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domingo, 23 de novembro de 2008

É A HORA! (Fernando Pessoa)


        

    

Com que então meu Pessoa esta oficina

de impérios ia dar ainda o Quinto?

Isto deu afinal foi em latrina

p’ra vomitar do império o vinho tinto.

    

Isto deu foi a coisa ultramarina

ao cubano como ordena o século xx.

Pediste o Encoberto à medicina?

Isto não pode dar. Isto é pedinte.

     

Mas descansa num verso teu descansa:

outra vez conquistámos a distância

não do mar mas a outra a lutuosa

     

latitude de Pátria que se apaga.

Tua estrofe Pessoa foi pressaga:

essa distância, essa sim, é nossa.

     
Natália Correia,  Epístola aos Lamitas, 1976                                                 
     
     
     
     
*     
     
     
     
     
Os sebastiaças trombos não deixaram partir
Portugal para o Brasil.
Vagos ficàmos da amurada aos tombos
Para a largada rombos
Do corpo de Portugal.
    
Mas a Hora deixada ao sono vil
Dos que provendo tudo podem nada
Mais que o fôgo senil
Do Império Final,
Cintila na amurada:
Não há Portugal e Brasil.
Brasil é Portugal.
     
     
Mário Cesariny Vasconcelos,                                             
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989                                             
   
   
   
    


    
    
    
O INFANTE
    
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce, 
Deus quis que a terra fosse toda uma, 
Que o mar unisse, já não separasse. 
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
  
E a orla branca foi de ilha em continente, 
Clareou, correndo, até ao fim do mundo, 
E viu-se a terra inteira, de repente, 
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. 
Do mar e nós em ti nos deu sinal. 
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. 
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
  
Fernando Pessoa, Mensagem
O INFANTE

Aos homens ordenou que navegassem 
Sempre mais longe para ver o que havia 
E sempre para o sul e que indagassem 
O mar, a terra, o vento, a calmaria 
Os povos e os astros 
E no desconhecido cada dia entrassem
  
Sophia de Mello Breyner Andresen,
in O Búzio de Cós, Ed. Caminho, 1990









MAR SALGADO

Ó mar salgado, quanto do teu sal 
São lágrimas de Portugal! 
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram! 
Quantas noivas ficaram por casar 
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena 
Se a alma não é pequena. 
Quem quere passar além do Bojador 
Tem que passar além da dor. 
Deus ao mar o perigo e o abismo deu, 
Mas nele é que espelhou o céu.


Fernando Pessoa, Mensagem

































PRAIA DAS LÁGRIMAS

Ó mar salgado
Eu sou só mais uma
Das que aqui choram
E te salgam a espuma

Ó mar das Trevas
Que somes galés
Meu pranto intenso
Engrossa as marés

Ó mar das Índias
Lá nos teus confins
De chorar tanto
Tenho dores nos rins

Choro nesta areia
Salina será
Choro toda a noite
Seco de manhã

Ai ó mar Roxo
Mar abafadiço
Poupa o meu homem
Não lhe dês sumiço

Que sol é o teu
Nesses céus vermelhos?
Que eles partem novos
E retornam velhos?

Ó mar da calma
Ninho do tufão
Que é do meu amor?
Seis anos já lá vão…

Não sei o que o chama
Aos teus nevoeiros
Será fortuna
Ou bichos carpinteiros?

Ó mar da China
Samatra e Ceilão
Não sei que faça
Sou viúva ou não?

Não sei se case
Notícias não há
Será que é morto
Ou se amigou por lá?
Letra de Carlos Tê,
música de Rui Veloso,
do álbum Auto da Pimenta



O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar 
Na noite de breu ergueu-se a voar; 
À roda da nau voou três vezes, 
Voou três vezes a chiar, 
E disse: "Quem é que ousou entrar 
Nas minhas cavernas que não desvendo, 
Meus tectos negros do fim do mundo?" 
E o homem do leme disse, tremendo: 
"El-Rei D. João Segundo!"

"De quem são as velas onde me roço? 
De quem as quilhas que vejo e ouço?" 
Disse o mostrengo, e rodou três vezes, 
Três vezes rodou imundo e grosso. 
"Quem vem poder o que só eu posso, 
Que moro onde nunca ninguém me visse 
E escorro os medos do mar sem fundo?" 
E o homem do leme tremeu, e disse: 
"El-Rei D. João Segundo!"

Três vezes do leme as mãos ergueu, 
Três vezes ao leme as reprendeu, 
E disse no fim de tremer três vezes: 
"Aqui ao leme sou mais do que eu: 
Sou um Povo que quer o mar que é teu; 
E mais que o mostrengo, que me a alma teme 
E roda nas trevas do fim do mundo, 
Manda a vontade, que me ata ao leme, 
De El-Rei D. João Segundo!"


