quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

tal como catedrais, Cesariny




No livro Manual de prestidigitação, Mário Cesariny iniciou sua busca pela “definição de uma Arte poética” (1986, p. 306), conforme anotou Maria de Fátima Marinho Saraiva. Como anuncia o título da publicação, Cesariny produz um “manual” de ilusionismo, um instrumento que permitiria ao leitor acessar e reproduzir o processo de criação poética, o qual depende do trabalho manual, de digitação, comparado à ilusão, ao engano e ao fascínio. Nesse livro, encontram-se diversos poemas que fazem referência direta ao universo teatral e que revelam a relação entre poesia e espetáculo na obra do surrealista. Em diversas composições, como “cena para final de um terceiro acto”, “o prestidigitador organiza um espetáculo”, ou “coro dos maus oficiais de serviço na corte de epaminondas, imperador”, somos conduzidos por pequenos fragmentos de um espetáculo de ilusionismo no qual as palavras enunciadas adquirem um poder performático e genesíaco.
No “manual” que nos é apresentado, concedendo ao leitor o acesso a seus “truques”, algo que jamais é revelado por um prestidigitador, o autor vê-se desabrigado de sua posição de proprietário da obra, detentor de sentido e verdade plenos. No poema “tal como catedrais”, com o “deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, constata-se que “uma obra está completa”. A afirmação é válida tanto como uma referência à sua própria poesia quanto como uma declaração de que ele também “deita a língua de fora” a outros autores. Assim, o desejo do “Autor” de reencontrar sua Obra no mundo mostra-se uma “esperança cínica e conservadora”, uma vez que “outros obreiros” dela se apropriarão para construírem suas próprias obras.

tal como catedrais

Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma
e as inerentes avarias centrais
entre céu e terra à espera do descanso
Consumada a Obra ficamos          tu e eu
pensando frases como:                  como é possível?
                                                            o que foi que fizemos?
ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
Onde está a camisola?

Sim realmente
onde está a camisola?    Ola
palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda
coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras tantos anos
não quem possa dar descanso a estas senhoras?

O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia
frase entre todas triste, a atentar na significação

Sim consumada a Obra sobram rimas
pois ela é independente do obreiro
no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores
é que se se uma obra está completa

Fiquemos tristes       abraça-me       nós fizemos tão pouco
e ela vai pelo mar fora cavando a sua avaria!

(O mundo é redondo
talvez a reencontremos...

Esperança cínica e conservadora...)

TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR
MEU MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim, de facto
Efectivamente
mas o dia arrefece
e pálidos pálidos estamos

(CESARINY, 2008, pp. 150-151).

Começo por um poema que retrata uma cena final, localizada num momento posterior à “consumação” de uma “Obra”. Exaurido e “pálido”, o poeta, arquiteto ou engenheiro dessa empreitada foi abandonado por sua criação, ser “independente do obreiro”. Lançando sobre a atividade terminada um olhar retroativo, o sujeito do poema interroga um “tu” com o qual teria “consumado a obra”: “o que foi que fizemos?”. O encontro de “tu e eu” como ponto de partida para a criação da Obra mostra que esse processo não se de forma solitária, pelo contrário. Equivale a um encontro erótico que se confirma também amoroso na penúltima estrofe. Logo, a consumação da Obra é a de um matrimônio, encontro fértil e criativo entre “tu e eu”: amado e amador, mas também o lido e o escrito, leitor e escritor. O momento dessa conjunção é a cena que não vemos no poema. O sujeito tampouco parece saber como se deu o ato, como percebemos na interrogação “como é possível?”, ou ainda na constatação de que “fizemos tão pouco”.
Tal afirmação reforça a ideia exposta de forma simplória na abertura do poema de que “[c]onsumada a Obra fica o esqueleto da mesma / e as inerentes avarias centrais”. Apoiando-nos na comparação arquitetónica expressa pelo título, podemos pensar como essa afirmação inicial vai na contramão do que se espera de uma obra concluída: paredes, janelas, teto, telhados e portas bem traçados e executados não o esqueleto da obra ou uma declaração do obreiro a respeito das “inerentes avarias centrais” da construção. No entanto, a obra de Cesariny aceita sua condição de terminada, não de concluída. Ao admitir que o que fica desta é “o esqueleto da mesma”, reconhece que o único traço de autoria que resta é o projeto inicial sobre o qual se ergue. Da mesma forma, confessar a existência de “inerentes avarias centrais” é aceitar a iminência da ruína daquilo que propõe, entregando a obra à própria sorte.
A separação entre obreiro e Obra se reflete no isolamento dos construtores “tu e eu” frente a ela, algo que se realiza visualmente no poema, percebido pelo deslocamento das referências aos dois à direita nos quarto, quinto e sexto versos da primeira estrofe do poema:

Consumada a Obra ficamos       tu e eu
pensando frases como:       como é possível?
                                                 o que foi que fizemos?
(CESARINY, 2008, p. 150).

A partir do oitavo verso “Onde está a camisola?” –, uma mudança no alinhamento dos versos do poema, com um recuo progressivo à esquerda, indicando a introdução da reflexão antes reservada a um espaço circunscrito ao “tu e eu” como um caminho de desenvolvimento do poema como um todo, algo que é reforçado, ainda, pela repetição da mesma interrogação, porém realocada à posição convencional do verso:

ou esta, mais voraz que todas as anteriores:
            Onde está a camisola?

Sim realmente
Onde está a camisola?    Ola
(CESARINY, 2008, p. 150).

Como é possível perceber, o poema evoca diferentes vozes seja pela inserção de pequenos fragmentos discursivos que rompem a progressão temática no interior de cada estrofe, seja pelos ecos de citações provenientes da cultura portuguesa, como veremos adiante. Tal multiplicidade de discursos com a qual o poema é tecido reflete a própria discussão nele desenvolvida a respeito da condição das palavras, atravessando “fronteiras há tantos anos”, revelando uma consciência acerca de seu tempo histórico e da historicidade do discurso poético. As citações são retiradas tanto de seu cânone literário como é o caso do poema de Fernando Pessoa “Tenho das estrelas” –, quanto da tradição popular – representada pelo trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia” ou, ainda, pelo apelo ao imaginário marítimo português, percebido na referência ao lugar de deriva das obras (“e ela vai pelo mar fora cavando sua avaria”) e na comparação das obras com navios. Como observaremos ao longo deste trabalho, a metáfora da obra, ou do poema, como navio ou jangada no mar é recorrente no trabalho de Mário Cesariny, encontrando-se nos poemas “O navio de espelhos”, de A cidade queimada (1965), “Pena capital”, de Pena capital (1957), poema que analisaremos no terceiro capítulo, e no poema II do Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952). Da mesma forma, podemos observar a curiosa escolha de palavras de Cesariny para se referir à sua adesão ao surrealismo: “[é]ramos umas pessoas zangadas no meio do mar alto e havia um naufrágio nós escolhemos a mesma jangada” (CESARINY apud SARAIVA, 1986, p. 66).

