprezas. Não passarás de uma pessoa a agitar uma bandeira e a realizar o apelo mais reles a uma espécie de patriotismo emocional. Pensa nas palavras como sendo ciência e não arte. Elas são um relatório. Tu estás a falar num encontro do Clube de Exploradores da National Geographic. As pessoas que tens à tua frente conhecem todos os riscos do montanhismo. Honram-te partindo desse princípio. Se lhes esfregares isso na cara, será um insulto à sua hospitalidade. Fala-lhes da altura da montanha, do equipamento que usaste, sê rigoroso em relação às superfícies e ao tempo que demoraste a escalá-la. Não manipules o público à caça de bocas abertas e suspiros. Se mereceres as bocas abertas e os suspiros, isso não se deverá à avaliação que fizeres do acontecimento, mas à que o público fizer. Resultará da estatística e não do tremer da tua voz nem das tuas mãos a cortar o ar. Resultará dos dados e da discreta organização da tua presença.
Evita os floreados. Não tenhas medo da fraqueza. Não tenhas vergonha do cansaço. O cansaço dá-te bom ar. O ar de quem seria capaz de nunca mais parar. Agora, entrega-te aos meus braços. Tu és a imagem da minha beleza.
Leonard Cohen 
(tradução de Vasco Gato)





HOW TO SPEAK POETRY
Take the word butterfly. To use this word it is not necessary to make the voice weigh less than an ounce or equip it with small dusty wings. It is not necessary to invent a sunny day or a field of daffodils. It is not necessary to be in love, or to be in love with butterflies. The word butterfly is not a real butterfly. There is the word and there is the butterfly. If you confuse these two items people have the right to laugh at you. Do not make so much of the word. Are you trying to suggest that you love butterflies more perfectly than anyone else, or really understand their nature? The word butterfly is merely data. It is not an opportunity for you to hover, soar, befriend flowers, symbolize beauty and frailty, or in any way impersonate a butterfly. Do not act out words. Never act out words. Never try to leave the floor when you talk about flying. Never close your eyes and jerk your head to one side when you talk about death. Do not fix your burning eyes on me when you speak about love. If you want to impress me when you speak about love put your hand in your pocket or under your dress and play with yourself. If ambition and the hunger for applause have driven you to speak about love you should learn how to do it without disgracing yourself or the material.
What is the expression which the age demands? The age demands no expression whatever. We have seen photographs of bereaved Asian mothers. We are not interested in the agony of your fumbled organs. There is nothing you can show on your face that can match the horror of this time. Do not even try. You will only hold yourself up to the scorn of those who have felt things deeply. We have seen newsreels of humans in the extremities of pain and dislocation. Everyone knows you are eating well and are even being paid to stand up there. You are playing to people who have experienced a catastrophe. This should make you very quiet. Speak the words, convey the data, step aside. Everyone knows you are in pain. You cannot tell the audience everything you know about love in every line of love you speak. Step aside and they will know what you know because you know it already. You have nothing to teach them. You are not more beautiful than they are. You are not wiser. Do not shout at them. Do not force a dry entry. That is bad sex. If you show the lines of your genitals, then deliver what you promise. And remember that people do not really want an acrobat in bed. What is our need? To be close to the natural man, to be close to the natural woman. Do not pretend that you are a beloved singer with a vast loyal audience which has followed the ups and downs of your life to this very moment. The bombs, flame-throwers, and all the shit have destroyed more than just the trees and villages. They have also destroyed the stage. Did you think that your profession would escape the general destruction? There is no more stage. There are no more footlights. You are among the people. Then be modest. Speak the words, convey the data, step aside. Be by yourself. Be in your own room. Do not put yourself on.
This is an interior landscape. It is inside. It is private. Respect the privacy of the material. These pieces were written in silence. The courage of the play is to speak them. The discipline of the play is not to violate them. Let the audience feel your love of privacy even though there is no privacy. Be good whores. The poem is not a slogan. It cannot advertise you. It cannot promote your reputation for sensitivity. You are not a stud. You are not a killer lady. All this junk about the gangsters of love. You are students of discipline. Do not act out the words. The words die when you act them out, they wither, and we are left with nothing but your ambition.
Speak the words with the exact precision with which you would check out a laundry list. Do not become emotional about the lace blouse. Do not get a hard-on when you say panties. Do not get all shivery just because of the towel. The sheets should not provoke a dreamy expression about the eyes. There is no need to weep into the handkerchief. The socks are not there to remind you of strange and distant voyages. It is just your laundry. It is just your clothes. Don't peep through them. Just wear them.
The poem is nothing but information. It is the Constitution of the inner country. If you declaim it and blow it up with noble intentions then you are no better than the politicians whom you despise. You are just someone waving a flag and making the cheapest kind of appeal to a kind of emotional patriotism. Think of the words as science, not as art. They are a report. You are speaking before a meeting of the Explorers' Club of the National Geographic Society. These people know all the risks of mountain climbing. They honour you by taking this for granted. If you rub their faces in it that is an insult to their hospitality. Tell them about the height of the mountain, the equipment you used, be specific about the surfaces and the time it took to scale it. Do not work the audience for gasps and sighs. If you are worthy of gasps and sighs it will not be from your appreciation of the event but from theirs. It will be in the statistics and not the trembling of the voice or the cutting of the air with your hands. It will be in the data and the quiet organization of your presence.
Avoid the flourish. Do not be afraid to be weak. Do not be ashamed to be tired. You look good when you're tired. You look like you could go on forever. Now come into my arms. You are the image of my beauty.
Leonard Cohen



