Para uma situação e caracterização do
Romanceiro Tradicional Português
O romance tradicional, na sua qualidade de género narrativo-dramático, insere-se num corpus mais vasto de textos que compõem a Literatura Popular Tradicional Oral.
Se, por um lado, o romanceiro faz parte da vida quotidiana de um povo não letrado, analfabeto ou quase analfabeto que o transmite e re-produz, pelo menos, desde a Idade Média (séc. XIV?); por outro lado, há que não descurar o facto de os letrados e estudiosos lhe terem dado atenção, registando-o por escrito em colecções e antologias para sobre ele se debruçarem com propósitos diversos (etno-antropológicos, semióticos, linguísticos...). Não fossem, por vezes, esses registos, muitos dos romances que hoje conhecemos já estariam esquecidos. De qualquer forma, o que observamos é que os romances não são composições de êxito efémero, porque perduraram ao longo dos tempos. Isto não quer dizer que se mantiveram intactos: a sua transmissão de “boca a ouvido e ouvido a boca” trabalhou-os e refundiu-os. Quão prodigiosa é a memória dos seus emissores (produ-transmissores, se quisermos) que os fez, num só ritmo e cadência, recitar (declamar) e/ou cantar dezenas e centenas de versos. A sua sobrevivência pode ter sido, afinal, garantida, quem sabe se inconscientemente, pela fusão de um romance noutro ou criação de dois ou três a partir de um único original ou, ainda, por atribuir determinados feitos de uma personagem a outra.
TEXTO, ESTRUTURA E DISCURSO
DO ROMANCE TRADICIONAL
O romance tradicional não existe enquanto texto, mas num sentido virtual, isto é, enquanto abstracção de várias versões-ocorrência. É por isso que, estruturalmente, o modelo virtual de romance apresenta-se como uma narrativa aberta, passível de transformações da expressão e do conteúdo inerentes ao processo de memorização e re-produção. Cabe ao estudioso «descobrir o que há de invariante, no meio da variedade, e recolhê-lo como tal» (Diego Catalán et alii, El Romancero Pan-Hispánico, 1984)
Os editores, hoje em dia, preferem grafar estas composições em versos longos – de catorze a dezasseis sílabas, com dois hemistíquios e com cesura a partir da sétima ou oitava sílabas – por estar mais de acordo com os cantares de gesta de que são provenientes.
Apresento a seguir uma versão-ocorrência de um romance carolíngio, isto é, que diz respeito à gesta de Carlos Magno e os seus Pares (referente histórico dos séculos VIII-IX) aproveitada pela literatura oral popular da Península Ibérica:
FLORESVENTO ou CRUEL VENTO
Versão de Parada d’Infanções, concelho de Bragança (José Leite de Vasconcelos,Romanceiro Português. 1º vol., Coimbra, 1958. Versão nº 35):
– Ó vento, ó cruel vento, — ó roubador maioral!
Derrubaste três cidades1, — todas três em Portugal;
Desonraste três donzelas, — todas de sangue real;
Mataste três inocentes, — todos três por baptizar.
Foge, foge, ó cruel vento, — p’ràs bandas de além do mar.
Nas terras donde passares, — nem água t’hão-de qu’rer dar;
As fontes donde beberem2, — logo se hão-de secar;
A mesa donde comeres, — logo se há-de escachar;
e a cama donde dormires, — em fogo s’há-de abrasar.
Foge, foge, ó cruel vento, — p’ràs bandas dalém do mar.
– Se derrubei três cidades3, — tenho com que as pagar;
Se desonrei três donzelas, — dote tenho p’ra le dar;
Se matei três inocentes, — Deus me queira perdoar.
– Ó vento, ó cruel vento, — ó roubador maiorial!