Em ABC of Reading, Ezra Pound desenvolve a ideia de que a poesia seria “a mais concentrada forma de expressão verbal” (POUND, 1991, p. 36, tradução minha)7, querendo com isto dizer que as palavras dos poemas estão em um estado limite de saturação de significados. Nesse sentido, afirma que

O bom escritor escolhe suas palavras por seu ‘significado’, mas esse significado não é algo tão predeterminado e limitado como os movimentos do rei ou do peão sobre um tabuleiro de xadrez. O significado surge com raízes, com associações, com o como e quando a palavra é comumente utilizada, ou onde foi utilizada brilhante ou memoravelmente (POUND, 1991, p. 36, grifo meu)8.

Podemos perceber como o poema de Cesariny acima parece dialogar com o conceito de Pound a respeito da saturação da linguagem de diversas formas, tanto no tocante à temática do poema quanto em sua própria estrutura. Retomando os conceitos de “esqueleto” e de “inerentes avarias”, podemos nos aproximar da tese de Pound pelo viés do leitor, alguém que deve ser capaz de construir, sobre esse esqueleto, um acabamento, bem como remendar e reparar as “avarias centrais”. Enquanto leitores de sua obra, cabe a nós um esforço interpretativo e construtivo sobre o esqueleto da Obra sobre a qual fala o poeta. Como afirma Pound, certas palavras “provavelmente lançarão sobre a tela mental do leitor a imagem de uma década passada” (POUND, 1991, p. 37)9 e, continua, “são infinitas as qualidades que algumas pessoas conseguem associar a uma dada palavra ou tipo de palavra, e a maioria delas varia de indivíduo para indivíduo” (POUND, 1991, p. 37)10. Cesariny faz o mesmo enquanto herdeiro de uma tradição que se inscreve também na sua língua. Nesse sentido, falar é citar, uma vez que as palavras, coitadas, estão “a atravessar fronteiras tantos anos”.
No entanto, é inerente ao trabalho poético a escolha das palavras, como bem lembra Pound. Assim, podemos perceber como algumas referências marcantes convocadas em “tal como catedrais” emergem como um trabalho de citação, que deve ser pensado enquanto tal, ou seja, enquanto processo e ato, como o pensou, também, Antoine Compagnon. Em O trabalho da citação (1996), Compagnon aborda o conceito de working paper”, ou “trabalho em processo”, afirmando que é preciso distinguir o sentido da citação do ato da citação. O crítico afirma que “o sentido vem por acréscimo, ele é o suplemento do trabalho; [é] preciso distingui-lo do ato e da produção para não ignorar estes últimos, para não confundir o sentido da citação (de enunciado) com o ato de citar (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46). No poema de Cesariny, podemos perceber como o esforço de apagamento e rasura das vozes que emergem no dizer do sujeito poético transformam-se na própria “Obra”, uma vez que, ao mesmo tempo que causam o apagamento daquela que se diz consumada no início do poema, criam uma nova cena, a de um momento posterior à escrita, fazendo com que a “Obra” sobre a qual se fala simultaneamente seja e não seja a obra que nos fala.
Se, para Compagnon, “[o] texto, o fenômeno ou o trabalho de citação, é o produto da força pelo deslocamento” (1996, p. 48), torna-se necessário pensarmos as citações do poema de Cesariny a partir dos processos de deslocamento e desapropriação, a começar pelo jogo com o poema de Fernando Pessoa “Tenho das estrelas”. Nesse sentido, podemos perceber como  esses  processos  sobre  os  discursos  canônicos  se  dão  através  da  construção  do argumento defendido por Cesariny a respeito do cansaço das palavras a partir da transformação de versos do poema de Pessoa, reproduzido abaixo11, nos versos cesarinyanos “coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras tanto ano / não quem possa dar descanso a estas senhoras?”.

Tenho das estrelas
Luzindo tanto tempo,
tanto tempo...
Tenho delas.
Não haverá um cansaço
Das coisas,
De todas as coisas,
Como das pernas ou de um braço?

Um cansaço de existir,
De ser,
de ser,
O ser triste brilhar ou sorrir...

Não haverá, enfim,
Para as coisas que são.
Não a morte, mas sim
Uma outra espécie de fim,
Ou uma grande razão
Qualquer coisa assim
Como um perdão?
(PESSOA, 1985, pp. 148-149).