Pequeño Vals Vienés: Take This Waltz, por Leonard Cohen.






PEQUEÑO VALS VIENÉS
TAKE THIS WALTZ

En Viena hay diez muchachas,
un hombro donde solloza la muerte
y un bosque de palomas disecadas.
Hay un fragmento de la mañana
en el museo de la escarcha.
Hay un salón con mil ventanas.
        ¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals con la boca cerrada.
Este vals, este vals, este vals,
de sí, de muerte y de coñac
que moja su cola en el mar.
Te quiero, te quiero, te quiero,
con la butaca y el libro muerto,
por el melancólico pasillo,
en el oscuro desván del lirio,
en nuestra cama de la luna
y en la danza que sueña la tortuga.
        ¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals de quebrada cintura.
En Viena hay cuatro espejos
donde juegan tu boca y los ecos.
Hay una muerte para piano
que pinta de azul a los muchachos.
Hay mendigos por los tejados.
Hay frescas guirnaldas de llanto.
        ¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals que se muere en mis brazos.
Porque te quiero, te quiero, amor mío,
en el desván donde juegan los niños,
soñando viejas luces de Hungría
por los rumores de la tarde tibia,
viendo ovejas y lirios de nieve
por el silencio oscuro de tu frente.
        ¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals del "Te quiero siempre".
En Viena bailaré contigo
con un disfraz que tenga
cabeza de río.
¡Mira qué orilla tengo de jacintos!
Dejaré mi boca entre tus piernas,
mi alma en fotografías y azucenas,
y en las ondas oscuras de tu andar
quiero, amor mío, amor mío, dejar,
violín y sepulcro, las cintas del vals.
Federico García Lorca



Now in Vienna there's ten pretty women
There's a shoulder where Death comes to cry
There's a lobby with nine hundred windows
There's a tree where the doves go to die
There's a piece that was torn from the morning
And it hangs in the Gallery of Frost
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz with the clamp on its jaws
Oh I want you, I want you, I want you
On a chair with a dead magazine
In the cave at the tip of the lily
In some hallways where love's never been
On a bed where the moon has been sweating
In a cry filled with footsteps and sand
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take its broken waist in your hand

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz
With its very own breath of brandy and Death
Dragging its tail in the sea

There's a concert hall in Vienna
Where your mouth had a thousand reviews
There's a bar where the boys have stopped talking
They've been sentenced to death by the blues
Ah, but who is it climbs to your picture
With a garland of freshly cut tears?
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
Take this waltz it's been dying for years

There's an attic where children are playing
Where I've got to lie down with you soon
In a dream of Hungarian lanterns
In the mist of some sweet afternoon
And I'll see what you've chained to your sorrow
All your sheep and your lilies of snow
Ay, Ay, Ay, Ay
Take this waltz, take this waltz
With its "I'll never forget you, you know!"

