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quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ADORNOU O MEU QUARTO A FLOR DO CARDO (Antero de Quental)


  flor de cardo
             

             
VISITA

Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almíscar1 recendente2;
Vesti-me com a púrpura3 fulgente4,
Ensaiando meus cantos, como um bardo5;

Ungi as mãos e a face com o nardo6 
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Misteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre à húmida pousada?...

Nem princesas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Às portas de ouro e luz do meu amor!

            
Antero de Quental
                 

___________________
1 Almíscar: substância utilizada em perfumaria.
2 Recendente: aromático.
3 Púrpura: cor vermelho-escura; veste régia com essa cor.
4 Fulgente: resplandecente.
5 Bardo: poeta trovador.
6 Nardo: óleo perfumado, feito de flores, citado 24 vezes na Bíblia (foi precisamente com um perfume de nardo que Maria Madalena ungiu os pés de Cristo). Até hoje é usado por perfumistas.




LINHAS DE LEITURA
           
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- divisão do texto nas suas partes lógicas;
- modos de caracterização do “eu”;
- recursos estilísticos relevantes;
- sentido da “misteriosa visita”.
           
           
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
           
Divisão do texto nas suas partes lógicas
O soneto divide-se em três partes:
- a primeira, constituída pelas duas quadras, consiste num discurso narrativo sobre o ritual de preparação do sujeito poético para receber condignamente a “visita”;
- a segunda, formada pelo primeiro terceto, corresponde a uma pausa reflexiva (marcada pelo uso da adversativa no início da estrofe e pela interrogação), revelando-se nela a qualidade disfórica do espaço e do “eu”.
- a terceira, constituída pelo segundo terceto, é a chave do soneto, que apresenta a situação referida, na 1ª e na 2ª quadras, como a metaforização do mundo interior do sujeito transfigurado pela lembrança da amada.
           
Modos de caracterização do “eu”
O sujeito lírico surge caracterizado como:
-uma figura que se apropria simbolicamente de atributos de rei e de bardo, associando-os a um cenário de exotismo oriental. Assim, prepara-se ‑ vestindo-se "com a púrpura fulgente" (v.3), "Ensaiando" os seus "cantos, como um bardo" (v.4), e ungindo "as mãos e a face com o nardo/Crescido nos jardins do Oriente" (vv. 5-6) ‑ e prepara o espaço envolvente para receber "com pompa" real uma "Misteriosa visita" (vv. 7-8);
- alguém cuja memória torna que presente a amada.
           
O sujeito é ainda caracterizado através das seguintes representações metafóricas:
- o "quarto" adornado e perfumado, metáfora do mundo interior do sujeito transfigurado pela "lembrança" da amada;
- o "casebre" e a "húmida pousada", expressando a consciência decetiva que o sujeito tem da sua solidão;
- as "portas de ouro e luz", imagem da nobreza e da plenitude do sentimento amoroso que, acordado pela memória da amada, adquire um valor transformador e iluminante da dimensão íntima do sujeito.
- …
           
Recursos estilísticos relevantes:
O poema caracteriza-se por uma linguagem metafórica:
- o "quarto", o "casebre", a "húmida pousada", as "portas de ouro e luz", são representações do sujeito poético, destacam-se como metáforas estruturantes do texto;
- as plantas ("cardo", "nardo"), as substâncias aromáticas ("almíscar"), a púrpura e os "jardins do Oriente", criando a sugestão de um ambiente envolvente, preparado para a sedução amorosa, metaforizam o efeito, no "eu", da força transfiguradora do amor;
- a "flor", simboliza a beleza do feminino, é uma metáfora da amada.
           
São ainda relevantes, entre outros, os seguintes recursos estilísticos:
- o hipérbato – “Adornou o meu quarto a flor do cardo” (v.1); “Do meu casebre à húmida pousada?...” (v.11) – que, no primeiro exemplo, põe em evidência o ato de adornar (com a flor de cardo) e, no segundo, destaca a negatividade de “casebre”, amplificando-a pela sua caracterização (“húmida pousada”);
- a repetição de valor enfático – “… que… que… que…” (v. 9); “Nem… nem…” (v. 12); “Era…/ Era…” (vv. 12-13) – marca, no primeiro caso, o tom interrogativo, e, nos segundo e terceiro, a resposta-revelação que dá sentido a todo o poema;
- …
           
Sentido da “misteriosa visita”
"Visita" assume, no contexto do poema, um carácter espiritual, uma vez que se trata de algo que se processa no íntimo do "eu". De facto, esta "visita" é a própria lembrança da amada que, acudindo ao espírito do escritor, o transforma, dando-lhe a possibilidade de se tornar outro, numa imagem de plenitude e fulgor. Os efeitos desta memória são de tal forma surpreendentes, e ocorrem a um nível tão profundo, que associam esta "visita" a uma força mágica ou "Misteriosa" ‑ a força transfiguradora do amor.
           
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano(plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto).Curso Geral – Agrupamento 4. 1999, 1ª fase, 2ª chamada. 

           


        
SUGESTÕES DE LEITURA
        

 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/26/visita.aspx]

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