Páginas

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

BERNARDO SOARES

Miguel Yeco, O Teatro Íntimo do Ser, 1896



Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças.
Bernardo Soares         






            “O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual […]”
    
Fernando Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935



Ora, se Pessoa pouco nos diz desta sua "personalidade literária", dele ficamos a conhecer, pela leitura do Livro, a condição de ajudante de guarda-livros, vivendo e trabalhando na Baixa lisboeta, contactando com o universo cinzento da paisagem que o rodeia, a citadina e a humana, a dos cafés que frequenta, a do escritório da Rua dos Douradores, com o patrão Vasques, o Moreira ou o moço de fretes.Vivia num quarto alugado e conversava sobre literatura com Fernando Pessoa, tendo mostrado apreço pela revista Orpheu. Ter-lhe-ia confessado mesmo que, “não tendo para onde ir, nem amigos que visitasse, soia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também”. Da sua escrita resultaram os fragmentos do que viria a ser oLivro do Desassossego.
      
Jorge de Sena, um dos primeiros a estudar o Livro do Desassossego, afirma que Soares representaria um heterónimo mais próximo de Pessoa do que os outros, por “assumir a meditação dispersa e fragmentária de uma sociedade de heterónimos na disponibilidade. O livro dele era uma espécie de refugo de tudo o que não chegava a ser de ninguém dos outros; e uma espécie de depósito da fragmentária tristeza de Pessoa, que, até certo ponto, para que ele existisse, sofria a suspensão existencial deles.” E acrescenta: “Se nem todos os trechos são de igual valor, alguns serão da mais bela prosa da língua portuguesa. Neles perpassam os temas, às vezes mesmo fantasmas de estrutura, dos poemas de todos os heterónimos e ortónimos. Tudo o que a poesia plenamente realizada, ou a diversificada prosa, deles todos foi - está presente nestes fragmentos feitos da análise espectral das vivências que pululavam dentro do homem Fernando Pessoa, acotovelando-se e atropelando-se para serem, ou, pouco a pouco, desvanecendo-se nas trevas inferiores, como espíritos que se cansam de comparecer à mesa de pé de galo a que os convocaram demasiadamente. O racionalismo transcendental de Fernando Pessoa; o misticismo irónico e frio de outro Fernando Pessoa; a meditação existencial de Álvaro de Campos; o empiriocriticismo de Alberto Caeiro; a consciência cansadamente hedonística da fugacidade de tudo, que era de Ricardo Reis; o neo-positivismo espiritualista do autor dos 35 Sonnets; a lascívia reprimida do autor de Antinouso anarquismo paradoxal do Banqueiro , etc., etc.- e, sob tudo isto, como uma maldição, de que todos são filhos, como um pecado original a que todos devem o ser, a terrível incapacidade de amar, a medonha demonstração de que o homem existe pelos seus actos e não é outro senão eles, e que não existe, senão como ficção, quando, em lugar de aceitar ir sendo, escolhe fixar-se na pedagogia monstruosa de ser por conta alheia, de perder-se na floresta do alheamento.”
    




    
INTERTEXTUALIDADE COM OS OUTRO(S) PESSOA(S)
- O MESMO E O OUTRO
    
Ao lermos o Livro do Desassossego somos sensíveis à presença no Eu/escrita de Soares os outros Pessoas já nossos conhecidos.
    
Por exemplo, Fernando Pessoa ortónimo:
    
Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.”[f.154] - cf.este poema com, por ex.:”Entre o sono e o sonho”
    
E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.” - cf. com "Há no firmamento”
    
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?” [f.21]
    
“[...] E num delírio intersticiado de certezas, leve, breve, suave, o murmúrio das águas de todos os parques nasce, emoção, do fundo da minha consciência de mim.” [f.98] - cf. com “Leve, breve, suave”
    
     
Ou Ricardo Reis:
    
Nada pesa tanto como o afecto alheio - nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afecto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprimem; ambos nos buscam e procuram, não nos deixam sós” [f.382]- cf. com “Não só quem nos odeia ou nos inveja”.
    
Nunca amamos ninguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma é a nós mesmos - que amamos” [f.416] - cf. com “Ninguém a outro ama, senão que ama”.
    