1 Variante: igrejas (na mesma localidade)
2 entenda-se: “beberes”
3 Variante: igrejas (na mesma localidade)
Segundo João David Pinto-Correia, Floresvento ou Cruelvento é uma "impressionante sanção de um cavaleiro que toma a sua própria defesa. Este romance que R. Menéndez-Pidal considerou «la más preciosa joya arqueológica dei romancero portugués», comove-nos pela arrogância e pela violência, ganhando acentos cósmicos pela hábil fusão dos elementos humanos e naturais (a presença do lexema «vento» na própria designação contribui muito para o efeito de sentido) e, sendo um dos romances próprios da tradição portuguesa, considera-se que chegou até nós a partir de um fragmento da canção de gesta francesa Floovent” (in Romanceiro Tradicional Português, Editorial Comunicação, 1984).
Entretanto, tem acontecido que o Romanceiro tem sido contaminado pela quadra, que, na Literatura Popular, vale por um verdadeiro poema de forma fixa (constituído por heptassílabos com uma só rima, do segundo com o quarto verso). Os próprios emissores dos romances crêem estar a contar histórias (“rimances”, “cantigas de segada”, “segadas”) em quadras. Também tem acontecido estar a perder-se a manifestação musical do romance. O verso rareia, estando, inclusivamente, a prosificar-se no Brasil.
Outra característica do romance tradicional é a sua pequena extensão. Entenda-se: maior que uma quadra e menor que um conto. Mesmo assim, pode apresentar-se muito curto (exemplos: «Cruel vento», um romance carolíngio; «O prisioneiro», novelesco; Na manhã de S. João, religioso) ou mais desenvolvido (exemplo: D. Gaifeiros, Conde Claros de Montalvão e Conde Alarcos). Além do mais, cada romance pode ter versões de várias extensões, havendo a possibilidade de variar o número de sequências.
Tal como no cantar de gesta, no romance aparece predominantemente rima toante em versos monorrimos, podendo estes ser também polirrímicos. A rima toante quase sempre vem de uma versão antiga. Por vezes, há irregularidades devidas a uma mudança de uma palavra que era arcaica (ex.: padre/ pai) ou, ainda, a falta de um ou outro hemistíquio.
É característico o uso de expressões formulísticas que tendem à estereotipização. Têm uma função mnemónica no sujeito-transmissor, além de serem normalmente indiciadoras do género, como é o caso do uso de advérbios no princípio de uma composição sem que tenham valor deíctico (ex.: «Já vem...», «Lá vem a Nau Catrineta», «Bem se passeia a Silvana»).
Mais uma característica do Romanceiro é a sua condensação semântica: há uma economia de sentido, não havendo grandes esclarecimentos, didascálias, apontamentos narrativos e descrições extensas. Recorre-se aos mecanismos do explícito e do implícito. A narração do explícito conduz a um aproveitamento do implícito que vai operar-se a nível do leitor, segundo o processo de encatalização, na designação de Greimas.
O romance tradicional nunca conta uma história completa; reduz-se a um ou dois episódios. É por isso que fecha (e abre) abruptamente. É rara a conclusão. São seguintes as três excepções mais frequentes: Conde Alarcos, Nau Catrineta e Morte de D. Beltrão. Em geral, são recentes as tentativas de remate.
As componentes discursivas predominantes são a narração e, sobretudo, o diálogo que confere uma certa dramaticidade.
O Romanceiro, que é um prolongamento e evolução do cantar de gesta, segue a via da liricização, retirando-lhe o tom exclusivamente guerreiro e introduzindo-lhe vultos e elementos femininos. (As canções de gesta são demonstrativas de uma circulação de práticas linguístico-discursivas centradas nos feitos de Carlos Magno, de seus Pares e principlamente no “desastre” de “Roncesvales” e morte de Roldão)
Como género da literatura oral tradicional, o romance não se subtrai a motivos esímbolos que se deslocam facilmente de um para outro romance ou versão. São de assinalar os números «três» («três doutores», «três feridas», «três feridas», «três lavadeiras») e «sete»(«sete anos», «sete filhas»). "Outros motivos concernem a qualificação dos actores: na suaapresentação («soldadinho de armas brancas», que encontramos em vários romances) ou na sua actividade (os vultos masculinos «combatem», «jogam», ou «vão à caça», enquanto os vultos femininos «passeiam», «tocam» um instrumento, «bordam» ou «penteiam-se»)" (Pinto-Correia).