O poema acima, tal qual o de Mário Cesariny, parece relacionar aquilo que é dado como eterno e imutável ao cansaço e à fadiga consequentes da travessia temporal, ao mesmo tempo que apresenta como alternativa à existência “para as coisas que são” uma espécie de redenção. Nesse sentido, constitui uma crítica a respeito da longevidade e eternidade das estrelas quando comparadas à sua própria condição mortal, percebida pelo “dó” que sente dos astros. O sentimento de pena o podemos sentir através da constatação da diferença da nossa própria condição quando comparada à do outro: podemos “ter dó” na medida em que nos distanciamos e diferenciamos do outro. Encontramos, nos poemas apresentados, a “crítica à eternidade em que consiste essencialmente a modernidade” (2013, p. 35), como resume Octavio Paz, uma vez que afirmam sua permanência e sobrevivência através da transformação, como percebemos principalmente no poema de Mário Cesariny.
Parece haver, assim, uma manifestação da consciência histórica dos poetas, representada pelo desejo de pôr “uma outra espécie de fim”, percebido não como uma morte, mas como uma atribuição de nova finalidade às estrelas que brilham desde tempos imemoriais. Ao apropriar-se do poema de Fernando Pessoa, Cesariny mostra que o brilhar das estrelas não é por ele percebido como estático, apesar de apontar a permanência dos astros, agora “palavras”. Tal como catedrais e obras, as palavras e as estrelas, apesar de longevas e perenes, estão expostas aos efeitos do tempo, ao desgaste físico e a sucessivas transformações. Cabe àqueles “bons poetas” sobre os quais fala Pound escolher conscientemente as palavras que foram usadas “brilhante ou memoravelmente”, cujos significados surgem “com raízes, com associações”. Por esse motivo, Cesariny opera a troca entre “estrelas” e “palavras”, apropriando-se do poema de Pessoa e transformando a metáfora por demais “carregada” pela fala daquele poeta. É como se o surrealista percebesse que o brilho que emana das estrelas atravessa distâncias temporais e espaciais, ou que elas “vão pelo mar fora cavando sua avaria”, e, mesmo após a sua morte, continua a chegar até o nosso tempo e olhar. Assim, deslocar o discurso pessoano equivale a apontar para as próprias estrelas um espelho de circo, que distorcesse a luz que delas mesmas emana. A partir dessa nova luz, poderíamos perceber as estrelas de outra forma.
Assim, “tal como catedrais” desfaz a metáfora da longevidade das estrelas e toca direta e literalmente no problema da saturação da linguagem, transformando “estrelas” em “palavras”. Ao citar Fernando Pessoa para abordar sua travessia temporal, Cesariny reforça a ideia da transitoriedade inscrita em “Tenho das estrelas”. A transformação de “estrelas” em “palavras”, bem como a substituição do “dó” sentido pelo eu-lírico pessoano pela expressão “coitadas das palavras”, a qual ecoa o irônico “Coitado do Álvaro de Campos”12, provocam certo efeito humorístico no poema de Cesariny para além da aparente melancolia evocada pelo poema pessoano. O deslocamento da poética de Pessoa e a apropriação radical dos elementos de sua (ou de qualquer outra) poética ressoam, ainda, na afirmação de que a obra “é independente do obreiro”.
O poeta que consuma a obra, em “tal como catedrais”, reconhece como “esperança cínica e conservadora” a pretensão de reencontrá-la no mundo, uma vez que é na independência daquilo que constrói que se verifica sua completude. O reencontro com a Obra é impossível, pois as únicas coisas que dela restam após consumada seriam o esqueleto, ou o projeto inicial proposto pelo criador, e as “inerentes avarias centrais”. A partir daí, será tomada por outros “obreiros” que deitam “a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, da mesma forma que Cesariny o fez frente à tradição que o constituiu, confirmando que a Obra mesmo quando consumada não está concluída fez-se “tão pouco”.
A censura de Cesariny sobre o poema de Pessoa implica um movimento complexo. Ao negar o metafórico “estrelas”, Cesariny atua sobre ele agora percebido de outra maneira pelos leitores de um e de outro e, além de introduzir em “tal como catedrais” a ideia de cansaço do que é eterno, como também se em “Tenho das estrelas”, indica o reconhecimento da transitoriedade de seu momento presente, que é uma “esperança cínica e conservadora” querer reencontrar a “sua” Obra no mundo, pois esta pode ser, como aconteceu com o poema de Pessoa, transformada por outro “obreiro”. Dessa forma, a experiência do presente não é consequência de uma cronologia linear que liga passado, presente e futuro, mas está fundamentalmente ligada a uma concepção moderna de transmissão da cultura. Como afirma Luciano Gatti,

[s]endo uma tarefa do presente constituir uma relação produtiva com o passado, a experiência não é assim um tempo pleno que se desenrola do passado ao futuro, formando uma continuidade. Ela é, isso sim, uma descontinuidade, uma atividade que tem que ser reiterada a cada momento, uma retomada que não ocorre automaticamente. Tal contato está sempre sujeito ao perigo e ao risco envolvidos no processo de transmissão da cultura (GATTI, 2009, p. 173).

Em Os filhos do barro (2013), Octavio Paz afirma que a modernidade é uma tradição, desenvolvendo a ideia de que a “ruptura”, marca da modernidade, tornou-se uma constante. Haveria, assim, um movimento recorrente de interrupção da tradição na modernidade e, por esse interminável movimento de ruptura, a modernidade ela mesma torna-se uma tradição – permanente negação de uma tradição que precede a ruptura que é. Nas palavras de Paz,

desde o princípio do século XIX fala-se da modernidade como uma tradição e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança [...]. A modernidade é uma tradição polémica que desaloja a tradição imperante, seja ela qual for; mas a desaloja para, no instante seguinte, ceder o lugar a outra tradição, que, por sua vez, é mais uma manifestação momentânea da atualidade (PAZ, 2013, p. 15).

O poema de Cesariny que se encontra acima traz ainda outros discursos tradicionais da cultura portuguesa e lusófona, como é o caso da alusão ao imaginário marítimo, introduzido na segunda estrofe. Feita de forma jocosa, a partir do destaque do significante “ola” dentro da palavra “camisola”, Cesariny mostra o quanto as palavras estão saturadas de significados, que surgem das mais inesperadas maneiras. A referência ao mar introduz no poema a reflexão crítica a respeito da historicidade do discurso poético, a qual conduzirá o desenvolvimento do tema do caminho inesperado seguido pela obra poética no mundo, independente do destino que lhe seu autor, ao seguir à deriva, “pelo mar fora cavando a sua avaria”. Ao abordá-lo de forma tão surpreendente e quase despropositada, Cesariny opera uma ruptura na relação que se tem com um dos pilares fundamentais da cultura portuguesa, inúmeras vezes revisitado e reelaborado por outros poetas e artistas do país. No texto “Adeus às armas” (2002), Jorge Fernandes da Silveira, refletindo acerca da impregnação em mais alto grau do imaginário marítimo, afirma que

[a] saturação que, ao longo dos séculos, foi-se inscrevendo na linguagem da Literatura Portuguesa voltada para o mar implica, hoje, a necessidade de uma viagem de reconquista da terra como paisagem e, portanto, como desejo de uma ficção que, enfrentando o “nó” do passado feito na água, movimente em novas empresas o imaginário português (SILVEIRA, 2002, p. 39).

Assim, a referência à tradição parece apontar o reconhecimento desse caráter “concentrado” de suas imagens e palavras-chave. A eleição do espaço marítimo como lugar da deriva das Obras é oportuna, ainda, ao trazer em si a metáfora da tradição ao mesmo tempo que aponta seu desgaste. Mar cultural, símbolo da tradição literária portuguesa aqui transfigurado em espaço por onde seguem as palavras, fatigadas, as “senhoras” a quem é preciso “dar descanso”.
Outro traço da tradição pode ser percebido pela inserção igualmente inesperada do trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia”, deslocado e transformado pelo discurso poético cesarinyano: “frase entre todas triste, a atentar na significação”. Ao apontar para a “significação” da frase, “entre todas triste”, o poeta põe em questão um caráter quase sempre ignorado dos trava-línguas, o sentido, uma vez que são expressões marcadas pelo caráter sonoro e performático, características materiais que se encontram fora do campo dos significados. Porém, ao ser efetivamente escrito no poema, deixa de ser percebido como uma frase cujo valor é puramente sonoro e humorístico, para ganhar o valor de significação, algo que podemos perceber como um traço profundamente irônico e essencialmente crítico da poesia de Cesariny. Nesse movimento de deslocamento do discurso que pertence quase exclusivamente ao campo material (sonoro e performático) para o abstrato (o dos significados), podemos perceber uma crítica a um lirismo exacerbado e a uma solenidade da poesia. Ao mesmo tempo, cria um novo trava-línguas para o leitor, através das repetições da consoante [t] e dos encontros consonantais [tr] ou [fr], o que produz dois efeitos: por um lado reforça a mistura entre os planos material aquele dos sons, da execução, ou da performance sonora e abstrato aquele dos significados –, por outro, ativa a memória de outro trava- línguas, ou seja, a memória cultural associada a “três pratos de trigo para três tigres tristes”, uma vez que se utiliza das mesmas consoantes e encontros consonantais dessa expressão, além de repetir o vocábulo “triste” em seu novo trava-línguas.