Fernando Pessoa, 9-9-1918
Mensagem


O HOMEM DO LEME

Sozinho na noite
um barco ruma, para onde vai?
Uma luz no escuro
Brilha a direito, ofusca as demais

E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo impor-lhe uma fé
Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

E uma vontade de rir
nasce do fundo do ser
E uma vontade de ir
Correr o mundo e partir
A vida é sempre a perder

No fundo do mar
Jazem os outros, os que lá ficaram
Em dias cinzentos
descanso eterno lá encontraram

E mais que uma onda, mais que uma maré
Tentaram prendê-lo impor-lhe uma fé
Mas, vogando à vontade, rompendo a saudade
Vai quem já nada teme, vai o homem do leme

[…]

No fundo horizonte
Sopra o murmúrio, para onde vai?
No fundo do tempo
Cresce o futuro, é tarde de mais
Letra de Tim,
música de Xutos & Pontapés,
do álbum Cerco

      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/11/23/mensagem.aspx]              


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

                         
 

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

15 DESATINÓNIMOS PARA FERNANDO PESSOA

      
Helder Mendez (1970- )


Fernando Pessoa nos copos com Ernest Hemingway, em Havana; Fernando Pessoa como manager dos Village Persons, no Rock in Rio; Fernando Pessoa com Toulouse Lautrec, no dia da inauguração do Moulin Rouge; Fernando Pessoa nas ilhas, com Gauguin e Van Gogh; Fernando Pessoa a dar aulas de inglês a um puto traquina; Fernando Pessoa no Parque dos Poetas, em Oeiras; Fernando Pessoa com os poetas do Amazonas. Fernando Pessoa em toda a parte, uno e indivisível. Fernando Pessoa plural. Universal. Como agora se diz: incontornável.
      
Desatinónimos? Obviamente. Desatinos com heterónimos. São 15 contos. Prova de amor ao Fernando António Nogueira Pessoa, fonte de inspiração para uma escrita poético-subversiva, tangencial à obra de um génio.
     
Segundo o seu autor, Luís Graça, o livro 15 desatinónimos para Fernando Pessoa não foi planeado. Aconteceu. Muito por causa dos colóquios ocorridos na Casa Fernando Pessoa. Quase todos os contos foram escritos nas madrugadas subsequentes às sessões, ainda ébrio de tudo o que tinha ouvido e aprendido.
     
    
  
  
     
     
     
      
Como pode ser tão belo um fim de tarde?
      
A Dra. Tereza Frisa-Robes não o compreendia. Era coisa que a ultrapassava. Mas decidiu comemorar o fenómeno: organizando um grandioso congresso de heterónimos. O “1° Maxi-Congresso da Heteronímia Pessoana” decorreu num castelo de Edimburgo, próximo do Loch Ness.
      
O monstro não foi convidado, até porque no havia uma certeza cabal da sua existência. E também porque não constava do “mailing”. Para além de várias opiniões mais do que duvidosas sobre a obra do poeta português.
      
Em compensação, Chris de Burgh compareceu, na qualidade de convidado especial, patrocinado pelo uísque “Highland Bataclan”, cujo nome derivava de um famoso bordel, em tempos frequentado pelo escritor Jorge Amado.
      
Os trabalhos decorreram sempre de madrugada, entre a meia-noite e as oito da manhã, porque os heterónimos adoravam jogar golfe de tarde e depois do jantar não prescindiam de abalar até ao “Deep Throat”, um bar acolhedor, propriedade de Linda Amor-de-Laço, uma venezuelana de ascendência hawaiana, radicada na Escócia há um ror de anos.
      
O único heterónimo que não aguentava a bebida era o Cheva1ier de Pas, que tinha a resistência ao álcool própria de uma criança de seis anos. Por isso, era necessário que alguém o carregasse às costas, de regresso ao castelo, onde assistia às sessões em permanente estado de embriaguez letárgica.
      
A ordem de trabalhos era muitíssimo completa, ou não tivesse sido proposta pela Dra. Tereza Frisa-Robes. Sem mais delongas, aqui se dá à estampa a futuramente super-citada ordem de trabalhos:
1 - Sessão de abertura. Boas-vindas aos participantes. Uma palavra amiga.
2 - A heteronímia em Pessoa: brincadeira parva, esquizofrenia, passatempo ou obsessão literária?
3 - Aprovação do orçamento para 2006/2007.
4 - Assuntos diversos.
[…]
Luís Graça,
Lisboa, ed. autor, 2007




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Índice:
     
          

     

 
EXPLICAÇÕES POSSÍVEIS DA HETERONÍMIA
       
       
Vários caminhos convergentes, assinaláveis nas prosas inéditas, nos levam a explicações possíveis da heteronímia – como se a pluralidade estivesse realmente no cerne do "caso" literário de Fernando Pessoa e a consciência disso manejasse os fios do seu pensamento.
       