O verdadeiro sábio é aquele que assim se dispõe que os acontecimentos exteriores o alterem minimamente” [f.418] - cf. com “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo” e com “Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia”.
    
    
...Alberto Caeiro:
    
Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável [?] o sol que vê todos, a lua que a malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.” [f.16] - cf. com qualquer poema de “O Guardador de Rebanhos”.
    
Cada rosto, ainda que seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hoje não é ontem. Cada dia é o que é, e nunca houve outro igual no mundo. Só em nossa alma está a identidade - a identidade sentida, embora falsa, consigo mesma - pela qual tudo se assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insuficiente e contínua.” [f.67] - idem, especialmente com o poema II.
    
“Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que pudesse ver isto como se não tivesse com ele mais relação que o vê-lo - contemplar tudo como se fora o viajante adulto chegado hoje à superfície da vida! Não ter aprendido, da nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas, poder vê-las na expressão que têm separadamente da expressão que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua realidade humana independente de se lhe chamar varina, e de se saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus o vê. Reparar em tudo pela primeira vez, não apocalipticamente como revelação do Mistério, mas directamente como floração da Realidade.” [f.87] - idem, especialmente com poema XXIV.
    
    
...Álvaro de Campos:
    
“Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o pensamento; não desejar muito senão com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e táctica, naturalizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que de aqui estou vendo com as latas pequenas de graxa da nova marca”. [f.30] - cf. com “A melhor maneira de viajar é sentir” e “Passagem das Horas”
    
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamento a história inútil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há.” [f.118] - cf. com “Ode Marítima”
    
Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado, porém não cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos dispersos. Em sonhos consegui tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quantos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! [...] Quantos Césares fui, mas não dos reais. [...] Quantos Césares fui, aqui mesmo na Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na minha imaginação[...] Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto.” [...] - [f. 132] - cf. com “Tabacaria” e “Pecado original” - versos 16, 21 a 23: "Quantos Césares fui!"
    
Estou hoje lúcido como se não existisse.” [f. 416] - cf. com “Tabacaria”.
    
Doem-me a cabeça e o universo.” [f.430] - cf. com “Tenho uma grande constipação” - último verso: "Preciso de verdade e de uma aspirina."
    
De certo modo, Soares vem-se-nos revelar como alguém que está por detrás de todos os outros Pessoa(s), que existe com todos e em todos, como todos existem em si- o que, necessariamente, vem colocar a questão da heteronímia em moldes diferentes, vem dizer-nos que somos todos o mesmo e o outro - nesse sentido poderão entender-se as palavras, atrás referidas, de Eduardo Lourenço sobre o Livro do Desassossego como texto-rasura e como textosuicida, texto do ser/não ser que permanentemente se descobre como impossibilidade.
    


    
ALGUNS DOS TEMAS  ABORDADOS NO LIVRO DO DESASSOSSEGO:
    
Amor
Arte literária
Consciência/Inconsciência
Decadência
Eu vário e múltiplo
Indiferença/abdicação
Inércia/acção
Leituras
Língua-linguagem
Lisboa - cidade; Lisboa - ciclos do dia; Figuras da cidade; Quotidiano da cidade;
Morte
Noite
O Eu de Bernardo Soares
Paisagem
Passado-infância
Relação Eu/outros
Sensacionismo
Sensações
Ser e (des)conhecer-se
Sonho /realidade
Tédio
Trovoadas
Viagem-viagens
Viagens
AMÉLIA PINTO PAIS
in Para Compreender Fernando Pessoa, PortoAreal Editores, 1996




 

 LIVRO DO DESASSOSSEGO - temas e motivos poéticos:
O imaginário urbano.
O quotidiano.
Deambulação e sonho: o observador acidental.
Perceção e transfiguração poética do real.

Linguagem, estilo e estrutura: a natureza fragmentária da obra.