“tal como catedrais” explora, portanto, o deslocamento e a desapropriação dos discursos, algo que não é dado apenas no nível do “tema” do poema e de seu marcante caráter metapoético, mas se em sua própria estrutura, uma vez que Cesariny demonstra a partir do que escreve o processo de pilhagem da tradição empreendido também por ele. Na tentativa de definição de uma Arte poética, na escrita de um manual de prestidigitação, o autor instaura um “protocolo de leitura” (SCHOLES, 1991) com o qual pressupõe um trabalho por parte de seu interlocutor, reforçado ainda pelas expressões injuntivas “fiquemos tristes” e “abraça-me”. Nesse sentido, o “tu” interpelado pelo sujeito poético seríamos nós leitores, afetados por seu discurso. Se, para Paz, “o poema é mediação entre uma experiência original e um conjunto de atos e experiências posteriores” (1986, p. 227), o mesmo parece se verificar no projeto de definição de uma arte poética cesarinyana. Nela, os leitores surgimos como personagens fundamentais, convocados pelo sujeito poético a sermos seu “ÚNICO AMOR” e passarmos a “MÚLTIPLO AMOR”, o qual, na concepção surrealista, “assume um carácter de gnose” (CORREIA, 1973, p. 62).
No poema a ser analisado na próxima seção, veremos como a busca desse sujeito por um diálogo amoroso com o outro emerge como uma alternativa aos discursos dominantes, dado o contexto do Estado Novo e a cena literária neorrealista. Os últimos, frontalmente criticados por Cesariny, ao falar “‘em nome’ do povo e ‘para o povo’, nem do povo eram lidos nem curavam (ou podiam) (ou saberiam) dar-lhe textos capazes de ilustrar a palavra de ordem de Lénine: ‘Nada é bom demais para os operários.’” (CESARINY, 1985, p. 266). O poema a seguir não deixa de contemplar e movimentar certa gramática neorrealista, representada pelas imagens da “noite”, da “escuridão”, do “emparedamento” e das “muralhas”, conhecidas metáforas para designar o Estado Novo e o fascismo. Da mesma forma, veremos como Cesariny recorre à voz plural de um “nós” comumente utilizado por poetas neorrealistas como forma de cantar “em nome do povo e para o povo”. No entanto, o emparedamento em questão no poema de Cesariny parece tocar diretamente na necessidade do empreendimento de um trabalho poético de transformação da linguagem como forma de diálogo com o outro para resistência no mundo ou re-existência do mundo. No ensaio “Resistência da poesia resistência na poesia” (2012), Rosa Maria Martelo, a respeito do progressivo apagamento do pronome “nós” na poesia de Carlos de Oliveira, referindo-se também a um movimento perceptível nos trabalhos de outros poetas entre eles, Cesariny , aponta que uma passagem da

noção (neo-realista) de escrever ‘no lugar de’, dando voz aos que não a têm, para a noção (modernista) de escrever ‘na intenção de’ [...]. Escrever ‘na intenção de’ era partir do princípio de a poesia ser, em si mesma, um acto de violência e de resistência; era valorizar a condição ontológica propriamente textual e material da escrita e a correlativa emergência de uma subjetivação mais livre (MARTELO, 2012, pp. 39-40).

Nesse sentido, creio ser possível perceber, no poema que se segue, como a retomada do “‘nós’ coral neo-realista” (MARTELO, 2012, p. 39) é feita de maneira a criticar aqueles que acreditam, ainda, na possibilidade de se cantar em nome de, ou no lugar de, um povo, uma vez que aponta repetidamente a própria busca pelo diálogo com o outro, o “nosso dever falar”, para a fundação do canto de liberdade.

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(7) “the most concentrated form of verbal expression” (POUND, 1991, p. 36). Todas as citações de Pound em inglês foram traduzidas por mim [Maria Silva Prado Lessa].
Opto, aqui, pela citação de Pound no original, uma vez que a tradução para o português que tenho em mãos percebe “concentrated” enquanto sinônimo de “condensado”. Observando que antecede a essa passagem a citação “Dichten = condensare”, e que Pound escolhe utilizar “concentrated” em lugar da tradução “mais fiel” (e também mais óbvia e imediata) ao significante latino, “condensed”, acredito que é relevante mantermos a distinção perceptível no original. Descartando, por ultrapassar os limites deste trabalho, a discussão metafísica que poderia ser suscitada por essa distinção, sugiro uma metáfora química que subjazeria às ideias de “condensação” e “concentração”: a condensação é um processo de transformação, como é o caso da transformação de vapor em líquido; a concentração está relacionada ao excesso de determinada substância em um meio ideia certamente mais próxima à tese defendida por Pound a respeito do “excesso” e da “saturação” de significados convocados por determinadas palavras.
(8) “the good writer chooses his words for their “meaning”, but that meaning is not a set, cut-off thing like the move of knight or pawn on a chess-board. It comes up with roots, with associations, with how and where the word is familiarly used, or where it has been used brilliantly or memorably” (POUND, 1991, p. 36)
(9) “will probably throw the image of a past decade upon the reader’s mental screen” (POUND, 1991, p. 37).
(10) “there is no end to the number of qualities which some people can associate with a given word or kind of word, and most of these vary with the individual” (POUND, 1991, p. 37).
(11) Este poema de Pessoa foi citado mais de uma vez por Mário Cesariny, conforme verificamos na seção V do poema “Discurso”, publicado em Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano, de 1952. O primeiro verso do poema é já uma citação de “Tenho dó das estrelas”: “Falta por aqui uma grande razão” (CESARINY, 2007, p. 25).
(12) PESSOA, Fernando. Obra poética: em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 413-415.

Maria Silva Prado Lessa, O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny, Rio de Janeiro, 2017.



