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sábado, 1 de outubro de 2011

COMO ELREI MANDOU CAPAR HUUM SEU ESCUDEIRO POR QUE DORMIO COM HUUMA MOLHER CASADA (João Miguel Fernandes Jorge)


Parecia anunciar-se uma manhã solene aquelaem que descemos de Coimbra a Alcobaça. Depoismonteámos caçámos pelos dias da amizademeu trovador de grandes ligeirices.     
Entre mar e bosque um mar de imagensnunca arrebatado aos meus ciumentos olhos.Do abismo um bando de aves cinzentassolitárias no seu trabalho       
o mal inevitável deste país.Somos como as aves resignadas à solidãotu, amigo, vigiaste o meu sono       
nas costas longínquas do mar Atlânticoentre justas correrias e pecados de espanto.Amigo, ex-amicus, esqueceste o meu reino sobre o mundoo tempo que descemos sobre as dunas.Agora nada reconheces fronteira altíssima e confusanatural door.
       
João Miguel Fernandes Jorge, Crónica
Lisboa, Moraes Editores, 1977, p. 40
       
           
    P.CHARTERS d'AZEVEDO (Nasceu em Lisboa a 3/11/1946)
       
       
Em esta sesão vivia com el-rei um bom escudeiro, e para muito, mancebo, e homem de prole, e n'aquelle tempo estremado em assignadas bondades, grande justador e cavalgador, grande monteiro e caçador, luctador e travador de grandes ligeirices, e de todas as manhas que se a bons homens requerem, ‑ chamado por nome Affonso Madeira, ‑ por a qual rasão o el-rei amava muito e lhe fazia bem gradas mercês.
Este escudeiro se veiu a namorar de Catharina Tosse, e mal cuidados os perigos que lhe advir podiam de tal feito, tão ardentemente se lançou a lhe querer bem, que não podia perder d'ella vista e desejo: assim era traspassado do seu amor. Mas, porque lugar e tempo não concorriam para lhe fallar como elle queria, e por ter aso de a requerer ameude de seus deshonestos amores, firmou com o aposentador tão grande amisade que para onde quer que el-rei partia, ora fosse villa ou qualquer aldeia, sempre Affonso Madeira havia de ser aposentado junto, ou muito perto do corregedor. E havia já tempo que durava este aposentamento, sempre cerca um do outro; tendo bom geito e conversação com seu marido, por carecer de toda suspeita.
Affonso Madeira tangia e cantava, afóra sua apostura e manhas boas já recontadas, de guisa que por aso de tal achegamento, com longa affeição e falas ameude, se gerou entre elles tal fructo, que veiu elle a acabamento de seus prolongados desejos. E porque semelhante feito não é da geração das cousas que se muito encobram, houve el-rei de saber parte de toda sua fazenda, e não houve d'ello menos sentido que se ella fora sua mulher ou filha. E como quer que o el-rei muito amasse, mais que se deve aqui de dizer, posta de parte toda bemquerença, mandou-o tomar dentro em sua camara, e mandou-lhe cortar aquelles membros que os homens em mór preço tem: de guisa que não ficou carne até aos ossos, que tudo não fosse corto. E pensaram Affonso Madeira, e guareceu, e engrossou em pernas e corpo, e viveu alguns annos engelhado do rosto e sem barbas, e morreu depois de sua natural morte.
        
Fernão Lopes, Chronica de el-rei D. Pedro I, Capítulo VIII
«Como elrei mandou capar huum seu escudeiro por que dormio com huuma molher casada»
       
Beloved Prince, Vilela Valentin, 2016


       
Afonso Madeira (séc. XIV) foi um escudeiro do rei D. Pedro I de Portugal. Segundo a crónica de Fernão Lopes, era favorito do rei. Foi castrado por ter sido apanhado a dormir com Catarina Tosse, mulher casada com Lourenço Gonçalves, o corregedor da corte.
Esta passagem tem sido bastante discutida entre os historiadores portugueses, uma vez que sugere a homossexualidade do monarca.
        
Ricardo Cinalli - El Plato, 1997-8, 220 x 250 cm. Pastel on tissue paper layers:
   Ricardo Cinalli, O Prato, 1997-1998
       


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Reconfigurar o corpo : o fragmento nas poéticas de João Miguel Fernandes Jorge e Jorge Molder (tese de doutoramento, Margarida Maria Mendes Gil dos Reis Paulouro Neves, FLUL, 2007-2008).

       
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/01/AfonsoMadeira.aspx]

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