Programa e Metas Curriculares de Português. Ensino SecundárioJaneiro de 2014. Helena C. Buescu, Luís C. Maia, Maria Graciete Silva, Maria Regina Rocha. Governo de Portugal - Ministério da Educação e Ciência

 

 

 

       







a presença de Bernardo Soares
nos escritores contemporâneos:



BOA NOITE, SENHOR SOARES
    
    
Declarariam depois que o senhor Soares se não distinguia de qualquer outro sujeito, mas a verdade é que ele dera sempre mostras de ser um bocadinho esquisito. Espiávamo-lo no seu posto com uma ruga na testa, a tentar traduzir nas cartas que redigia aquelas designações antigas, e aqueles números que era indispensável reduzir a jardas, a polegadas e pés. Nos dias em que se achava menos aborrecido o senhor Soares gostava de falar com os rapazes sobre certos tecidos que eram a seda, originária de Samarcanda, ou os brocados, provenientes de Isphaham, e ficava, muito pensativo, a fumar os seus cigarros de onça que lhe crestavam os dedos. Ele olhava para nós com toda a atenção, fixando a vista no senhor Moreira, no senhor Borges, nos caixeiros, no moço, e até mesmo no gato Aladino, com uma espécie de ternura que nos assustava, e acendia outro cigarro, e voltava à sua escrita. Não faltava quem lhe fizesse notar que como tradutor andava a ser explorado, pagando-lhe o patrão Vasques muito menos do que aquilo que ele se recusava a que me trocassem por um novo, e mergulhava nele a pena com o maior dos vagares enquanto ia pensando em coisas que não deveriam ser deste Mundo. Perto do sítio onde o senhor Soares trabalhava, e por cima do lugar onde costumava sentar-se o Alves, um maluquinho que tivera alta do Miguel Bombarda, e a quem por esmola consentíamos que nos dobrasse as folhas de papel pardo, e enrolasse os retroses das encomendas que recebíamos, estava um calendário de 1931 que ninguém quisera tirar da parede. O senhor Soares punha-se a fitá-lo com grande concentração, e acabava por sorrir para aquela gravura da rapariga de lábios vermelhos, de fita rosa nos negros cabelos, de blusa de decote aberto, e a abraçar um molho de papoulas. Surpreendíamo-lo noutras ocasiões, a examinar com minúcia o mata-borrão, e percebíamos que o senhor Soares se sentia fascinado pelos rabiscos que tinham sido mal absorvidos, todos negros porque ele só usava tinta dessa cor, e salpicados de borrões que se assemelhavam a ilhas no meio do nevoeiro. Cheio de curiosidade, atrevi-me a ir verificar uma vez o que lá se encontrava estampado, e descobri a assinatura dele, do senhor Soares, às avessas, e ao invés, mas fui-me logo embora com a ideia de que tinha cometido urna indiscrição que não se desculpava. A minha maior surpresa aconteceu porém numa tarde em que estávamos apenas os dois no escritório, e o senhor Soares saiu sem uma palavra, deixando-me sobre a secretária um barquinho de almaço pautado, e com este nome no casco, desenhado a lápis, António. Nunca o meu pai construíra para mim fosse o que fosse que a isso se comparasse, e eu guardei o barquinho durante longo tempo na gaveta onde tinha o fio de oiro que me oferecera a minha mãe, e o terço branco da comunhão solene. Mas havia momentos mais raros em que o senhor Soares nos causava bastante sobressalto, atirando de repente com a caneta para a secretária, e divertindo-se a vê-la rolar pelo declive do tampo. Foi isso o que sucedeu na manhã em que descortinou na borda do tinteiro uma mosca-varejeira nojenta, e em tons de verde e azul-escuro. O senhor Soares levantou-se do banco, e dirigiu-se à porta das escadas sem se virar para o espelho como se o espelho pudesse assassiná-lo. Tirou o chapéu do cabide, e nem sequer se despedindo como era seu hábito, fui eu quem disse muito em surdina, «Boa noite, senhor Soares.»

Mário Cláudio,
in Boa Noite, Senhor Soares, Publ. Dom Quixote, 2008






O MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER[1]
    
    
(à memória de Bernardo Soares)

O mundo dos pequenos funcionários
lembra-nos no fervor o patrão Vasques
e traz aos nossos actos mais diários
a poesia do mundo sem disfarces.

Quando longe do jogo das intrigas
(deram aos nossos dias emoção),
lembramos em agendas mais antigas
o que ficou aquém da ilusão.

