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sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CANTIGAS DE TERREIRO – II (Vitorino Nemésio)


 





CANTIGAS DE TERREIRO (II)
    
Ponha aqui o seu pezinho
Ao pé do meu coração:

Uma coisa delicada
Tem lugar de estimação.
    
O teu rosto nos meus olhos
É um ladrão na cadeia:
Quer fugir não sabe como;
Olha pràs grades... passeia
    
A Tirana é traiçoeira
Pra quem na sabe sentir:
Encheu-me a alma de cinza,
Na na posso sacudir.
    
Ó Tirana do mar largo,
Bodião do meu inzol:
Hei-de pôr-te este piscoço
Mais torto que um caracol!
    
Tiràtirana tirada,
Tirante da minha casa:
Acendes um coração...
Vai-se a cinza, fica a brasa.

[…]

Morte que mataste Lira,
Mata-me a mim, olha bem!
Que eu só quero amantes firmes
No anojo de minha mãe.
    
A Lira que há-de morrer
Não é viola nenhuma:
É a sereia do mar
Que encheu a areia de espuma.
    
Eu cá sei e tu bem sabes
Quanto custa amar assim:
Pena-se os olhos da cara
Parece coisa ruim!

[…]

Eu fui à terra do Brabo
Para amar com mansidão:
É mais braba do que um toiro
A sorte que aos tristes dão.

[...]

Ó mar, dá-me uma moreia!
Ó silva, dá-me uma amora!
Ó meu amor dá-me a vida,
Que a morte não se demora...

[...]

«Olhos pretos», diz a moda:
Eu sei lá de que cor são!
São azuis se olhas prò mar;
Negros, se os poisas no chão.
    
Samacaio deu à costa
Sem ser navio nem peixe:
Eu arribei a uma vida...
Queira Deus que não me deixe!
    
Samacaio foi à América,
Veio de lá calafona:
Trouxe uma suera de lã
Prò peito da minha dona.

[...]

Ai vem a Sapateia,
Que é moda de despedir:

Mas, se moras no meu peito,
Como é que podes partir?

    

Sapateia sem sapatas!

Uma boda sem chover!
Amor com apartamento!
Meu Deus, como pode ser?!

[...]

Minha rosa, minha casa,
Meu almário, minha flor,
Arca de pão, minha vinha,
Minha terra, meu amor!

    

Vitorino Nemésio, Festa Redonda (1950)
    





ORIENTAÇÕES DE LEITURA
    
Surpreenda nestas quadras de Vitorino de Nemésio:
- as modas ou cantares a que se faz referência;
- a raiz popular da composição (conteúdos versados, tipo de estrofe e de rima, a métrica);
- marcas da oralidade;
- o uso de regionalismos dos Açores (ilha Terceira);
- a homenagem ao povo e à terra natal do poeta.
    
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
    




[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/10/CantigasTerreiroII.aspx]

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