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segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ZECA AFONSO, CANTOR DE INTERVENÇÃO

Ofício da PIDE determinando a prisão de José Afonso
Ofício da PIDE determinando a prisão de José Afonso
          
          
Os músicos e cantores de intervenção sofreram a perseguição do regime do Estado Novo.
Nomes como os de Vitorino, Fausto, Adriano de Oliveira e Zeca Afonso, entre outros, foram sinónimo de contestação, oposição, luta pela liberdade.
As suas músicas e atuações eram proibidas, de modo que a sua voz fazia-se ouvir sorrateiramente.
Muitos deles sofreram a prisão e exílio.
             
Venham mais cinco, Zeca Afonso
José Afonso, Álbum: Venham Mais Cinco Gravado em Paris de 10 a 20 de Outubro de 1973

                          
A canção «A formiga no carreiro» de Zeca Afonso foi editada porque a fábula expressa nessa composição parece não ter sido interpretada pelos serviços de censura.
Proceda à sua decifração, tendo em conta que é uma obra artística em que se verifica um empenhamento sociopolítico.
           
A FORMIGA NO CARREIRO

A formiga no carreiro
Vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
Ao pé dum septuagenário
Larpou trepou às tábuas
Que flutuavam nas águas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
A formiga no carreiro
Vinha em sentido diferente
Caiu à rua
No meio de toda a gente
Buliu abriu as gâmbias
Para trepar às varandas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
A formiga no carreiro
Andava à roda da vida
Caiu em cima
Duma espinhela caída
Furou furou à brava
Numa cova que ali estava
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
José Afonso, Venham mais cinco, 1973.

             


   




LEITURA ORIENTADA DA LETRA DA CANÇÃO “A FORMIGA NO CARREIRO”
      
  Por que se diz que esta cantiga é uma fábula?
  Tendo em conta o regime político fascista que se vivia na época em que foi escrita a letra da canção, em que não se podia dizer abertamente o que se pensava, o que representa o “formigueiro” e o facto de as formigas andarem em “carreiro”?
  Simbolicamente a “formiga” e o “septuagenário” quem representam?
  Por que razão a formiga subiu às “tábuas” e trepou às “varandas”?
  Que apelo faz a formiga ao carreiro de formigas?
  O que pretendia com esse apelo?
  Simbolicamente, a que novo “rumo” se refere a formiga?
  Comente as atitudes da formiga e do formigueiro.

     
                     
Cartaz "AS FORMIGAS NO CARREIRO ACORDARAM!"
Manifestação de professores no Rossio, Lisboa, 2013-01-26

                         
*

Grândola, vila morena, ZECA AFONSO
       Em 17 de maio de 1964, José Afonso atuou na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, à qual dedicou “Grândola, Vila Morena”.  (A confirmar isto, o próprio cantautor dizia num apêndice da primeira edição do livro  Cantares: "Pequena homenagem à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde atuei juntamente com Carlos Paredes".)
 
De facto, esta canção descreve a Grândola, uma vila no Alentejo, a região que, ao albergar uma concentração política de esquerda, foi durante muito tempo o símbolo da oposição contra o regime.

"Grândola, Vila Morena" é a canção emblemática da Revolução dos Cravos e de todos os que participaram no Movimento das Forças Armadas (M.F.A.), é o símbolo da vitória da democracia.

Sobre a escolha desta canção como sinal para avançar com as tropas para derrubar o regime vigente de Marcelo Caetano, transcreve-se aqui o depoimento de Otelo Saraiva de Carvalho para a Revista do jornal Expresso nº 2165, de 2014-04-25:

“No dia 22 à noite, obtive a garantia da colaboração do João Paulo Diniz no Rádio Clube Português, a Rádio Renascença estava garantida pelo Carlos Albino, que tinha proposto a 'Grândola, Vila Morena'. A canção tinha sido cantada no dia 29 de março no Coliseu de Lisboa pelo Zeca Afonso na presença dos cantores de intervenção, e não tinha havido ação nenhuma da PIDE ou do capitão Maltez Soares, que estavam presentes. Tinha havido um acordo com a Casa da Imprensa para aquela gala. A canção não estava no índex da Censura. A canção, que passou às 0h20, foi uma senha de confirmação do que já estava em marcha em Lisboa.”

