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sábado, 1 de setembro de 2012

ESPÍRITO DA NOITE (Vitorino Nemésio)

          
 


        
ESPÍRITO DA NOITE

Espírito da noite, variável
De Miguel a Satã, conforme os lumes,
Dependente da carne,
Cheio de mortos como um Marne
E lúcido de gumes.

Espírito forçoso na vigília
E lânguido no sonho
Que uma seiva de tília,
Tépida, fez risonho.

Espírito tão simples, enunciado,
E profundo na causa,
Urdido para tempo, dilatado
Peito de pausa em pausa,

Alto és no amplo sopro
Que ainda tenta na argila,
Como na pedra o escopro
Minha forma tranquila.

Mas, se à tua fogueira
Aos ventos estendida,
Prometeu, anjo velho, tirou fogo,
Alma, de que maneira
Escaparás à ardida
Terra, sem água ou rogo?

Espírito, na beta luminosa
Instantâneo e evidente,
Voltarei como lágrima na rosa
Da tua alva silente.

Entretanto, como as várias
Aves de ramo em ramo,
As espadas contrárias
Decidirão do que amo.
    

Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
   


    
TEXTO DE APOIO
    
Dir-se-ia que a noite adquiriu, aos olhos do poeta, o dom de consubstanciar o Bem e o Mal. O «Espírito da Noite», entidade dilacerante, tanto pode englobar as milícias do Arcanjo como as forças do inferno. É o Espírito devorador*, «lúcido de gumes», brilho sinistro de espadas noturnas (o campo do desconhecido) que deixam atrás de si ossadas, como na guerra.
   
* O carácter terrivelmente enigmático do Espírito Santo foi assim apresentado por Teixeira de Pascoaes:
Sou o Espírito Santo, compreendes?
E este imenso gigante que tu vês
É a seara viva"o pão da minha fome!
      
«Regresso ao Paraíso», Obras Completas,
vol. IV, Bertrand,.s/d., pág. 131
    
Esse Espírito, que uma «seiva de tília» fez «risonho», é a simplicidade profunda (tudo e nada) que habita em cada ser, o «amplo sopro» que dá «forma tranquila» a cada homem. Mas «tenta» dar vida à argila, ou «tenta» ao pecado? Ambas as coisas, naturalmente...

Citámos, em nota anterior, alguns versos de Pascoaes onde se fala do <«imenso gigante». Trata-se, evidentemente, de Prometeu enquanto símbolo da espécie racional. Também Nemésio estabelece um elo entre o Espírito Santo e Prometeu. E esse elo leva-o à angustiada interrogação: esse fogo (símbolo do Espírito e, simultaneamente, das luzes prometeicas) não queimará a Alma, se a Terra (local de degradação) não ofertar ao homem, rezando este, uma gota de água (de graça divina)?

O poeta espera essa graça, espera a luz, espera que o Espírito não seja unicamente lume, mas também claridade, iluminação. Enquanto essa graça não chega, as «espadas contrárias» travarão no íntimo do poeta o seu milenar combate.

Importa salientar que, em O Pão e a Culpa, avulta o «lume» ‑ elemento já presente na anterior mundividência do autor, mas que irrompe agora com mais intensa obsessão. E mais uma vez Nemésio mergulha profundamente na açorianidade nesse sentimento ilhéu segundo o qual o Divino Espírito Santo, por ser «língua de lume» (Verbo de apóstolo, comunicação a todos os povos), é também a «língua de lume» (vulcão) castigadora dos desvarios humanos. Para os Açorianos, o Divino Espírito Santo, sendo Deus, não se confunde nem com o Pai (entidade remota) nem com o Filho, cordeiro de Deus sacrificado aos pecados do homem. O Espírito Santo, cujo símbolo é a pomba, é a verdadeira transcendência dentro da cosmovisão insular. Por isso Vitorino Nemésio, neste livro, traduziu um dos hinos do Espírito Santo: «Veni, Creator Spirictus, / Mentes tuorum visita» (págs. 24-27), terminando da seguinte maneira:
    
Vem, Espírito Santo,Por nome amor e asa,Como a áscua de espanto
Acende a mente e a casa.

Os corações repletos
Serão de Ti, que amplias,
Como os grãos são completos
Já nas vagens esguias.

Das quais Uma, à luz núncia,
Para mais que anjos feita,
Abre a cruz da renúncia
Sobre a Terra imperfeita.

Vem na consolação,
lndene a gáudio e a pranto,
Tu, Padre, e à dextra mão
O Filho, Espírito Santo.
      
Mas o Espírito Santo esconde-se em seu mistério uno e trino. Nem a oferenda do Homem («Abre a cruz da renúncia / Sobre a Terra imperfeita») vale perante essa entidade ambígua que parece por vezes consubstanciar o Bem e o Mal. Por isso o autor reza, reza para que o Espírito o ilumine:
   
TERRA DE LUME

Rezo, dobrado, aos Anjos da manhã.
O céu é fosco e o coração sonoro
Como a chuva que cai na telha vã
E o verbo com que imploro.
    
Vitorino Nemésio, O Pão e a Culpa, Lisboa, Bertrand, 1955.
    
     
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, 
Lisboa, Editora Arcádia, 1978, pp. 170-174)
       




       
SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/09/01/espirito.da.noite.aspx]

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