Poderá gostar de ler algumas cenas da escrita de Mário Cesariny:



CARREIRO, José. “tal como catedrais, Cesariny”. Portugal, Folha de Poesia, 02-01-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/01/tal-como-catedrais-cesariny.html



quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Cancioneiro de Natal, David Mourão-Ferreira


Banksy, "A cicatriz de Belém", Cisjordânia, 2019


Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira, Cancioneiro de Natal, 1971


Banksy, Birmingham, 2019



CARREIRO, José. “Cancioneiro de Natal, David Mourão-Ferreira”. Portugal, Folha de Poesia, 25-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/cancioneiro-de-natal-david-mourao.html


domingo, 22 de dezembro de 2019

Yehuda Amichai, poeta hebraico lido por Gonçalo M. Tavares






Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo poeta Amichai

por Gonçalo M. Tavares

Yehuda Amichai (1924-2000), um dos grandes poetas hebraicos. Publicou o primeiro livro em 1955, Agora e Outros Dias, esteve ligado à universidade e foi professor de escola preparatória. A poesia marcou todo o seu percurso. Amichai tem um livro com o título: Agora no Ruído – Poemas. E é isso: a poesia como aquilo que aparece subitamente no meio do ruído, uma forma de luz quando alguém parece ter perdido a visão. Pensar por exemplo em alguém que está perdido e quando escuta certos versos encontra o caminho como se os versos fossem uma espécie de indicações de itinerário.
Há sempre a questão religiosa e militar como pano de fundo, porém é a questão da família que está no centro de grande parte da obra de Amichai:
“a porta da minha casa é
a filha menor da porta do céu”
Nestes versos, vemos esse modo de mudar de escala em poucos segundos e também de mostrar que a única forma de acabar algo é começar no início e com passos pequenos. Não se começa com um único salto diretamente para o fim. A única porta, portanto, a que tens acesso é a da tua casa e é dela, diz Amichai, que deverás fazer uma porta grande, essencial.
Em Amichai, a relação com o pai está sempre a infiltrar-se nos versos:
“(…) quando o meu pai morreu
tiraram-no do seu lugar e o lugar ficou vazio
como um poço no meio da estrada com a tampa de ferro
levantada”
Esta precisão da metáfora quando fala da ausência: um poço, um buraco no meio da estrada: a ausência do pai. Noutro poema, esta precisão de novo:
“toda a noite gritaram os teus sapatos vazios
junto à tua cama”
Uma ausência corporal que é anunciada por objetos.
Há uma ternura certeira e comovente quando se fala de relações familiares:
“Um velho cego põe-se de joelhos
para atar o sapato do seu neto”
A mãe também está presente, claro, nos versos de Amijai:
“A minha mãe era a nave espacial da salvação”
A salvação física, psicológica e religiosa rapidamente colocada num campo muito terreno – é a mãe que salva e não uma religião ou um Messias – e, ao mesmo tempo, vista, essa salvação, como algo de extraordinário, fora das possibilidades normais: a mãe como algo terrestre e não terrestre – uma “nave espacial” – mistura muito frequente na poesia de Amijai.
Diga-se que esta afetividade presente na poesia de Amichai é quase sempre muito corporal:
“apoia a tua cabeça no meu ombro
porque o meu ombro
sabe coisas”
Um ombro sabe coisas, coisas não intelectuais, coisas não racionais. O ombro não sabe matemática nem linguística nem a história de um país. Um ombro sabe o que sabe a sua anatomia e a sua fisiologia. E sabe o essencial: ficar forte ao lado de uma cabeça que está em queda; o ombro não deixa a cabeça do outro desamparada. O ombro ali fica, sólido, como se fosse uma matéria eternamente estável. Está ali ao lado e podes pousar nele, no ombro, a cabeça. O ombro sabe coisas bem mais importantes do que aquelas que se aprendem na escola: o ombro sabe estar calado e ser só um apoio. Ombro, pois, que em determinados momentos se torna mais importante que o cérebro ou o raciocínio.
Há também na poesia do poeta hebraico a sensação de que o dia exterior, as notícias e a realidade dura que andam em circulação fora de casa não são o essencial. O essencial está situado da porta da casa para dentro.
Num poema que se chama “Amor antes de começar o Sabat”, Amichai dá esta imagem bem simples, mas decisiva:
“Dentro do quarto, sujo a tua pele
com dedos do jornal do dia”
Eis dois versos típicos de Amichai: há o exterior, o mundo – e o que se ama dentro de casa. Há nesta passagem, à primeira vista, uma evidência que parece meramente física, como todos, aliás, já tivemos essa experiência: o material, a tinta dos jornais, suja os dedos, eis o concreto. Mas se olharmos com mais atenção para estes dois versos veremos que já não parece ser apenas a tinta que suja a pele do corpo amado, mas as próprias notícias, o próprio conteúdo que a tinta escrevera no papel. Como se o século e os seus acontecimentos perturbassem o toque amoroso, o sujassem.
Yehuda Amichai, grandíssimo poeta hebraico, que todos devemos ler para conhecer melhor essa parte do mundo.

“Cultura e sentimentos, uma viagem guiada pelo poeta Amichai”, Gonçalo M. Tavares, UP Magazine # 146 (rubrica “Bagagem de Mão – Cidades & Homens” da revista de bordo da TAP Air Portugal) 2019-12-01. Disponível em http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/cultura-e-sentimentos-uma-viagem-guiada-pelo-poeta-amichai/




CARREIRO, José. “Yehuda Amichai, poeta hebraico lido por Gonçalo M. Tavares”. Portugal, Folha de Poesia, 22-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/cidades-homens-yehuda-amichai-poeta.html