Note-se que para esse espetáculo os Serviços de Censura portugueses tinham proibido a interpretação de várias canções de José Afonso, entre as quais “Venham mais cinco”, “Menina dos olhos tristes”, “A morte saiu à rua” e “Gastão era perfeito”.

Ao escutarmos a canção “Grândola, Vila Morena” sentimos que o seu ritmo ordenado é apropriado ao ritmo cadenciado e marchante do pregão popular: “O povo unido jamais será vencido”.

Quanto à letra da canção, observamos que se faz o elogio de determinados valores e, de forma subentendida, a denúncia dos desvios e aberrações das instituições político-sociais salazaristas.


GRÂNDOLA, VILA MORENA   
     
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
       
José AfonsoCantigas do maio, 1971
             


LEITURA ORIENTADA DA LETRA DA CANÇÃO “GRÂNDOLA, VILA MORENA

 A partir da leitura das quatro primeiras quadras da letra da canção “Grândola, vila morena”, caracterize a cidade de Grândola e os seus habitantes (no mínimo 4 características diferentes).
 Por que razão na última quadra o poeta jura ter por companheira a vontade da vila de Grândola?
 Indiretamente que tipo de situações pretendia o autor criticar?
           
             
           
TEXTOS DE APOIO

   
                                        
TEXTO 1

Zeca Afonso serviu-se de dois instrumentos estratégicos para transmitir mensagens políticas e enganar a censura do Estado Novo: através da temática escolhida, sugeria e não revelava; através do estilo adotado, possibilitava a crítica velada, recorrendo ao hábil estratagema da plurissignificação dos signos utilizados e dos recursos expressivos escolhidos:

‑ as metáforas e as imagens enriqueceram a linguagem simbólica;

‑ a ironia e a sátira foram utilizadas como método para criticar o regime;  

‑ o estilo simples, a rima, o ritmo e as repetições contribuíram para que as mensagens fossem mais facilmente transmitidas e memorizadas e servissem de impulso mobilizador, conduzindo à ação;

‑ a utilização da quadra tornou mais permeável a forma de cantar e de divulgar aspetos essenciais, fazendo com que estes ficassem mais acessíveis;

‑ os jogos de paralelismo, a técnica do leixa-pren (repetição do último verso ou de algumas palavras do último verso de uma estrofe no primeiro verso da estrofe seguinte), a imitação da forma de cantar dos coros alentejanos criaram unidade, melodia e a vontade de cantar.

Outros recursos utilizados: adjetivação, personificação, antítese, enumeração, interrogação retórica, sinédoque, aliteração, eufemismo, perífrase, exclamação, apóstrofe e anástrofe.

O público ouviu as canções de intervenção, cantou-as em reuniões e em convívios, o que acabou por contribuir para a rápida divulgação do seu conteúdo e da sua mensagem.

Os temas acabaram por ajudar a reconhecer o que era cantado, tornaram-se essenciais e proporcionaram a adesão do público. Apelaram à luta, contra os males da Situação – os Vampiros, a guerra colonial (Menina dos Olhos Tristes) e o Inverno duradouro do regime (Qualquer dia) –, à unidade necessária (Venham mais cinco), à procura de um libertador e da libertação (Canto Moço) e à celebração da vitória de um povo livre (Grândola, Vila Morena).  

Zeca Afonso, ao utilizar uma temática ligada à realidade social do seu tempo, teve em vista: apelar à unidade; criticar a questão colonial; divulgar flagelos sociais (as mortes provocadas pelo regime e pela guerra colonial, os desertores, a emigração clandestina, a pobreza), consciencializar as pessoas sobre a situação social, económica e política que se vivia no país; dar esperança e encorajar; agitar as pessoas, levando-as a refletir sobre a sua passividade e convidando-as a tomar a iniciativa; apelar à mudança.    
     
