“Somos a água, e não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.”
Jorge Luis Borges, Os Conjurados
“A noite sem sono despertou a conversa em mim, em nós. Foi muito mais que sexo, porque o amor, afinal, aparece assim de repente (como a chuva), e eu já tinha saudades deste tempo.”
in “O Sexo e a Cidália”, Grande Reportagem, 28/8/2004.
INDIVIDUALIDADE
O terceiro homem da humanidade
calibra o silêncio gozoso sem que possamos
apreender tudo sobre ele
roça o impoder crepitante
da aragem diurna sobre o corpo aprendizado
que acaricia
o bastante.
Agradeço não saber tudo sobre
categorias especificamente interiores
entes talvez de rude forma binária
felizmente não poderei dizer tudo sobre ti.
Chuva de Época,Ponta Delgada, 2005.
ESTES DIAS QUE NOS SEPARAM
Estes dias que nos separam
a presença mesmo que informe
posso desenhar-te
aureolar-te com meus gestos
ler-te em mim.
Os movimentos que faço
lentamente te procriam
e radicam no meu corpo.
Farei do gesto uma cópia
infinita dos gestos dos gestos.
José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época é o primeiro livro de poemas de José Maria de Aguiar Carreiro. A epígrafe que abre o livro, um verso de Jorge Luis Borges – “Somos a água, e não o diamante duro, / a que se perde, não a que repousa” –, coloca-nos de imediato perante um horizonte de leitura que o que se segue há-de confirmar. Constituído de duas partes, “Nada Nunca de Ninguém” e “O Riso dos Poetas”, o presente poemário faz da(s) continuidade(s), melhor, da consciência dela(s), o chão do seu dizer ou, como se pode ler no poema “Estes dias que nos Separam”: “farei do gesto uma cópia / infinita dos gestos dos gestos”.
Da negatividade ontológica à negatividade temporal e psicológica, José Maria de Aguiar Carreiro procura, nos poemas que estão dentro, a completude impossível para uma palavra poética a que os advérbios (“Nada Nunca...”), que estão acima, nos sobreavisam para a ausência dela. A epígrafe reconfirma-se: não há presenças a que o dizer poético se possa juntar, nem continuidades de que a poesia seja o seu assomo de felicidade. Face à ausência – de si, dos outros e de um presente que nunca é –, que resta ao poeta senão a reafirmação dos advérbios? Chuva de Época instala-se no interior dessas ausências, para daí dizer o que dizer não se pode. O riso é o sinal dessa impoder, e disso o poeta nos faz seus cúmplices.
Fernando Martinho Guimarães
CARREIRO, José. “Chuva de Época ou Nada Nunca de Ninguém”.
Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-10-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/10/chuva-de-epoca-ou-nada-nunca-de-ninguem.html
(2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/10/21/ChuvadeEpoca.aspx)