sábado, 14 de dezembro de 2019

Eduardo Prado Coelho: Crónicas, política e cultura


ALGUÉM MOVE O MAR
Sentado em frente do mar, levanto os olhos para continuar a ler. As palavras rompem como palavras de água. O mundo faz-se gota a gota, no infinito de um oceano em que os barcos traçam caminhos, sulcos, traços marítimos e inscrições de alto mar. Estranha emoção a de ficar transparente às palavras que parece que reforçam a minha transparência. Toda a leitura nos faz crianças, e nos constrói na energia da areia.
Como lemos? À noite, no quarto em que as velas se acendem e nós abrimos a arca dos segredos. Sobre as dunas, inundados de sol. Nas longas tardes em que nas praias nos convidavam ao calor da sesta. Junto às árvores, encostados ao saber murmurado da terra. Em cartas que se trocavam entre mim e ti, formas telegráficas de repercutir o amor no silêncio dos corpos.
Comprar um livro era (e continua a ser) para mim uma deambulação por estantes e corredores. Descobrir aquilo que se chama «as novidades» passava por algo que lentamente se tornou uma arte e uma ciência avermelhada de todos os apelos. E sempre houve um bater do coração, um mergulho nas águas perante um livro novo. Comprá-lo, apagar-lhe o preço, levá-lo sofregamente para casa, arrumá-lo provisoriamente na mesa de cabeceira, folheá-lo encostando-o à insónia e ao sono, deixar que a areia se espalhe pelas suas páginas, tudo isto são gestos de um cerimonial que se repete mil vezes ao longo das nossas vidas. Da nossa língua vê-se o mar, escreveu um dia Vergílio Ferreira, alguém para quem a vertical do sol sobre o corpo leitor na areia foi sempre uma experiência de deslumbramento. Porquê abrir a janela de tantos textos que depois se fecham como todas as janelas? Porque todas as janelas se inscrevem no trabalho dos pintores. E para quê a areia que nos envolve? Para nos trazer a música dos barcos cantantes sem a qual não existe a literatura.
Na grande experiência da literatura podemos sublinhar três aspetos. Por um lado, não há escrita que não tenha a sua música, o seu fluxo de água incendiada, a sua corrente de escrita. Alguma da literatura que hoje se escreve opera no esquecimento deliberado deste princípio. É ele que faz que a interioridade de um texto seja ao mesmo tempo uma abertura para um exterior. mais do que uma relação com o não-texto, mais também do que uma janela junto ao mar, uma porta. Um dia Fiama Hasse Pais Brandão escreveu «O texto de Joan Zorro»: «Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos / a Joan Zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura / exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra / e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos / é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente».
Em segundo lugar, há uma relação da arte com o pensamento que vai além do tema do pensamento. Como escreveu um dos grandes poetas do século XX, Wallace Stevens: «A cor como um pensamento que cresce». Ou, se preferirem: a palavra como um pensamento que cresce. Quando dizemos «um pensamento», não estamos a falar em ideias, mas sim numa realidade sempre inesperada em que se vai até ao caos para criar o cosmos e o percurso exige uma reflexão obstinada: pensa-se em imagens, e essa é uma das grandes evoluções do nosso tempo da modernidade (daí a crise da teoria literária na sua forma tradicional), tal como se pensa em sons ou grafismos, ou sinais, ou gestos.
Num dos mais famosos fragmentos deste poema, «O homem da viola azul», escreve Wallace Stevens: «A poesia é o assunto do poema / Disto o poema surge e / A isto regressa. Entre os dois. / Entre surgir e regressar, há / uma ausência na realidade, / As coisas como são. Ou assim dizemos. / Mas são estas distintas? É / Uma ausência para o poema, que adquire / aí as suas verdadeiras aparências, o sol é verde / A nuvem é vermelha, a terra sentimento, o céu que pensa? Destes ele retira. Talvez dê. / Na permuta universal.»
Em terceiro lugar, a leitura é sempre uma experiência mágica, se for uma composição das palavras que crescem, daquelas que nos chegam do mar e a ele regressam. Ler, seja qual for a idade em que lemos, está ligado à infância. Esse extraordinário leitor, e também escritor, que é Alberto Manguel, propôs uma distinção: «Falas como um livro impresso, dizem eles. Que quer isto dizer? Trata-se de duas visões opostas da linguagem como instrumento de comunicação. Sabemos que a linguagem pode permitir ao falante permanecer à superfície da reflexão, pronunciando slogans dogmáticos e lugares comuns a preto e branco, transmitindo mensagens mais do que sentido, colocando o peso epistemológico sobre o auditor (como em 'estás ver o que eu quero dizer?'). Ou então pode-se tentar recriar uma experiência, dar forma a uma ideia e explorar em profundidade e não apenas à superfície a intuição de uma revelação». Se a diferença instituída por Alberto Manguel se revela inteiramente pertinente, há nela o excesso de um esquema de texto em que o conteúdo vai ao encontro da sua revelação, e talvez a palavra «comunicação» possa ser algo redutora. Falar em «dar uma forma a uma ideia» vai no sentido de uma literatura em que as ideias pré-existem às formas. Ora, em literatura, as ideias e as formas confundem-se numa matéria indefinível, num oceano sem nome, se há comunicação, é a comunicação desse momento em que a realidade passa por uma ausência que a torna real e faz que, numa evidência sem reserva, as coisas sejam apenas uma presença solar esplendorosa, aquilo que desde sempre são e que continuarão a ser, num país sem limites.
Existem sempre momentos que justificam todo o trabalho da escrita, toda a magia da leitura, toda a conjura das palavras. Encontros como o das «Correntes de Escrita» fazem parte de experiências desse tipo. Que regularmente um certo número de pessoas, empenhadas, envolvidas no enigma das palavras, venham até junto do mar para falarem, em momentos de gravidade e outros de sentido meramente lúdico, da literatura, corresponde a uma atitude de resistência que merece ser celebrada.
Porque é preciso resistir. Há algo de ingénuo, de militantismo romântico, de uma mistura insensata, nestas formas de associar a política e a arte, a transformação do mundo e os textos literários. Sobretudo (e voltamos aqui às categorias de Manguel) se não se trata de mensagens enviadas por instâncias políticas instituídas, mas de sons, ritmos, sentido nómada, música infinita.
Assistimos hoje a novas modalidades das práticas literárias. Na escola predomina um sentido sociológico dos textos, em que uma tipologia neutra situa a literatura entre textos científicos, jurídicos, publicitários, religiosos ou filosóficos. Não é que não haja um saber que se transporta e sustenta romances, peças de teatro ou poesia. É a dimensão de «mathesis» de que falava Roland Barthes. Mas este plano é apenas um suporte que preenche de conteúdos as palavras. Precisamos, em primeiro lugar, de afirmar e analisar a especificidade da literatura, embora haja perfeita consciência de que cada tipo de textos tem as suas marcas e mecanismos próprios. Mas devemos ir mais longe e mostrar que um texto linguístico não é apenas uma construção circunscrita de palavras, mas o lugar onde a linguagem se transforma no infinito de si própria: o oceano em que a leitura nos mergulha.
É verdade que este processo tem a sua lógica: ele conduz-nos a uma dessacralização da literatura que faz parte do movimento antirromântico que hoje nos domina. Queremos que a literatura recuse todas as formas de sublime, desviando-a do lugar de Deus. Queremos que a literatura desça à terra e se converta em caminhos pedregosos. Queremos que a literatura seja muito pouco poesia e quase prosa. Traçamos paisagens, contamos histórias, mas rejeitamos essa forma de utopia verbal que se abre no jogo vertiginoso das metáforas. É a metonímia que leva a melhor e vence o prélio que aceitamos jogar. O texto encosta-se a uma realidade que mantém o seu estatuto de construção social.
Aquilo que hoje se verifica nas escolas é a extrema dificuldade dos alunos chegarem à prática da leitura. Daí que quando entram na universidade encontremos uma queixa recorrente da parte dos professores: os alunos não sabem ler, não gostam de o fazer, não são capazes de inventar o sentido de uma frase, não a entendem, não sabem argumentar e acima de tudo não veem a frase como uma realidade significante, isto é, como uma matéria em que os sons, as cadências, a musicalidade produzem sentido e essa perspetiva estética que é o sentido do sentido.
Sejamos claros: não é possível ignorar que passámos da era simbólica para uma era predominantemente pragmática dos usos da linguagem. E falta pouco para a própria sociedade entrar num período pós-simbólico.
Houve um tempo (e pertenci ainda a esse tempo de deslumbramento) em que a literatura estava no centro de todas artes e a teoria literária dominava a reflexão de tipo semiótico. A literatura estava no centro do foco de energia interpretativa. Hoje as interpretações interpenetram-se, dialogam entre si e não existe propriamente um centro. Verificamos que a música ou o vídeo, o cinema ou as performances, as artes do corpo ou a land art, o teatro ou a dança, todas estas artes desenvolvem urna permutabilidade generalizada. Ao mesmo tempo, a teoria literária deixou de ser evidente e os estudos literários são hoje dominados pela pragmática da linguagem, a antropologia das formas semióticas, ou os estudos culturais (e aqui pelo feminismo, os estudos queer ou os trabalhos pós-coloniais, a sociologia, o estudo das marcas multiculturais ou as artes como relações de força). Isto desenvolve análises ideológicas em que o peso da política (vista numa perspetiva em que predomina a abstração) é considerável. E talvez pudéssemos arriscar que passámos do tema da linguagem para o tema do corpo, funcionando ambos como placas giratórias.
E há assim uma hierarquia de formas de aprendizagem da literacia: aprender a escrever mensagens no telemóvel, utilizando símbolos, abreviaturas e símbolos gráficos, tem aspetos significativos, mas não tão importantes como aprender a ver a televisão, a olhar a sério para um filme, a ouvir música erudita ou a utilizar a Internet. Aliás, a Internet é o grande armazenamento de informações e saber do nosso tempo, permitindo formas de escrita, correspondência cursiva, encontros e diálogos, práticas amorosas ou eróticas. Há hoje uma teoria do cibertexto. Como escreve um dos autores clássicos nesta matéria, Espen Aarsett*, «uma das principais conclusões do cibertexto é que as variações funcionais dentro de uma tecnologia de comunicação material são muitas vezes maiores do que entre os media físicos diferentes. Para os estudiosos dos media digitais, isto significa que há muito pouco a pressupor quanto ao medium só pelo facto de ele ser digital. Nesta perspetiva, as diferenças materiais dos media digitais (entre tipos de computador, resolução de ecrã, desenho ergonómico) são menos significativas do que as diferenças imateriais: como o sistema é programado e o que o programa faz na realidade».
Podemos assumir uma visão apocalíptica, podemos também aderir em termos de entusiasmo algo ingénuo. Não podemos é deixar de tomar consciência de todas as transformações que alteram o mundo do leitor e deslocam todas as realidades da comunicação e da produção de sentido.
Como recuperar o que foi a nossa literatura? De certo modo, ela continua a ser o que foi, o que se comprova neste encontro. Importante é utilizarmos as novas tecnologias da comunicação para dar força àquilo que foi a experiência da literatura como momento romântico. Sentado em frente do mar, estou dos dois lados do oceano: por um lado, sinto-me leitor, por outro sou o escritor que lê antes de escrever o que eu próprio escrevo. Sou, és, ele é, alguém que move o mar – o mar sempre recomeçado.