Eis algumas dessas explicações:
       
1ª) A constituição psíquica de Pessoa, instável nos sentimentos e falho de vontade, teria gerado a multiplicação em personalidades ou personagens do drama em gente.
       
Pessoa explica o aparecimento dos heterónimos dizendo que a origem destes reside na sua histeria, provavelmente histeroneurastenia[1], logo numa "tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação".
       
Vários fragmentos das Páginas Íntimas atendem "à dispersão do eu".
       
2ª) A qualidade de poeta de tipo superior levá-lo-ia à despersonalização. Com efeito, na concepção de Fernando Pessoa, segundo um fragmento inédito, há quatro graus de poesia lírica e no cume da escala, onde ele se coloca, o poeta torna-se dramático por um dom espantoso de sair de si.
       
No segundo grau, o poeta ainda mais intelectual, começa a despersonalizar-se, a sentir, não já porque não sente, mas porque pensa que sente, a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecâmara da poesia dramática, na sua essência íntima. O temperamento do poeta, seja qual for, está dissolvido pela inteligência. A sua obra é unificada só pelo estilo, último reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistência consigo mesmo.
       
“O quarto grau da poesia lírica é aquele muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda, mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalização."
       
Não só sente, mas vive os estados de alma que não tem directamente, supondo que o poeta, evitando sempre a poesia dramática, externamente, avança ainda um passo na escala da despersonalização.
       
Certos estados de alma, pensados e não sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos tenderão a definir, para ele, uma pessoa fictícia que os sentisse sinceramente.
       
Não se detém Pessoa precisamente no limiar do seu caso excepcional de poeta múltiplo, autor de autores?
       
A heteronímia seria o termo último de um processo de despersonalização inerente à própria criação poética e mediante o qual Pessoa estabelece uma axiologia literária.
       
O poeta será tanto maior quanto mais intelectual, mais impessoal, mais dramático, mais fingidor – é o sentido pleno da "Autopsicografia".
       
O progresso do poeta dentro de si próprio, realiza-se pela autoria sobre a sinceridade, pela conquista (lenta, difícil), da capacidade de fingir: "A sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem de vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, pode levar o espírito a esta culminância. "
       
Exprimir poeticamente significa fingir.
       
3ª) A qualidade de português levaria o poeta a despersonalizar-se, a desdobrar-se em vários.
"O bom português é várias pessoas – reza um fragmento inédito. Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim – Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa e quantos mais haja havidos ou por haver".
       
Se um indivíduo deve despersonalizar-se para seu progresso interior, uma Nação deve desnacionalizar-se – e esta é em particular a vocação portuguesa.
       
O ideal que Pessoa inculca a Portugal, é consequentemente o que se propõe a si próprio: "Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa" – o pluralismo, o politeísmo.
       
4ª) A multiplicidade do escritor seria o produto necessário de uma nova fase de civilização – fase que Fernando Pessoa caracteriza ao explicar o Orfeu e o sensacionismo dum ângulo sociológico.
       
A decadência da fé, quebra de confiança na ciência, a complexidade de opiniões traduz-se pela ânsia actual de "ser tudo de todas as maneiras".
       
A poesia poderá entender-se também como resposta a um estado colectivo de crise, mas em sentido diferente, isto é, como antídoto, como bálsamo espiritual.
       
Caeiro, libertador imaginário, um remédio (provisório) para a dor de pensar de que sofre Pessoa ortónimo, uma fuga.
       
Pessoa ter-se-ia dividido para se compensar.
       
Heteronímia seria um modo de suprir a carência, verificada na época, de personalidades superiores, e em especial de grandes personalidades na literatura portuguesa: "Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de génio fazer senão converter-se ele só em literatura?".
       



[1] No seu Tratado de Psiquiatria Clínica, vol. I, o inglês W. Mayer Gross diz, na página 401: «Os hebefrénicos podem seguir um caminho por largos tempos diagnosticados de "neurasténicos" e "neuróticos"... Sentem-se atraídos por ideias pseudo-científicas e pseudo-filosóficas, sentem-se capazes de grandes descobrimentos e invenções.» Por sua vez, afirma-se no Dicionário Enciclopédico de Medicina (p. 871) que «os enfermos (esquizofrénicos na forma hebefrénica) entregam-se a excessos de romantismo, de filosofismo ou de misticismo.»





             
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/11/10/desatinonimos.aspx]        


 

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Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html