Nesta perspectiva, João David Pinto-Correia (meu mestre nesta área da Literatura, especialista que sigo de perto na abordagem deste assunto) afirma o seguinte na apresentação crítica ao Romanceiro Tradicional Português: “não se nos afigura gratuito ou susceptível de uma simplista interpretação literal o emprego de símbolos como «sol», «luar» e «gavião» num romance como a Morte de D. Beltrão. No caso de «gavião» ou «águia» nas várias versões do citado romance, temos forçosamente de o interpretar como a «alma» guerreira, do cavaleiro Beltrão ou Valdevinos, principalmente no intratexto épico do romance em questão, em comparação com o aparecimento de uma «pomba» numa das versões de carácter mais acentuadamente lírico de Belardo e Valdevinos."
A MORTE DE D. BELTRÃO
Versão de Vinhais, recolhida pelo Pe José Firmino da Silva, 1904 (José Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português. 1º vol., Coimbra, 1958, versão nº 18, pp. 31-32).
– Quedos, quedos, cavaleiros, — que el-rei vos mandou contar,
Falta aqui o Valdevinos — e seu cavalo tremedal;
Falta a melhor espada — que el-rei tem para batalhar.
Não no achastes vós menos, — à ceia, nem ao jantar;
Só o achastes menos — a porto de mau passar.
Deitaram sortes à ventura — a qual o havia d’ir buscar.
Todas sete lhe caíram — ao bom velho de seu pai;
Três lhe caíram por sorte — e quatro por falsidade.
Lá se vai o bom do velho, — o seu filho vai buscar.
Pelos altos vai voando, — pelos baixos procurando,
À entrada duma vila, — à saída dum lugar,
Encontrou três lavadeiras — numa ribeira a lavar.
– Deus vos guarde, lavadeiras, — que Deus vos queira guardar.
Cavaleiro d’armas brancas — viste-lo por aqui passar?
– Esse soldado, senhor, — morto está no areal;
Os seus pés tem sobre a areia — e a cabeça no juncal;
Três feridas tem em seu corpo, — todas três d’homem mortal;
Por uma lhe passa o sol, — pela outra o luar,
Pela mais pequena delas — um gavião a voar,
Com as asas bem abertas, — sem nas ensanguentar.
– Não torno a culpa aos Mouros, — em meu filho matar;
Só a torno ao seu cavalo, — não no saber desviar.
De mandado de Deus Padre — veio o cavalo a falar;
– Três vezes o desviei — e três me fez avançar,
Apertando-me as esporas — alargando-me o peitoral;
Dava-me sopas de vinho — para melhor avançar;
Os muros daquele castelo — três vezes me fez salvar.
"Outras figuras, como «cipreste» ou «laranjal» (O Conde Ninho ou Nau Catrineta), a «teia» (Conde Claros em hábito de frade), o «tear» (os «três fios» de algumas versões doConde da Alemanha, a «espada» (de Gerinaldo), ou o «oiro» (das «maçãs de oiro» do Cid e o Mouro Búcar ou o «pente de oiro» da Bela Infanta), ou ainda os «cravos», as «rosas», o «candil», o «vestido de carmesim» e a «gargantilha de cutelo» (do Bernal Francês), remetem-nos para um sentido segundo, cuja decifração nos permitirá uma mais completa apreensão da significação dos enunciados.” (Pinto-Correia, p.40)
ORIGENS DO ROMANCEIRO
Acerca da história do Romanceiro Tradicional, Ramón Menéndez-Pidal salienta que os primeiros romances foram cantados em Castela, donde se terão difundido por toda a Península. Castela seria o centro a partir do qual se teria expandido a tradição romancística pan-hispânica. Sabemos que, no século XV (1421) os romances já circulavam, devido a uma nota feita por um estudante maiorquino no seu caderno. A primeira fonte que prova a circulação deste género em língua portuguesa é do século XVI, através de uma citação feita por Gil Vicente noAuto da Lusitânia (1532) de Cid e o Mouro Búcar.