Crónicas, política e cultura / Eduardo Prado Coelho ; org. e nota introd. Margarida Lages. - 1ª ed. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2019. - 156, [2] p. ; 21 cm. - (Biblioteca Eduardo Prado Coelho). - ISBN 978-972-27-2753-2




DE CORPO PERDIDO

1. Regressando ao tema da leitura, gostaria de propor uma tese um pouco provocatória: mais do que ensinar a ler bem, ou ensinar a ler muito, o que é preciso é fazer que se desenvolvam e multipliquem os rituais de leitura. Por definição, estes rituais são inventados por cada sujeito à sua maneira. Não se trata de imitar, o que não faria sentido, mas de procurar que cada um sinta necessidade deles. E, neste plano, o que se pode transmitir são sobretudo exemplos.
Vou tentar explicar melhor. Para mim, ler não é só sentar-me, abrir um livro e juntar as letras até fazer sentido. Há muita coisa antes que é preciso contar. Há, por exemplo, a procura do livro. Várias hipóteses a considerar. Há um dia em que a gente acorda com vontade de ler Ernst Jünger. Nunca leu antes, não calhou, mas uma referência no jornal, uma alusão numa conferência e, pronto, sentimos que o mundo está incompleto se não tivermos, se possível, já nessa mesma noite, um livro de Jünger. Então saímos de casa, ao arrepio da mais elementar sensatez, desmarcando compromissos, defrontando a intempérie, calcorreando ruas, mas vamos impacientemente à procura do livro que se tornou imperioso e urgente. Pode acontecer que o encontremos, que acabemos por trazê-lo para casa, e, depois, por mero acaso, vamos dar connosco a ler uma novela antiga de Rodrigues Miguéis em que um homem sorri à vida com meia cara2. Mas isso já não importa. Foi importante o capricho. E que ninguém nos diga em tom de censura que foi um capricho.
Outra hipótese: quando, porque o chefe foi antipático no escritório, porque não tivemos a promoção que julgávamos merecer, sentimos de repente o desejo enorme de comprar um livro que desconhecemos por inteiro. É, como se tivéssemos um encontro marcado. Algures, numa livraria, por entre centenas de nomes conhecidos e já fatigados pela nossa memória, sabemos que existe necessariamente um poeta que nos espera e de que nós nada mais sabemos se não isto mesmo. Pode ser Gabriela Mistral3, Ovídio4, Stephen Spender5 ou Emily Dickinson6. Nada mais exaltante do que o alvoroço com que saímos do emprego, entramos esbaforidos na livraria, olhamos as estantes com ansiedade, começamos a folhear livros, a recolher versos desgarrados, palavras soltas, fragmentos de textos, na esperança inquebrantável de que, de súbito, iremos descobrir uma poesia que nos vai parecer decisiva, essencial, determinante no curso da nossa existência. Alguns leitores, mais perversos ou prudentes, criam mesmo o hábito de deixar certos autores de reserva, ou o romance de um autor de que se gosta muito, de modo a que se tenha quase a certeza (nunca se tem a certeza absoluta) de que um dia se irá ler um livro com imenso prazer. Isto, aliás, tem a ver com algo que, conforme as circunstâncias foram mais ou menos favoráveis, procurei promover intransigentemente: a ideia da biblioteca como «seguro de vida». Explico melhor, por motivos que não estou em condições de desfiar sensatamente, sempre entendi que a «minha» biblioteca só seria uma realidade tranquilizante se obedecesse à regra muito simples de conter sempre tantos livros quantos os livros que nela já li. Com isto fui conseguindo chegar àquele ponto já delirante em que, se por um fatídico acaso, deixasse hoje mesmo de poder comprar mais livros, tenho livros suficientes para ler — e reler — que dão para duas ou três vidas. Esta ideia dá-me uma paz dos sentidos e da alma que apenas pode encontrar comparação em algumas composições de Monteverdi7 ou Mozart.
Digamos as coisas de outra maneira: era necessário que a biblioteca que se foi tornando minha estabelecesse uma relação com algo que está para além do tempo da vida, como se ela se inclinasse silenciosamente para o momento em que a morte do mundo que toda a leitura é se convertesse numa imagem feliz da minha própria morte. Para isso era preciso que, ao olhar os livros que desafiadoramente me esperam, eu soubesse que entre eles há alguns que jamais chegarei a ler.
2. Temo que o leitor, ao atingir este delicado ponto da crónica que nesta semana lhe proponho, comece a colocar seriamente a questão de saber se o cronista terá definitivamente enlouquecido. Talvez. Mas o meu propósito não era enviar noticias da minha atual saúde mental. Era explicar que ler, no verdadeiro sentido do termo, na aceção apaixonada que temos de lhe dar, só pode ser uma atividade desmedida, insensata e irracional, feita de rituais. cerimónias íntimas, gestos destinados, cumplicidades incendiárias.
3. Um grande escritor francês, Pascal Quignard8, infelizmente pouco divulgado entre o público português, escreveu uma sequência de Petits traités9 que Maeght editou. No primeiro volume. o quinto tratado chama-se «Taciturio», e o sexto, «Página». Constituem dois dos mais belos textos que se podem encontrar sobre a leitura. Digamos que todos os professores que ensinam a ler deviam ensinar os pequenos gestos de loucura mansa que a leitura implica, e a disciplina mental que nos impõem os referidos tratados de Pascal Quignard. Uma verdadeira pedagogia teria de ser assim mesmo: alucinada.
Alucinada, repito. E inscrevo a palavra no sentido da luz que a atravessa. Porque toda a leitura implica uma concentração de luz, e a noite em redor. A noite ou o esquecimento, tanto faz. Quignard desenvolve, num outro livro precisamente intitulado Le Lecteur10, a ideia de que o leitor é aquele que desaparece servido pelo ato de ler. Na expressão de Quignard lê-se de corpo perdido — exatamente como se pode fazer uma coisa «de cabeça perdida». […]

