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terça-feira, 18 de setembro de 2012

CÂNDIA FUROA (Vitorino Nemésio)

          
          
Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!
         
Cesário Verde, O sentimento dum ocidental
       
                       
                         

                            
           
MAU TEMPO NO CANAL | Vitorino Nemésio
          
Texto
                  
Os olhos da Cândia Furoa estavam rasos de lágrimas. Limpou a um trapo a blusa e a saia de Margarida, que lhe passou, comovida, a mão pelo cabelo.
Mas, arrumado o incidente daquele primeiro amor, que parecia teimar no fundo da rapariga como brasa em borralho, foi quase com orgulho que a Cândia Furoa explicou a origem dos seus quatro filhos e a sua situação social no povo da Urzelina e das Velas. A Liberdade era filha de um fiscal dos impostos, um prosa que chegara do continente e fora corrido da ilha por escarnecer da religião e não pagar a quem devia. Tinha oito anos; estava no Asilo há dois. Se não fosse o poder do barão e a caridade da senhora baronesa, não a tinham aceitado lá com aquela idade.
Abaixo da Liberdade era o Simão, filho do Dr. Feraústo. Esse sim! Era do Registo Civil; tratava-a muito bem. Aquela malandragem das Velas dizia: "Ele faz(i)-os e baptiza-os!" Deixá-los dizer... Pôs-lhe casa na Fajãzinha; enchia-a de tudo quanto havia. Dos melhores padrões de chitas que chegavam no vapor à loja do Sr. Francisquinho, era logo: "Corte lá um vistido prà Cândia!" E uns sapatos de cordovão... Um xaile de merino... Mas tinha sido mandado chamar pelo Governo; o pai estava na costa de África por ter matado um cunhado:
- Quistã de partilhas... Olhe a sinhóra: ainda me mandou vinte mel-réis! A indirecção era: "Inlustríssemo Senhor Doutor Oscre Fraústo, Dingníssemo Ofecial do Cevil, Paredes de Coira"... Nunca mais m'iscreveu! A gente só vem a este mũindo pra penar...
Enfim: ali estava a Vitória, à porta do frontal, em camisinha, com o ranho a cair. Essa era filha do padre Picanço, um servo de Cristo de fora da terra, que o senhor deão mandara para não envergonhar os padres velhos e sérios da ilha. Parece que não lhe chegara a tirar a esmola da missa, com dó dele... Era a afilhada da Srª Domitília Rezisto, a criada grave de casa do senhor barão. E o menino, o indês, era Joaquim. Era o filho do guarda-fiscal:
- As más-línguas inté pusérum a boca no senhor Andrezinho... Tal aleive! O filho do senhor barão!... Credo Dês me livre!
             
Vitorino Nemésio, Mau Tempo no CanalCapítulo XXXIII – Canção de Embalar
       
       
             

                   
ANÁLISE DO EXCERTO DE MAU TEMPO NO CANAL
       
[Cândia Furoa]
       
Eis um excerto, onde uma figura feminina é retratada sob o olhar profundamente humano com que Vitorino Nemésio se debruça sobre toda a gente, mas talvez em particular sobre aqueles que, de uma forma ou de outra, são subjugados por uma sociedade impiedosa, fechada, que não permite caminhos escolhidos por cada um. Neste caso, com efeito, é Cândia Furoa «escanzelada, […] e torta do grande cesto de roupa encostado à vazia, com as mãos gretadas do frio da água da potassa do sabão», em quem «só lume dos olhos vivos atrevidos […] falavam de uma mocidade desperdiçada·e teimosa».
Lendo, portanto, o texto acima transcrito, sente-se que o autor não formula juízos de valor sobre a rapariga, como se, mesmo assim, a absolvesse implicitamente dos «pecados» que levam a sociedade a desprezá-la. E de um ser humano que, aos baldões, consoante o homem que lhe aparece, Nemésio fala, retratando-a como uma mulher digna, apesar dos «maus passos». E isto leva-nos a pensar que há no coração e no cérebro de Vitorino Nemésio um profundo respeito pela sua gente, pela mulher em especial, mesmo aquela que os outros consideram a mais degradada. De resto, analisemos a galeria dos amantes da Furoa: um fiscal de impostos, «um prosa... que fora corrido da ilha por escarnecer da religião e não pagar a quem devia»; um doutor do Registo Civil, «Esse sim!... tratava-a muito bem»; um padre sem préstimos, «que Sr. Deão mandara embora para não envergonhar os padres velhos e sérios da ilha»; um guarda-fiscal que a Cândia não chega a caracterizar, mas sabemos ser o pai do bebé que encantara Margarida quando o vira, o tal Joaquim que «as más-línguas inté puseram a boca no Sr. Andrezinho...»
Neste conjunto, repare-se que o autor indicou os principais agentes da «colonização» dos Açores feita pelo Continente. E aí fica a sua forma de pensar sobre as Ilhas que, suspeitas à colonização real de flamengos, ingleses e portugueses, continuam a ser subjugados por «colonizações» particulares, de que uma vítima bem visível é esta pobre mulher de São Jorge, uma serva do barão da Urzelina. É que nobres e burgueses não sentem verdadeiramente nenhuma colonização, pois têm interesses de classe que os colocam fora da alçada do Continente, no entanto, envia para as ilhas os seus fiscais e conservadores do Registo Civil, funcionalismo que, sendo na maior parte das vezes sozinho, procuram a fêmea onde ela estiver à mão... E é sempre o povo quem paga a opressão, quer externa, quer interna.
Analisando esta prosa escorreita, embora nem sempre fácil, encontramos bem destacados dois tipos de discurso no texto que vimos observando: a narração e a descrição; modos de representação que constituem o discurso do narrador omnisciente entrelaçados· com o discurso indireto livre com que Cândia informa, com ternura e uma certa dignidade, a interlocutora da origem dos filhos e do homem que mais a encantou, o Dr. «Feraústo» «[…] uns sapatos de cordovão... um xaile de merino…»; o discurso direto irrompe também desta contadora de «estória», numa linguagem «vivida», sem enfeites, resultado de nesciência ingénua e da própria fonética da ilha: quistã, sinhóra, muindo a par de "inlustrissemo», «indirecção», «Rezisto Cevil».
No meio do acervo de informações que Cândia Furoa fornece a Margarida (testemunha calada), parece espelhar-se a necessidade de contar, de falar, de explicar uma alma que vive dentro de um corpo estragado, mas que teima em sobreviver num registo de resignação feito voz em «A gente só vem a este muindo pra penar...»
Por último, note-se a dignidade da personagem que parece saber medir distâncias mesmo em coisas do sexo: «Tal aleive! […] Credo, Dês me livre!» Afinal, esta mulher, que é do homem que lhe calha, reconhece que  por má-língua se pode falar do filho do senhor barão; e é, afinal, ainda a sua vontade que aqui prevalece, conferindo-lhe a tal dignidade de que Nemésio se faz arauto ‑ «Dês me livre!»
       
Maria da Conceição Coelho e Maria Teresa Azinheira, Apontamentos Europa-América explicam Vitorino Nemésio – Mau Tempo no Canal, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1995.
       
       
   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/18/Candia.Furoa.aspx]

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