CID E O MOURO BÚCAR
Versão de Parada de Infanções, Bragança, Trás-os-Montes, em 1902 (José Leite de Vasconcelos, Romanceiro Português. 1º vol., Lisboa 1958, versão n° 4, pp. 17-18).
Bem se passeia Mourilho — de calçada em calçada,
Olhando para Valência, — como estava amuralhada:
O Valência, ó Valência, — Valência, não vales nada!
Quando tu eras dos Mouros, — d’ouro eras mociçada;
Agora, que és dos Cristãos, — nem de pedra mal picada.
Ouvira-o el-rei D. Cidro, — d’altas torres d’onde ‘stava;
Chamou pela sua filha: — Pega lá nessa almofada,
Dilata-m’ aquel’ Mourilho — de palavra em palavra.
– Como farei isso, meu pai, — seu d’amores não sei nada?
Bem-vindo sejas, Mourilho, — boa é a tua chegada!
Sete anos hai, ó Mourilho, — qu’eu não visto faldra lavada.
Outros tantos hai, senhora, — qu’eu não faço a minha barba.
Meteu a mão el bolsilho. — maçãs d’ouro lh’atirava.
Dessas, dessas, ó Mourilho, — tamém meu pai me las dava.
Vai-te daí, ó Mourilho, — não digas que te sou falsa:
Meu pai deu fio à lança, — não foi para ir à caça...
– Não há cavalo que alcance — a minha eguinha vaia,
Senão o cavalo qu’eu tenho, — qu’ela dele anda prenhada.
Oh qu’aradas tão cumpridas! — Oh que cumpridas aradas!
Quando os touros andam gordos, — os mancebos adelgadam.
Ao passar do Guadiana, — atirou-le ?a lançada:
A lança ficou no corpo, — e o pau caiu à água.
– Espera aí, ó Mourilho, — que te quero dá-la paga!
– Come esperarei eu, meu senhor, — se meu sangue vai pela água?
Versión de Nuez (ay. Aliste, ant. Aliste, p.j. Zamora, ant. Alcañices, Zamora, España). Recitada por Rosa Fernández. Recogida por Diego Catalán y Álvaro Galmés, 00/01/1948(Archivo: AMP; Colec.: María Goyri-Ramón Menéndez Pidal). Publicada en Catalán Siete siglos, 1969, pp. 136-137. Reeditada en Petersen Web-2006, Texto. (ms. original, p. 2). 078 hemist. Música no registrada.
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Paseándose anda
el morito por las sendas de Granada;
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2
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mirándose anda
a Valencia, que estaba muy bien cercada:
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--¡Oh Valencia,
oh Valencia, así tú fueres quemada,
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4
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primero fuiste
de moros que de cristianos cercada!
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Tres hijas
tiene el rey, todas tres mis cautivadas:
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6
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una me ha de
hacer la lumbre y otra me ha de hacer la cama,
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otra, antes de
medianoche, ha de ser mi enamorada
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8
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y su madre
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Oyéndolo estaba
el buen rey de altas salas donde estaba,
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llamó a su hija
más chiquita, a la que llaman Mariana:
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--Aprisa, ponte
el vestido, aprisa el zapato calza
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12
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y súbete a ese
balcón a esa ventana más alta;
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a ese moro que
ahí viene entreténmelo en palabras,
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14
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las palabras
eran pocas, de amores sean tocadas.
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--¿Yo qué le he
d`ecir, mi padre, yo de amores no sé nada?
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--Tú dile lo
que quisieres, de amores seán tocadas.--
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--Vaya con
Dios, el morito, el que vas por la calzada,
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18
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siete años va
para ocho que por ti no me peinaba.
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--Otros tantos,
la señora, que por ti no corto barba.
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20
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Tírate de ese
balcón, de esa ventana más alta,
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que yo te
recogería en alas de la mi capa.
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22
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Toma esta
manzana de oro, el pinzón de fina plata.
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--¡Que mucha
fineza es esa pa quien no merece nada!
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24
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De esas
manzanas, el moro, mi padre tenía un arca.