This waltz, this waltz, this waltz, this waltz ...

And I'll dance with you in Vienna
I'll be wearing a river's disguise
The hyacinth wild on my shoulder,
My mouth on the dew of your thighs
And I'll bury my soul in a scrapbook,
With the photographs there, and the moss
And I'll yield to the flood of your beauty
My cheap violin and my cross
And you'll carry me down on your dancing
To the pools that you lift on your wrist
Oh my love, Oh my love
Take this waltz, take this waltz
It's yours now.
It's all that there is

Adaptação de Leonard Cohen





THE BOOK OF LONGING

I can't make the hills
The system is shot
I'm living on pills
For which I thank G-d

I followed the course
From chaos to art
Desire the horse
Depression the cart

I sailed like a swan
I sank like a rock
But time is long gone
Past my laughing stock

My page was too white
My ink was too thin
The day wouldn't write
What the night pencilled in

My animal howls
My angel's upset
But I'm not allowed
A trace of regret

For someone will use
What I couldn't be
My heart will be hers
Impersonally

She'll step on the path
She'll see what I mean
My will cut in half
And freedom between

For less than a second
Our lives will collide
The endless suspended
The door open wide

Then she will be born
To someone like you
What no one has done
She'll continue to do

I know she is coming
I know she will look
And that is the longing
And this is the book  

Leonard Cohen
LIVRO DO DESEJO

Não consigo superar as colinas
O sistema foi abaixo
Vivo de comprimidos
Coisa que agradeço a D--s

Segui o trajecto
Do caos à arte
Desejo o cavalo
Depressão a carruagem

Naveguei como um cisne
Afundei-me como uma rocha
Mas o tempo passou há muito
Pelas minhas reservas de riso

A minha página era demasiado 
branca
A minha tinta era demasiado fina
O dia não quis escrever
Aquilo que a noite rabiscara

O meu animal uiva
O meu anjo aborreceu-se
Mas não me é permitida
Uma réstia de remorso

Pois alguém há-de utilizar
Aquilo que eu não soube ser
O meu coração será dela
De uma forma impessoal

Ela pisará o caminho
Perceberá a minha intenção
A minha vontade partida em duas
E a liberdade pelo meio

Por menos de um segundo
As nossas vidas colidirão
O interminável suspenso
A porta de par em par

Então ela há-de nascer
Para alguém como tu
O que nunca ninguém fez
Ela continuará a fazer

Sei que ela vem aí
Sei que ela irá olhar
E esse é o desejo
E este é o livro

Leonard Cohen - Livro do Desejo (edições quasi) tradução de Vasco Gato


MISSION

I've worked at my work
I've slept at my sleep
I've died at my death
And now I can leave

Leave what is needed
And leave what is full
Need in the Spirit
And need in the Hole

Beloved, I'm yours
As I've always been
From marrow to pore
From longing to skin

Now that my mission
Has come to its end:
Pray I'm forgiven
The life that I've led

The Body I chased
It chased me as well
My longing's a place
My dying a sail 

Leonard Cohen
MISSÃO

Trabalhei no meu trabalho
Dormi no meu sono
Morri na minha morte
E agora posso abandonar

Abandonar aquilo que faz falta
E abandonar aquilo que está cheio
Necessidade de espírito
E necessidade no Buraco

Amada, sou teu
Como sempre fui
Da medula aos poros
Do anseio à pele

Agora que a minha missão
Chegou ao fim:
Reza para que me seja perdoada
A vida que levei

O Corpo que persegui
Perseguiu-me igualmente
O meu anseio é um lugar
O meu morrer, uma vela.