Este mundo é perfeito como um ovo
de si suficiente e não merece
poder ser corrompido pelo novo.

Aqui em bom rigor nada acontece.
E vemos flutuar à nossa volta
um rumor sem um eco de revolta.
Luís Filipe de Castro Mendes,
 in O Jogo de Fazer Versos, Quetzal Ed., 1994



[1] «o modo funcionário de viver» (Alexandre O’Neill).







NATUREZA MORTA COM BERNARDO SOARES
     
    
Esta mesa de mármore
mó absorvente onde
as folhas espadanam,
põe-me na rota dessoutro
bojo calipígio onde o poeta
ele-mesmo copiava a escrita.

Vagueia a paisagem, irradiando-me;
embaciado sol me localiza,
sou eu, é minha a mesa,
meu o sossego, e mói.

Sobre o ringue sem patinadores,
cisterna seca à minha frente,
poluídas tílias em flor.
Ousarei invocar outro terreiro,
o sol-a-sol do só, a poluída vida,
os duplicados que o poeta fez?

Plagiadas arcadas:
e o meu olhar margina
as águas, pródigas águas
que redemoinham após a seca.

Luiza Neto Jorge,
 in A Lume, Assírio & Alvim, 1989




                
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/12/31/soares.aspx]
         


 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html

                         

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

RICARDO REIS



uma arte de viver




 
Sábat



O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS
   
   
Na biografa criada por Fernando Pessoa, Ricardo Reis partiu para o Brasil em 1919 e não houve mais notícias dele. Mas José Saramago, com a sua prodigiosa imaginação, fê-lo regressar a Lisboa, em 1935, quando soube da morte de Pessoa. E os dois encontraram-se. É um desses encontros que aqui se transcreve.



RICARDO REIS ENCONTRA FERNANDO PESSOA
   
   
Vai Ricardo Reis a descer a Rua dos Sapateiros quando vê Fernando Pessoa. Está parado à esquina da Rua de Santa Justa, a olhá-lo como quem espera, mas não impaciente. Traz o mesmo fato preto, tem a cabeça descoberta. [...] Fernando Pessoa sorri e dá as boas-tardes, respondeu Ricardo Reis da mesma maneira, e ambos seguem na direcção do Terreiro do Paço, um pouco adiante começa a chover, o guarda-chuva cobre os dois, embora a Fernando Pessoa o não possa molhar esta água, foi o movimento de alguém que ainda não se esqueceu por completo da vida, ou teria sido apenas o apelo reconfortador de um mesmo e próximo tecto, Chegue-se para cá que cabemos os dois, a isto não se vai responder, Não preciso, vou bem aqui. Ricardo Reis tem uma curiosidade para satisfazer, Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois, Não, diria antes que o produto da multiplicação de um pelo outro, Existe essa aritmética, Dois, sejam eles quem forem, não se somam, multiplicam-se, Crescei e multiplicai-vos, diz o preceito, Não é nesse sentido, meu caro, esse é o sentido curto, biológico, aliás com muitas excepções, de mim, por exemplo, não ficaram filhos, De mim também não vão ficar, creio, E no entanto somos múltiplos, Tenho uma ode em que digo que vivem em nós inúmeros, Que eu me lembre, essa não é do nosso tempo, Escrevi-a vai para dois meses, Como vê, cada um de nós, por seu lado, vai dizendo o mesmo, Então não valeu a pena estarmos multiplicados, Doutra maneira não teríamos sido capazes de o dizer. Preciosa conversação esta, paúlica, interseccionista, pela Rua dos   Sapateiros abaixo até à da Conceição, daí virando à esquerda para a Augusta, outra vez em frente, disse Ricardo Reis parando, Entramos no Martinho, e Fernando Pessoa, com um gesto sacudido, Seria imprudente, as paredes têm olhos e boa memória, outro dia poderemos lá ir sem que haja perigo de me reconhecerem, é uma questão de tempo. Pararam ali, debaixo da arcada, Ricardo Reis fechou o guarda-chuva, e disse, não a propósito, Estou a pensar em instalar-me, em abrir consultório, Então já não regressa ao Brasil, porquê, É difícil responder, não sei mesmo se saberia encontrar uma resposta, digamos que estou como o insone que achou o lugar certo da almofada e vai poder, enfim, adormecer, Se veio para dormir, a terra é boa para isso, Entenda a comparação ao contrário, ou então, que se aceito o sono é para poder sonhar, Sonhar é ausência, é estar do lado de lá, Mas a vida tem dois lados, Pessoa, pelo menos dois, ao outro só pelo sonho conseguimos chegar, Dizer isso a um morto, que lhe pode responder, com o saber feito da experiência, que o outro lado da vida é só a morte, Não sei o que é a morte, mas não creio que seja esse o outro lado da vida de que se fala, a morte, penso eu, limita-se a ser, a morte é, não existe, é, Ser e existir, então, não são idênticos, Não, Meu caro Reis, ser e existir só não são idênticos porque temos as duas palavras ao nosso dispor, Pelo contrário, é porque não são idênticos que temos as duas palavras e as usamos. Ali debaixo daquela arcada, disputando, enquanto a chuva criava minúsculos lagos no terreiro, depois reunia-os em lagos maiores que eram poças, charcos, ainda não seria desta vez que Ricardo Reis iria até ao cais ver baterem as ondas, começava a dizer isto mesmo, a lembrar que aqui estivera, e ao olhar para o lado viu que Fernando Pessoa se afastava, só agora notava que as calças lhe estavam curtas, parecia que se deslocava em andas, enfim ouviu-lhe a voz próxima, embora estivesse ali adiante, Continuaremos esta conversa noutra altura, agora tenho de ir, lá longe, já debaixo da chuva, acenou com a mão, mas não se despedia, eu volto.