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Vete con Dios,
el morito, no digas que te soy falsa,
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26
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que en las
cuadras del mi padre un caballo se ensillaba,
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no sé si es
para ir a moros, no sé si es para ir a caza.
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28
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--No tengo
miedo a tu padre, ni a todos los de la cuadra,
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sino es a un
potrezuelo, hijo de esta yegua baya,
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30
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que a mí me lo
habían hurtado en las sendas de Granada.
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--Ese caballo
el morito, mi padre le da cebada
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y cada vez que
le da pienso le comía media carga.--
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Al estar
n`estas razones, el su padre que asomaba.
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34
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Donde pon la
yegua el pie, pone el caballo la pata.
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--¡Oh malhaya,
el potrezuelo, que a la yegua no la alcanza!
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36
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--Yo no la
quiero alcanzar porque es la mi madre Baya.--
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Al pasar un
arroyuelo, al llegar a una esplanada,
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le tira
lanza y se la deja clavada.
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--Atrás, atrás,
el morito, que me llevas una alhaja.
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Variante: -22b: rica plata.
Nota: Véase fotocopia del ms. original.. La nuera de Rosa Fernández, Rosa Fernández Fernández, ha sido entrevistada y grabada varias veces por miembros del SMP (más recientemente en el verano de 2001) También figura este romance entre su repertorio.
Fonte desta versão-ocorrência de nuestros hermanos: Pan-Hispanic Ballad Project,University of Washington.
O Romanceiro deve ser considerado como um só ("pan-hispânico"), conforme se designa no Catálogo General.
Consulte online o Romanceiro Pan-Hispânico:
Os romances de contexto histórico peninsular, onde ainda é evidente a componente épica, correspondem a romances derivados de cantares de gesta primitivos ou de suas prosificações (Penitência do Rei Rodrigo; Queixas de D. Urraca; O Cid e o Conde Lázaro; Cid e o Mouro Búcar) e a romances noticiosos (Morte do Príncipe D. Afonso de Portugal; Morte do Príncipe D. João).
Os romances podem ser também representantes das baladas europeias: são os chamados novelescos. Nestes, os temas e os motivos são múltiplos e preponderam as componentes lírica, sentimental e dramática – não já a épica que ainda subsiste nos romances carolíngios e de contexto histórico-peninsular. Não são manifestamente históricos, mas, sendo lendários, em princípio, poderão assentar em factos reais.
A divulgação do Romanceiro Sagrado faz-se, sobretudo, a partir do século XVI, em que se observa uma preocupação apologética e catequética influenciada pelo Concílio de Trento. Osciclos «de Natal» e «da paixão de Cristo» têm como fontes quer os evangelhos canónicos quer os apócrifos. É de notar que os romances profanos «a lo divino» tornam-se importantes na difusão de alguns temas. Para além dos romances dedicados à virgem Maria, existem ainda aqueles que compõem os ciclos de santos e de milagres, relacionando-se, por isso, com aslendas hagiográficas. A maioria dos romances religiosos torna-se em orações, o que não é de admirar, pois são de teor altamente edificante e moralista.
Para além destas categorias temáticas de romances até agora enunciadas, existem outros que não cabem em nenhumas delas e que, no entanto, são muito importantes no contexto nacional, como é o caso da Nau Catrineta. Crê-se que é o romance tradicional mais conhecido pelos portugueses, talvez por ser de matéria épico-maravilhosa que, de alguma forma, se coaduna com a relação mitificada que o povo português tem com o seu passado de expansão ultramarina.
Nau Catrineta
tríptico de Almada Negreiros, na gare marítima de Alcântara, Lisboa.
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NAU CATRINETA
Lá vem a nau Catrineta que dá muito que contar:
passava um ano e um dia sobre las ondas do mar.
Já nã tinham que comer, já não tinham que manjar:
deitam sola de molho p’a o outro dia o jantar.
A sola era tão rija que não a puderam travar.
Logo deitaram as sortes para ver que haveram de matar,
logo foi cair a sorte no capitão-maioral.
