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terça-feira, 20 de agosto de 2013

PORTUGAL SACRO-PROFANO (Ruy Belo)


PROCISSÃO DA ALDEIA I  -TÉCNICA MISTA S TELA-80X




              
PORTUGAL SACRO-PROFANO ‑ LUGAR ONDE

Neste país sem olhos e sem boca
hábito dos rios castanheiros costumados
país palavra húmida e translúcida
palavra tensa e densa com certa espessura
(pátria de palavra apenas tem a superfície)
os comboios são mansos têm dorsos alvos
engolem povoados limpamente
tiram gente de aqui põem-na ali
retalham os campos congregam-se
dividem-se nas várias direcções
e os homens dão-lhes boas digestões:
cordeiros de metal ou talvez grilos
que mãe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los?
Neste país do espaço raso do silêncio e solidão
Solidão da vidraça solidão da chuva
país natal dos barcos e do mar
do preto como cor profissional
dos templos onde a devoção se multiplica em luzes
do natal que há no mar da póvoa de varzim
país do sino objecto inútil
única coisa a mais sobre estes dias
Aqui é que eu coisa feita de dias única razão
vou polindo o poema sensação de segurança
com a saúde de um grito ao sol
combalido tirito imito a dor
de se poder estar só e haver casas
cuidados mastigados coisas sérias
o bafo sobre o aço como o vento na água
País poema homem
matéria para mais esquecimento
do fundo deste dia solitário e triste
após as sucessivas quebras de calor
antes da morte pequenina celular e muito pessoal
natural como descer da camioneta ao fim da rua
neste país sem olhos e sem boca
                 
Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970
                 
                 

TEXTOS DE APOIO

I

Em “Portugal Sacro-Profano” evidencia-se a faceta mais característica do quadro do país que vai ser revelado: a indistinção, a interpenetração entre o mundo religioso e o quotidiano. Dessa fusão (incentivada e manipulada pelo Estado) resultou um país cego e mudo bem evidenciado por essa personificação do país: “Neste país sem olhos e sem boca”. Ruy Belo procura tornar claro que o discurso religioso foi usado para legitimar a ordem estabelecida, impondo como natural ou pelo menos como fruto da vontade divina o cumprimento dos princípios e valores do Estado Novo.
O conformismo e a passividade surgem ao longo da imensa estrofe que compõe o poema (trinta e cinco versos) intercalados com o único elemento ativo, o comboio. A partir da ironia subjacente à alusão aos comboios – “mansos têm dorsos alvos” – que contrasta não só com o próprio conceito de comboio como com as tarefas que lhe são atribuídas: “engolem povoados” (nesta hipérbole visual), “tiram gente de aqui e põem-na ali”, “retalham campos”. Desmistifica-se a ideia do país rural, marítimo e progressista. O imenso espaço dos campos, o “espaço raso do silêncio e solidão”, foi abandonado à sua sorte; as casas estão vazias assim como os campos (“solidão da vidraça solidão da chuva”). De igual forma, os valores pátrios são equacionados, este é um país de “barcos e do mar” (na intrínseca relação com os Descobrimentos), “do preto como cor profissional” (a clara alusão às perdas humanas e materiais que sempre estiveram associadas à evolução da nação portuguesa), “dos templos onde a devoção se multiplica em luzes”. Porém, a religião não é aqui encarada como um pólo de rebelião ou de conforto já que nela todos se refugiam para justificar o seu conformismo. Por isso, Portugal é o “país do sino”, esse objeto religioso que, para além de estar associado à divulgação da morte, se tornou também no símbolo da imposição de regras e de princípios, daí ser um “objecto inútil”.
É neste ambiente de beatas e desertificação que o sujeito poético vai “polindo o poema” e é apenas nele que adquire a perene “sensação de segurança”. Durante esse processo de produção poética, finge viver num país povoado – “imito a dor/de se poder estar só e haver casas” – e torna-se consciente da união “País poema homem” que, nesse destino comum, são “matéria para mais esquecimento”. Decorrente deste cada vez maior isolamento, o sujeito poético, à semelhança de todos os outros portugueses, espera silenciosa e pacificamente a morte que surgirá tão “natural como descer da camioneta ao fim da rua”.
Também neste poema, Ruy Belo deixa bem marcada a sua distinção entre país e pátria, quando aplicados a Portugal. O primeiro é uma “palavra húmida e translúcida/palavra tensa e densa com certa espessura”, a segunda “de palavra apenas tem a superfície”. 
                 
Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. 
Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 84-85.
              

II

Na obra Homem de Palavra(s) de Ruy Belo, o próprio poeta menciona qual a função da poesia desta época que foi denominada de poesia de intervenção: “Em [seu]entender, a poesia de intervenção tem de partir de um grande sentido de justiça ou de revolta que o poeta fez seus, como o amor num poema de amor, e tem de ser discreta se não quer ser demagógica. Era assim quando havia censura (ou o eufemístico ‘exame prévio’) (…)” (Cf. BELO, Ruy - Homem de Palavra(s) (1970) in Todos Os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pág. 184). Com a palavra poética procura-se uma forma de intervir no real que, discreta ou simbolicamente, revele as fraquezas do presente para que elas sejam colmatadas pacificamente. Esta forma de tecer as palavras e as imagens poéticas é evidente nos dois poemas de Ruy Belo por nós selecionados: “Portugal Sacro-Profano” e “O Portugal Futuro”. Em ambos surge a não aceitação da representação de Portugal imposta pelo regime e o segundo funciona como uma espécie de projeto de Portugal que se assume como um início de busca de uma outra identidade ou, pelo menos, da parte dela que foi rasurada da imagem oficial. Desta perspetiva, o poeta procura encontrar a entidade Portugal não desvirtuada e não mutilada através da escrita […].
Nestes dois poemas de Ruy Belo torna-se evidente a consciência que o poeta tem da sua pátria e dos valores, das situações que necessitavam ser alteradas bem como das vivências que, hipoteticamente, poderiam ser reutilizadas no futuro. Por comparação com o país real, constata-se que nele nada do que o poeta deseja e antevê existe, há apenas fragmentos de esperança. No primeiro poema, o comboio e o seu circuito contínuo na ânsia de reintegrar as pessoas noutras comunidades; no segundo, as crianças que, como no poema de Mário Cesariny, aguardam o momento de agir, de preencher os espaços em branco. Porém, Ruy Belo apreende que esse tempo de atuação não corresponde ao presente, mas a um futuro longínquo que está, acima de tudo, dependente do poder volitivo dessas crianças.
                 
Paula Fernanda da Silva Morais, op. cit., p. 83 e p. 88.
                 
                 
   
                 
                 
PORTUGAL SACRO-PROFANO – VILA DO CONDE

O lugar onde o coração se esconde
é onde o vento norte corta luas brancas no azul do mar
e o poeta solitário escolhe igreja pra casar
O lugar onde o coração se esconde
é em dezembro o sol cortado pelo frio
e à noite as luzes a alinhar o rio
O lugar onde o coração se esconde
é onde contra a casa soa o sino
e dia a dia o homem soma o seu destino
O lugar onde o coração se esconde
é sobretudo agosto vento música raparigas em cabelo
feira das sextas-feiras gado pó e povo
é onde se consente que nasça de novo
àquele que foi jovem e foi belo
mas o tempo a pouco e pouco arrefeceu
O lugar onde o coração se esconde
é o novo passado a ida pra o liceu
Mas onde fica e como é que se chama
a terra do crepúsculo de algodão em rama
das muitas procissões dos contra-luz no bar
da surpresa violenta desse sempre renovado mar?
O lugar onde o coração se esconde
e a mulher eterna tem a luz na fronte
fica no norte e é vila do conde
Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970
                    
                

AUDIÇÃO DO POEMA
«Portugal, sacro-profano lugar Vila do Conde», de Ruy Belo,  na voz de Luís Miguel Cintra:


               
INTERPRETAÇÃO DO TEXTO
1. Parece-lhe que o poema representa um lugar concreto, situado numa certa geografia, ou representa um tempo? Justifique com elementos do texto.
2. Localize todas as ocorrências do verso: «o lugar onde o coração se esconde». Procure definir os efeitos rítmicos e semânticos que resultam da sua repetição.
3. Analise o modo como o poema convoca e transfigura os elementos do real representados.
                
OFICINA DE ESCRITA
À semelhança do sujeito lírico do poema de Ruy Belo, descreva o lugar onde o seu coração se esconde.
(cf. Antologia Português 10.º Ano / Ensino Secundário, 
Ana Garrido, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Fernanda Afonso, Lúcia Lemos,
 Lisboa Editora, 2007, p. 169)
               
                
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           

 Leitura do poema “O portugal futuro”, de Ruy Belo.

 

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/20/portugal.sacro.profano.aspx]

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