Crónicas, política e cultura / Eduardo Prado Coelho ; org. e nota introd. Margarida Lages. - 1ª ed. - Lisboa : Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2019. - 156, [2] p. ; 21 cm. - (Biblioteca Eduardo Prado Coelho). - ISBN 978-972-27-2753-2
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1 Arsett (1965), investigador norueguês, especialista no estudo de videogames e literatura eletrónica. Dirige o Center for Computer Games Research, na Universidade de Copenhaga.
2 Referência ao livro de José Rodrigues Miguéis, Um homem sorri à morte com meia cara, Lisboa, Estampa, 1989. Este livro, de cariz autobiográfico, alude à estada de Miguéis nos Estados Unidos, quando sofre um problema de saúde muito grave.
3 Poeta, prémio Nobel da Literatura em 1945. De seu nome Lucila de Maria del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, foi diplomata e feminista chilena, tendo servido em Portugal.
4 Poeta romano (43 a. C, - 18 a. C.), conhecido sobretudo pelas suas obras Metamorfoses e Ars amatoria.
5 Sir Stephen Harold Spender (1909-1995). Além de poeta, foi romancista e ensaísta.
6 Uma das mais conhecidas poetisas americanas (1830-1886).
7 Claudio Giovanni Antonio Monteverdi (1567-1643) foi um compositor, maestro, cantor e gambista italiano.
8 Pascal Quignard (1948) é autor nomeadamente de Todas as manhãs do mundo, Vila Amália e Terraço em Roma.
9 A obra foi iniciada em 1977 e terminada em 1980. Recusada por inúmeros editores, apenas foi publicada em 1991. É composta por 8 volumes.
10 Editada pela Gallimard em 1976.

CRÓNICAS - POLÍTICA E CULTURA
Nota introdutória de Margarida Lages
Neste conjunto que agora se apresenta, estão reunidos alguns dos textos que demonstram a importância de pensar a cultura, e de como esta problemática atravessou praticamente toda a escrita de Eduardo Prado Coelho. São 33, mas poderiam ser muitos mais.
Ao longo do percurso de leitura que é proposto, não necessariamente cronológico, evidencia-se a noção de que para Eduardo Prado Coelho a cultura é um direito fundamental da vida humana, desenvolvendo e potenciando a possibilidade da informação, como motor da liberdade de escolha.
Ler hoje os textos de Eduardo Prado Coelho torna-se uma obrigação para pensar a política cultural, para entender que só se pode intervir numa realidade que se conhece.

* * *

CRÓNICAS - POLÍTICA E CULTURA
Prefácio de António Mega Ferreira

Se tivesse vivido na primeira metade do século passado, ou mesmo no final do século XIX, Eduardo Prado Coelho teria passado à posteridade como jornalista, tão contínua foi a sua presença nas páginas das principais publicações periódicas portuguesas ao longo da sua vida adulta. De facto, durante quatro décadas, de finais dos anos 1960, quando veio agitar as águas paradas da crítica periódica de cinema nas páginas do Diário de Lisboa, até aos seus últimos dias de vida, com assinatura diária no Público, o Eduardo nunca deixou de escrever para os jornais, fazendo-o com um delicado equilíbrio entre a intervenção político-cultural, sempre acutilante, e a crónica literária, sempre estimulante. Tornou-se, por isso, o intelectual português procedente do meio académico com mais frequente e descomplexada participação no espaço público, fazendo-o através de uma produção incessante destinada a ser veiculada através da imprensa escrita. E, seguramente, um dos de mais clara visibilidade mediática, ainda que a televisão nunca tenha sido o seu meio de comunicação preferido. Foi, além disso, professor universitário, responsável cultural da diplomacia portuguesa em França, escritor de diversa produção, conversador envolvente e cidadão envolvido na discussão da coisa pública, nas suas vertentes cultural e política. Os textos que aqui se reúnem são uma pequeníssima parte da sua produção, 33 entre centenas, cobrindo um período de tempo de duas décadas, a partir do início dos anos 1990.
António Mega Ferreira, no «Prefácio», que antecede Crónicas - Política e Cultura, de Eduardo Prado Coelho.


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


Eduardo Prado Coelho in memoriam, coord. Fátima Ramos, Centro Cultural - Instituto Camões de Paris, 2020/02/08




CARREIRO, José. “Eduardo Prado Coelho: Crónicas, política e cultura”. Portugal, Folha de Poesia, 14-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/eduardo-prado-coelho-cronicas-politica.html



quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Eduardo Lourenço, por Eduardo Prado Coelho


Missão Impossível”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 27 de maio de 1995, p. 12


O Crime Infinito”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 3 de junho de 1995, p. 12

Sonhar Alto os Sonhos de Todos”, crónica de Eduardo Prado Coelho
para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 25 de maio de 1996, p. 12



CARREIRO, José. “Eduardo Lourenço, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 11-12-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/12/eduardo-lourenco-por-eduardo-prado.html