– Assobe, assobe, marinheiro, àquele mastro real;
vê se vês terras d’Espanha e areias de Portugal.
– Não vejo terras d’Espanha, nem areias de Portugal;
só vejo três meninas dobaixo dum laranjal:
?a assentada a coser e outra na roca a fiar,
e a mais formosa de todas está no meio a chorar.
– Todas três são minhas filhas, quem me dera as abraçar,
e a mais fermosa de todas contigo há-de casar.
– Eu não quero as tuas filhas, que te custou a criar.
– Dou-te o meu cavalo branco, que lá não há outro igual.
– Eu não quero esse cavalo, que te custou a ensinar.
– Dou-te a nau Catrineta para com ela navegare.
– Não quero a nau Catrineta que te custou a ganhare;
só quero a tua alma para comigo lovare.
– Arrenega-te de Deus, diabo, que me andas àtentare;
a minha alma é para Deus, e o corpo eu deito p’ra’o mare.
No outro dia a seguir estava a nau Catrineta em terra a varare.
Recitado por Domingos Abreu, de 76 anos de idade (natural da Ponta do Sol, Madeira), no dia 12 de Setembro de 1971, em Hayward (EUA – Califórnia) (in Costa Fontes 983 a: v. 9)
Gravura da Nau Catrineta.
CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO
Perante a dificuldade e a complexidade na classificação dos romances tradicionais,Michelle Débax (Romancero, Madrid, 1982, pp. 5-8) aponta os critérios através do determinante que acompanha a referência a um romance, a saber:
- a história (romance velho, romance novo, primitivo);
- a geografia (romance catalão, da região X);
- o autor (romance trovadoresco, jogralesco);
- o transmissor (de cego, de tradição oral, de cordel);
- a função (noticioso, segada);
- a matéria ou assunto:
- segundo a origem do tema: épico-nacional, carolíngio, fronteiriço;
- segundo o conteúdo: odisseico, de amor fiel, de incesto;
- ou segundo os protagonistas: do Cid, de Beltrão, de Gerinaldo;
- o estilo (épico, épico-lírico, erudito, vulgar).
COLECTORES E AMANTES DO ROMANCEIRO
Não devo terminar este texto sem antes referir a importância de escritores do séc. XIX, como Almeida Garrett (Romanceiro, 1843-1851) e Teófilo Braga (Romanceiro Geral Português, 1906-1909), que redescobriram e valorizaram o Romanceiro que corria pela boca do povo. Foi, no entanto, o conceituado filólogo José Leite de Vasconcellos quem sistematizou o estudo do Romanceiro em moldes idênticos aos actuais. Pouco a pouco foi coligindo o corpuspostumamente editado por Manuel Viegas Guerreiro, Maria Aliete Galhoz e Lindley Cintra, entre outros, e que deve ser considerado como a mais importante colecção de romances tradicionais publicada até hoje.
Muito embora as colecções de romances incluam produções recolhidas nos Açores,chamo também a atenção para Romanceiro Popular Açoriano da responsabilidade de Armando Cortes-Rodrigues.
Na mochila de soldado levou para os Açores o manuscrito do Romanceiro, que sempre com ele tem andado. Em Angra encontrou uma mulata brasileira, mucama de sua irmã e émula de Rosa de Lima. Essa e outras criadas velhas da família aumentam a sua colecção de «romances» e reacordam na sua memória o paraíso perdido que é a idade infantil. Homem feito, Garrett procura, como em criança, os carinhos da mãe. […] Para a distrair, Garrett deixar-lhe-á o Romanceiro ao embarcar para São Miguel. E a esse facto deverá a salvação do livro que, por ser do povo, não é menos seu. Aquela que o amparou na meninice, guardando nas mãos carinhosas a sua obra, protege-a contra o Destino. (in O Romance de Garrett, José Osório de Oliveira, Ed. Bertrand, 1952)
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
CARREIRO, José. “Romanceiro Português”. Portugal, Folha
de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 01-04-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/04/romanceiro-portugues.html
(2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/04/01/romanceiro.aspx)
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