Leonard Cohen, Livro do Desejo (edições quasi) tradução de Vasco Gato


YOU'D SING TOO

You'd sing too
if you found yourself
in a place like this
You wouldn't worry about
whether you were as good
as Ray Charles or Edith Piaf
You'd sing
You'd sing
not for yourself
but to make a self
out of the old food
rotting in the astral bowel
and the loveless thud
of your own breathing
You'd become a singer
faster than it takes
to hate a rival's charm
and you'd sing, darling
you'd sing too 

Leonard Cohen
TAMBÉM TU CANTARIAS

Também tu cantarias
se desses por ti
num lugar como este
Não te preocuparias
se serias tão bom como
o Ray Charles ou a Edith Piaf
Cantarias
cantarias
não para ti
mas para criar um eu
a partir do velho alimento
que apodrece na entranha astral
e na pancada surda, sem amor,
da tua própria respiração
Tornar-te-ias uma cantora
mais depressa do que o tempo necessário
até odiarmos o encanto de um rival
e cantarias, querida
também tu cantarias. 

Leonard Cohen, Livro do Desejo (edições quasi) tradução de Vasco Gato


FOR MY OLD LAYTON

His pain, unowned, he left
in paragraphs of love, hidden,
like a cat leaves shit
under stones, and he crept out in day,
clean, arrogant, swift, prepared
to hunt or sleep or starve.

The town saluted him with garbage
which he interpreted as praise
for his muscular grace. Orange peels,
cans, discarded guts rained like ticker-tape.
For a while he ruined their nights
by throwing his shadow in moon-full windows
as he spied on the peace of gentle folk.

Once he envied them. Now with a happy
screech he bounded from monument to monument
in their most consecrated plots, drunk
to know how close he lived to the breathless
in the ground, drunk to feel how much he loved
the snoring mates, the old, the children of the town.
Until at last, like Timon, tired
of human smell, resenting even
his own shoe-steps in the wilderness,
he chased animals, wore live snakes, weeds
for bracelets. When the sea
pulled back the tide like a blanket
he slept on stone cribs, heavy,
dreamless, the salt-bright atmosphere
like an automatic laboratory
building crystals in his hair.

Leonard Cohen, Flowers for Hitler
PARA O MEU VELHO LAYTON

Ele oculta a sua dor sem dono
em frases de amor
da mesma maneira que um gato esconde as fezes
debaixo das pedras e aparece durante o dia,
arrogante, limpo, rápido, disposto
a caçar ou dormir ou a perecer de fome.

A cidade recebe-o com lixo
que ele interpreta como um elogio
a sua musculatura. Cascas de laranja,
latas, tripas chovendo como papel de teletipo.
Durante algum tempo ele destruiu as suas noites
com a sua sombra refletida na janela da lua cheia
enquanto espiava a paz da gente vulgar.

Uma vez invejou-os. Agora com um feliz
uivo saltava de monumento em monumento,
penetrava nos seus lugares mais sagrados, ébrio
de saber quão perto vivia dos mortos
debaixo da terra, ébrio de sentir o muito que queria
aos seus irmãos que ressonavam, os velhos e as crianças da cidade.

Até que por fim, cansado como Tímon
do odor humano, ressentindo-se mesmo das suas próprias
pegadas no deserto, dedicou-se a caçar animais, e adornou-se
com braceletes de serpentes vivas e cizânias.
Enquanto a maré decia como uma manta,
ele dormia em cavidades das rochas um sono pesado
sem sonhos, a aragem brilhante do sol
como se fosse um laboratório automático
formando cristais no seu cabelo.

Tradução de Carlos Besen







Quando Leonard Cohen chorou junto com o público durante um show

A história de um show em que o músico abandonou o palco desolado, mas momentos depois retornou para fazer uma apresentação memorável


