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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

HÃO-DE CAIR EM ESTRONDO OS ALTOS MUROS (José Saramago)


«Resurrección», Pejac
                   
                      
OUVINDO BEETHOVEN

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.
                    
José Saramago, Poema a Boca Fechada, 1966
                 
               
               
QUEDA DO ESTADO NOVO
           
               
QUEDA DO MURO DE BERLIM
                 
               
               
O retrato do país dominado pelos princípios do Estado Novo é também veiculado no poema de José Saramago “Ouvindo Beethoven”.
O próprio título do poema remete para a busca da liberdade e a exaltação de um conjunto de princípios como a igualdade e fraternidade entre os povos. A mera referência à música de Beethoven cria, desde logo, a sugestão de um universo sonoro violento (dada a complexidade da música deste compositor e a profusão de instrumentos de sonoridades cheias e metálicas) que se perpetua no tempo em virtude da utilização do gerúndio “ouvindo”. Nada parece ter sido deixado ao acaso na obra destes escritores. Não é acidental o facto de o compositor escolhido ser Beethoven que, em termos musicais, é encarado como um revolucionário, um homem que impôs novos cânones e que cultivou um estilo heroico imbuído dos ideais posteriores à Revolução Francesa nas suas sinfonias. Elas têm como tema recorrente o percurso do Homem desde a sua criação mitológica por Prometeu (3.ª Sinfonia, Heroica), à simbiose Homem-Natureza, em que esta última controla o primeiro (6.ª Sinfonia, Pastoral) até ao encontro do Homem com a perfeição (9.ª Sinfonia, Sinfonia Coral). É, nesta última, que se encontra o célebre “Hino à Alegria” composto sobre um poema de Schiller que evoca e difunde esse grito lancinante de apelo à humanidade para que aja fraternalmente (Cf. MANN, William – A Música no Tempo, Cacém: Círculo de Leitores, 1983). O ambiente típico das sinfonias de Beethoven é, então, transportado para o corpo do poema. Essa sonoridade torna-se evidente pela seleção vocabular em que predominam os verbos, a sucessão contínua de ações, as sistemáticas aliterações de vibrantes, sibilantes e fricativas associadas a vogais abertas, bem como o predomínio de um ritmo binário entrecortado pelo ternário para intensificar a velocidade dos acontecimentos referidos numa contínua espiral que culminará na última quadra com a antevisão/anunciação do “dia das surpresas”. Esse “Venham”, verbo introdutor de uma situação hipotética, mas tão semelhante à real, encarna a referência a várias circunstâncias agressivas e típicas da sociedade do Estado Novo; a agressividade desses factos, que serão enunciados de seguida, está desde logo patente na cumulação sonora do recurso a vogais abertas ladeadas por consoantes profundamente sonoras: a fricatica -v, a palatal –nh e as nasais. Inicia-se, então, a enumeração de estereótipos do Estado Novo: a imposição de “leis” emanadas como mandamentos “daquém e dalém mundo” – nessa imbricação Deus (religião)/Chefe de Estado (política). Esse poder instituirá “ordens, decretos e vinganças” tendo, inclusivamente, capacidade para aceder ao íntimo dos homens e julgá-los uma vez que não há limites para os tentáculos dos agentes do Estado; num tempo em que se invade a privacidade de cada um – “Não respeitem mistérios nem segredos” -, o homem perde uma das suas apetências naturais: “ser esquivo”. Essa censura, que dilacera o interior dos homens, aparece também nas circunstâncias mais quotidianas: nos cruzamentos, brilha “vermelha, a luz inquisidora” (a que relembra a existência dos censores e da tortura por eles infligida). O facto de os homens viverem como objetos, de serem meras propriedades do Estado torna-se visível na catalogação a que todos são sujeitos: “A quantas mãos existam, peçam dedos,/Para sujar nas fichas dos arquivos”, no facto de tudo estar institucionalizado – como é realçado pela menção à necessidade de colocar “livros de ponto em toda a parte” bem como “Relógios a marcar a hora exacta”. Contudo esse clima controlador, limitador da vontade do homem vai ser ameaçado, como é desde logo indiciado pelo uso da conjunção coordenada adversativa “Mas” a introduzir a última quadra. Ao presente do conjuntivo associado às imposições do Estado vai suceder o uso da conjugação perifrástica no futuro e o próprio verbo “chegar” no futuro do indicativo. É num futuro algo distante que a música de Beethoven atingirá o seu clímax fazendo ruir “em estrondo os altos muros”1 – ato violento, tornado audível pela aliteração das sibilantes e das vibrantes líquidas -, no momento em que o Estado se considerar precavido contra todas as possibilidades de ataque já que cercou a população de “bastões”, para impor a ordem, e “fortalezas” para enclausurar os homens e as palavras.
Este poema, à semelhançdo de Sidónio Muralha, funciona como uma profecia, uma antevisão dos factos que ocorrerão oito anos após a publicação do poema.
Ao longo deste trajeto pelo Portugal da época da ditadura, torna-se notório que, de uma forma geral, os poetas calçaram os “mocassinos” do seu tempo e procuraram desmistificar os valores do Estado Novo assim como o conceito de Portugal difundido no estrangeiro através dos textos e palavras de outros autores que compactuaram com o regime e que, mesmo indiretamente, acabam por ser implicados na derrocada da pátria. De igual forma, não negam a importância das épocas passadas, mas constatam que não é possível edificar um país que vive estagnado nas memórias do passado; o Portugal desejado só será possível quando os portugueses recuperarem a visão, a voz, o entusiasmo que os dominou em momentos anteriores e fez com que ousassem construir um império.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 98-100.
               
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(1) De notar que já Mário de Cesariny havia feito referência à muralha que existia entre os seres e as palavras e que urgia fazer implodir no seu poemaYou are welcome to Elsinore”.
                    
                
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/22/jose.saramago.ouvindo.beethoven.aspx]

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