José Saramago,
O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ed. Caminho, 1984






Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                  (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                  Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                  E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                   E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                   Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                   Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                    Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
                    Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis







HOMENAGEM A RICARDO REIS
    
   
I
   
Não creias, Lídia, que nenhum estio 
Por nós perdido possa regressar 
            Oferecendo a flor 
            Que adiámos colher. 

Cada dia te é dado uma só vez 
E no redondo círculo da noite 
             Não existe piedade 
             Para aquele que hesita. 

Mais tarde será tarde e já é tarde. 
O tempo apaga tudo menos esse 
              Longo indelével rasto 
              Que o não-vivido deixa. 

Não creias na demora em que te medes. 
Jamais se detém Kronos cujo passo 
                Vai sempre mais à frente 
                Do que o teu próprio passo

Sophia de Mello Breyner Andresen,
 in DualMoraes Ed., 1972




Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supôr o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor! —
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espêlho se vê.
Mário Cesariny Vasconcelos,
O Virgem Negra, Assírio & Alvim, 1989



F. Pessoa, Júlio Pomar




Uma noite acordarei junto ao corpo infindável 
da amada, e meu sangue não se encantará. 
Então, rosa a rosa murcharão meus ombros. 
Quer dizer que a sombra carregará meus sentidos 
de distância, como se tudo fosse o cheiro 
que as ervas pungentemente perdem 
através do silêncio. 
Plácido chegarei à mesa, e de súbito 
meu coração se atravessará de gelo puro. 
O vinho? Perguntarei. Flores de sal cobrirão 
a luz poderosa do meu olhar. 
Tempo, tempo. Eu próprio perguntarei no recente 
pasmo da minha carne: o vinho? 
Rosa a rosa murcharão meus ombros. 

Então lembrarei a vermelha resina, o espesso 
murmúrio do sangue, 
o ocre e sobrenatural aroma das acácias. 
Tentarei encontrar uma forma. 
Com beijos antigos um momento ainda queimarei 
o corpo solitário da amada, direi palavras 
de uma ternura azebre. 
E uma vez mais me perderei, dizendo: o vinho? 
Rosa a rosa murcharão meus ombros. 
Herberto Hélder,
in A Colher na Boca, 1961






[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2008/12/22/reis.aspx]
   

 

Poderá também gostar de:

Fernando Pessoa - Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da obra de Fernando Pessoa, por José Carreiro. In: Lusofonia, https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/literatura-portuguesa/fernando_pessoa, 2021 (3.ª edição) e Folha de Poesia, 17-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/fernando-pessoa-13061888-30111935.html