Leonard Cohen entrou abruptamente no camarim. Sentou-se abatido em um canto e disse: “Não posso, estou me dilacerando”. Tinha deixado precipitadamente o palco diante do assombro dos espectadores. Era 1972 e aquele era um de seus primeiros concertos em Israel, importantíssimo por ele ser judeu. Mas o músico, que morreu nesta quinta-feira, com 38 anos na época, não pôde terminar o recital na sala Binyanei Ha'uma de Jerusalém.
Antes de deixar o tablado, já alertara o público: “Não estou sentindo profundamente as canções. E acho sinceramente que estou enganando vocês. Vou tentar de novo. Se não funcionar, eu os deixo e lhes devolveremos o dinheiro. Há noites nas quais a gente se eleva no ar e outras em que simplesmente não decola”. A honestidade brutal do músico pegou de surpresa tanto os espectadores como os músicos, que não tinham uma opinião tão sombria do que estavam presenciando.
Naquela noite tão importante para ele, Cohen estava torturado pela responsabilidade e o compromisso, por elevar a pureza artística a um nível místico. Embora o público não estivesse percebendo, ele, sim. Levantou-se, e disse, como se vê no documentário de Tony Palmer Bird on a Wire: “Vamos deixar o palco agora e meditar profundamente no camarim para tentar recuperar a forma. Se conseguirmos, voltaremos”.
O músico mergulhou em uma atitude de melancolia profunda, arrasado por sua derrota em um de seus concertos mais relevantes. Sua exigência artística estava acima de tudo. Tão alta que tanto fazia que o público estivesse desfrutando plenamente da atuação. Segundo conta Sylvie Simmons no livro I’m Your Man: The Life of Leonard Cohen (Sou teu Homem: a Vida de Leonard Cohen), o representante do músico se aproximou de Cohen e lhe disse: “Temos de honrar o negócio e terminar a apresentação, ou pode ser que não saiamos daqui admirados”. O materialista contra a arte.
o lado de fora, ninguém havia abandonado a sala. Nem um só pedido de devolução do dinheiro. Nem uma só vaia. Pelo contrário: começaram a cantar Hevenu shalom aleichem (A paz esteja contigo), um poema judaico de felicidade. Nesse momento, aconteceu. Cohen seguiu o conselho de sua mãe: “Quando as coisas estão indo mal para você, barbeie-se". Alguém lhe levou uma navalha e creme de barbear, ele se aproximou do lavabo e começou a raspar a barba enquanto escutava ao fundo os cânticos dos espectadores: “Que a paz esteja convosco, anjos do altíssimo. O supremo rei dos reis é o santo abençoado”.
Quando terminou de se barbear, Leonard Cohen retornou ao palco seguido de seus músicos. Ninguém tinha ido embora. A ovação foi estrondosa. Depois, fez-se silêncio. O músico pegou seu violão e começou a cantar So Long Marianne: "Nós nos conhecemos quando éramos jovens. Foi em um parque de cor lilás e verde. Você me agarrou como se eu fosse um crucifixo enquanto entrávamos de joelhos na escuridão. Adeus, Marianne, já é hora de começarmos a rir e a chorar, e chorar, e rirmos de tudo”.
Enquanto cantava, as lágrimas do músico começaram a deslizar por suas bochechas. Ouviram-se soluços na multidão. A angústia envolveu os músicos. Agora sim: Leonard Cohen estava sentindo profundamente as canções.

Óscar Tévez, brasil.elpais.com, 2016-11-11





A missa fúnebre do irmão Cohen

Com o novo disco, Leonard Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Que o fim esteja distante e que estas canções passem por outros funerais. Bruno Vieira Amaral diz quais.


  1. Para funerais dos convertidos
  2. Para funerais dos hesitantes
  3. Para os funerais dos que fizeram as escolhas erradas
  4. Para os funerais dos que acabam as discussões com “leva lá o triciclo”
  5. Para os funerais dos hiperbólicos
  6. Para os funerais dos cautelosos
  7. Para os funerais dos que mudaram de ideias
  8. Para os funerais dos que se preocupam muito com a opinião dos outros
  9. (Bruno Vieira Amaral, Observador, 2016-10-26)
Agora que tem as contas arrumadas, literalmente, Leonard Cohen diz-se preparado para morrer. É por isso que este novo álbum tem o som de um adeus antecipado, com a carga religiosa de muitas das suas músicas sublimada pela proximidade da morte e de um tête-à-tête despojado com Deus. Com o fim a aproximar-se, Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Como sabe que o vai perder, permite-se ser sincero e mostrar-se vulnerável (e assumir a vulnerabilidade é também uma derradeira manifestação de força), “eis-me aqui, estou pronto, vamos lá”, sem perder no entanto o humor e um cinismo que nunca azeda.
No fundo, é o drama da humanidade: se tudo o que há é silêncio, então que sejamos nós a falar, nem que seja para invectivar o Deus de que tanto precisamos. No outro dia, ao ver “Os Dez Mandamentos”, essa megalomania exuberante de Cecil B. De Mille, fiquei a saber, num dos documentários do DVD, que foi Charlton Heston quem propôs que a voz de Deus na cena no Monte Sinai fosse a sua própria voz, alterada, porque estava convencido de que, numa situação semelhante, Moisés teria ouvido a voz de Deus no interior da sua cabeça. E é isso que acontece aqui, a voz de Cohen, mais grave que nunca, dirige-se a Deus – que nas suas canções assume muitas vezes a forma de uma mulher, normalmente de uma amante que se perdeu, de um amor impossível – e se há resposta, é a do eco da sua própria voz, um homem a falar com Deus, um homem a falar sozinho, um Deus a falar com um homem, um Deus a falar sozinho.