A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
          

TEXTO 2

Ressalta-se que a letra dessa canção não foi proibida pelo regime, talvez pela falta de compreensão da ideia real da mensagem, e, consequentemente, a divulgação da letra e o valor que ela traz tiveram uma dimensão ainda maior, por poder ser entoada entre a população, mesmo partindo de um cantor perseguido pela PIDE.

A canção pretende mostrar que os ideais imaginados para Portugal seriam os mesmos encontrados na cidade de Grândola, numa espécie de relação metonímica, da parte pelo todo. A canção serve como um apelo da população para que tais características possam ser estendidas ao país todo - especialmente por ver que naquela cidade havia pessoas engajadas na luta contra o regime. A canção é um apelo à igualdade para todos os portugueses e à união. A música é utilizada como uma crítica ao governo, daquilo que se gostaria de se ver em Portugal, mas que ainda não existia.

 

Ler aqui a análise de “Grândola, vila morena”, por Ludmila Arruda

(Fonte: Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016)



                               
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR:
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


 Excerto de uma entrevista a José Afonso, em 1984: “Os jovens, e eu digo os jovens de todas as classes, estão um pouco à mercê de um sistema que não conta com eles - que hipocritamente fala deles. O 25 de Abril não foi feito para esta sociedade, para aquilo que agora estamos agora a viver. Aqueles que ajudaram a fazer o 25 de Abril, não só aqueles que o fizeram, imaginaram uma sociedade muito diferente da atual, que está a ser oferecida aos jovens. Os jovens deparam-se problemas tão graves, ou talvez mais graves do que aqueles que nós tivemos que enfrentar, o desemprego, por exemplo, e por vezes não têm recursos, o sistema ultrapassa-os, o sistema oprime-os, criando-lhes uma aparência de liberdade." >> CONTINUA
 «Relatório da Brigada de fiscais da Repartição de Fiscalização e Contencioso da Direcção de Serviços de Espectáculos sobre o I Encontro de Canção Portuguesa em 29 de Março de 1974»:

Alexandre Romeiras: descobriu agora que um dos elementos da referida Brigada, que assina o relatório (Malta Romeiras), era seu familiar próximo. Muitas histórias haverá ainda enterradas em arquivos espalhados por esse Portugal fora!

Contribuição para a história do concerto do Coliseu.

O meu pai tinha três primos direitos:
- Cel Romeiras, com intervenção (contrária) no 25 de Abril – contou-me o Sousa e Castro que teve uma pistola apontada à cabeça, mas a coisa resolveu-se.
- Morgado Romeiras, diretor de abastecimentos da CM Lisboa, saneado, por levar para casa, ao longo de muitos anos, víveres sem fim.
- Juiz Malta Romeiras, que assinava mandatos de captura para o Rapazote (Ministro do Interior), após a prisão dos ativistas pela PIDE, para «legalizar» o acto. Foi considerado agente da PIDE, constando da lista, publicada na imprensa, dos que não se apresentaram.

Este último tinha um filho, Filipe Malta Romeiras, da minha idade, nazi, suásticas como botões de punho, conhecido também pelas provocações e sovas ao Jorge Silva Melo, com o seu grupo. Um dia houve uma manifestação em frente ao Centro Cultural Americano, na Duque de Loulé, e ele estava em casa de um colega de curso aí residente, à janela. Pois foi ao telefone da casa denunciar todas as pessoas que conhecia, incluindo o dono da casa!!! (...)

Descobri ontem o relatório anexo relativo ao concerto do Coliseu de há 40 anos. Comprova que era agente da PIDE, ou a censura tinha outros agentes? (dúvida minha)

Considerando o relatório uma pequena maravilha, junto em anexo. Para a pequena história. 









         

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/21/censura.aspx]
[Última atualização do post: 2021-10-16]

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