“You Want it Darker”, de Leonard Cohen (Sony Music)
Este é um álbum de canções sagradas e profanas, música para igrejas, sinagogas e apartamentos onde se sofre pelo fim do amor, pelo fim da vida. Salmos fúnebres, finais, cheios de serpentes, pecados, anjos e diabos, tentações, luz, graça, verdade, caminho, cálices de sangue, culpa e mulheres. Que o fim de Cohen esteja distante e que estas canções possam embelezar outros funerais. Como estes, canção a canção:

Para funerais dos convertidos

“You Want it Darker”. O funeral de alguém que se converteu tardiamente à religião (ou ao amor) merece uma canção como You Want it Darker, que dá título ao álbum. Pode ser aquele amigo que só descobriu a religião ao mesmo tempo que encontrou o frigorífico vazio depois de a mulher o ter deixado. A certa altura, Cohen, acompanhado de um coro, canta “hineni, hineni” que é como quem diz “Senhor, já que estamos aqui faz o que achares melhor.” Na história da religião há muitos casos de conversão, o mais célebre dos quais daqueles senhor que viu a luz a caminho de Damasco. Mas, tal como as finanças, aparentemente Deus aceita formulários submetidos fora do prazo. Se se tem de pagar multa ou não, é assunto para se debater no além, a dois, preferencialmente numa conversa regada a vinho. Nunca é tarde para amar. É sempre cedo para morrer.


Para funerais dos hesitantes

“Treaty”. A quem se dirige Cohen quando canta “I’m so sorry for that ghost I made you be / Only one of us was real and that was me”? A uma mulher que o abandonou ou ao Deus de cuja existência ele, afinal, duvida? À mulher que não podia ser o que não era ou ao Deus em que ele acreditou em vão? A tensão entre amor incondicional (ágape) e amor romântico (eros) manifesta-se em muitas das canções de Cohen. O homem sente-se dividido pelo amor a Deus e aquela sensação de calor no baixo ventre quando a vizinha do rés-do-chão vai à janela de roupão. Se conhece alguém com tendências para Santa Teresa de Ávila e confunde orgasmos com êxtases místicos (e quem, na verdade, sabe onde começam uns e acabam os outros?), guarde-lhe esta canção para o dia final.


Para os funerais dos que fizeram as escolhas erradas

“On the Level”. “Se o arrependimento matasse…” O arrependimento não mata, mas mói. E para que possamos celebrar as escolhas certas somos obrigados a reconhecer que, por vezes, optámos pela pior solução. Há uma canção dos Pulp, “Something Changed” (letra, como sempre, de Jarvis Cocker) que fala sobre como uma decisão menor pode afetar o rumo da nossa vida e talvez afastar-nos, sem que tenhamos maneira de o saber, do verdadeiro amor. O que teria acontecido se, naquele dia, tivéssemos ficado na cama até mais tarde? “Do you believe that there’s someone up above? / And does he have a timetable directing acts of love?” Ah, os fios do acaso. Mas quando somos nós que deliberadamente viramos costas ao que o acaso pôs no nosso caminho? Que mandamos embora os nossos anjos pensando que estamos a renegar os nossos demónios? Cohen responde: “They oughta give my heart a medal / For letting go of you”. Uma medalha para os corações impacientes, nem mais.


Para os funerais dos que acabam as discussões com “leva lá o triciclo”

“Leaving the Table”. Todos nós conhecemos alguém que, à segunda jogada de uma partida de xadrez, começa logo a dizer “pronto, pronto, já ganhaste”. Ou que, no calor de uma discussão que lhe foge do controlo, admite a derrota com “pronto, leva lá o triciclo.” Esta canção é para eles. Não são desistentes, nem perdem os jogos por falta de comparência. São mais hábeis e obtêm uma vitória moral quando resolvem sair com estrondo. Quer dizer, saem lentamente, mas arrastam a cadeira. Qual é o nome que se dá a estas pessoas? Ah, passivo-agressivas. Que fique claro que Cohen, apesar de dizer “You don’t need a lawyer / I’m not making a claim / You don’t need to surrender / I’m not taking aim”, não é desses. Ele é um velho guerreiro, Leonardo Baptista cansado das guerras do amor: “I don’t need a lover, no, no / The wretched beast is tame”.


Para os funerais dos hiperbólicos

“If I Didn’t Have Your Love”. Toda a gente precisa de um amigo “larger than life”, daqueles que dão grandes abraços por tudo e por nada, dos que gostam tanto de dizer “és o meu melhor amigo” que o dizem a todos os amigos e até a alguns conhecidos, benfiquistas que julgavam que o Benfica ia acabar depois da saída de Jorge Jesus e agora celebram Rui Vitória como o maior génio táctico desde Aníbal, sportinguistas que julgavam que o Sporting ia ser campeão europeu com a chegada de Jorge Jesus e tiveram vontade de morrer após o primeiro empate, amigos que assinam petições contra o fecho de salas de cinema e depois se lançam pesadamente para o sofá para ver o que está a dar no Hollywood, amigos que são oito de manhã e oitenta ao fim do dia, que acham que uma borbulha no pé é um tumor maligno e que um tiro a meio da noite é o início da Terceira Guerra Mundial mas que, minutos depois, mais calmos, já estão convencidos de que vão durar para sempre e que o sorriso de um amigo compensa todas as tristezas do mundo.


Para os funerais dos cautelosos

“Traveling Light”. O amigo que vai de férias uma semana e leva a casa atrás, o amigo que numa noite de verão leva casaco porque “pode arrefecer”, o amigo que não sai de casa sem confirmar que os bicos do fogão estão fechados, o amigo que repete “cautelas e caldos de galinha…”, o amigo que consulta sites de meteorologia para ver o tempo dos próximos dez dias, o amigo que confirma a pressão dos pneus sempre que põe gasolina, o amigo “porque isto nunca se sabe”, o amigo que faz um seguro de vida e quer estar protegido contra raios, o amigo do “dia de amanhã”, o amigo que comprou um balão para fazer testes de alcoolemia depois dos jantares de grupo, o amigo que acredita que ainda há empregos para a vida toda e casamentos até que a morte os separe. Relaxa, companheiro. Temos de estar sempre prontos para partir e o excesso de bagagem só atrapalha. “I’m not alone, I’ve met a few / Traveling light like we used to do.”


Para os funerais dos que mudaram de ideias

“It Seemed the Better Way”. Pode ser, embora não seja obrigatório, aquele amigo que ao fim de anos de militância no Partido Comunista descobriu as virtudes do ioga e da meditação transcendental, ou o seguidor de uma seita evangélica que se cansou de pagar o dízimo e agora gasta tudo em raspadinhas, ou o fã de heavy metal que agora é mais fado, ou o leitor indefectível de James Joyce que agora prefere um bom thriller de Daniel Silva, ou do capitalista que resolver procurar conforto espiritual num mosteiro no Sul de França. A ideia é esta. “Sounded like the truth / Seemed the better way / Sounded like the truth / But it’s not the truth today”, canta o bardo e com razão. Quando passamos a juventude a dar a outra face chega uma altura em que só temos vontade de dar murros aos que nos ofendem. E se a noite é boa conselheira, a velhice também não é das piores. Perguntem a Leonard Cohen.


Para os funerais dos que se preocupam muito com a opinião dos outros

“Steer your Way”. Desvia-te de tudo o que te magoa.










Poeta? Cantor? Uma voz em estado de graça