Páginas

domingo, 11 de agosto de 2013

Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca (Manuel Alegre)

   

     
               
                  
SER OU NÃO SER
            

«Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca»
Shakespeare (Hamlet)
             
Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.

E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.
             
Manuel Alegre
          
             
[…] no poema “Ser ou não ser” de Manuel Alegre é recorrente a ideia da submissão a um poder totalitário e opressivo.
Por isso mesmo, o poema constrói-se sobre dois eixos antitéticos identificados, desde logo, no título: a vertente do “ser” (da insubmissão, da revolta) e a do “não ser” (o conformismo, a aceitação).
Uma delas exclui a outra e a ausência de uma hipotética solução de compromisso entre as duas é realçada pelo uso da conjunção coordenada disjuntiva “ou”. Esses dois pólos de atuação estão diretamente relacionados com a degradação/destruição que dominou o reino da Dinamarca.
A epígrafe de um verso de Hamlet de Shakespeare ‑ “Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca” ‑, retomada anaforicamente na primeira estrofe, remete para essa corrosão destrutiva do reino que é, depois, disseminada pelas restantes estrofes quer através da repetição anafórica do verbo “apodrecer” (que ao ser utilizado no pretérito perfeito do indicativo, acentua o efeito da degradação já que ela teve início num passado mais remoto) quer pela referência sistemática à “Dinamarca”, a “Elsenor”, a “Hamlet” e “Ofélia”.
Criada esta sugestão do clima desagradável e apodrecido que dominou o reino, o sujeito poético passa a enumerar as circunstâncias que contribuíram para a progressiva derrocada (três primeiras estrofes); de seguida questiona-se e questiona-nos sobre a necessidade de manter essa situação (ideia realçada não só pela dupla pergunta retórica de cariz anafórico, mas também por ser usado um monóstico que se destaca graficamente das outras estrofes: uma quintilha, duas quadras e uma nona) para, na última estrofe, explorar as duas possibilidades sugeridas pelo título.
A negatividade que se apossou desse país está dependente da confluência de três situações: a emigração ou o exílio forçado (“os novos partem e ficam só velhos”); a guerra (“se do sangue as mãos trazem a marca”) e a submissão (“os fantasmas regressam e há homens de joelhos”). Tal cenário é intensificado pela aliteração contínua das sibilantes e das nasais associada à disforia inerente aos vocábulos “fantasmas”, “sangue” e “velhos”. Decorrente da confluência desses fatores, o sujeito poético plural – “nós” – tem consciência que não é só o país que está “podre”, também os seres humanos perderam o ânimo – “o sol” e “o vento” (metáforas profundamente visuais, já que esses dois elementos são essenciais para a frutificação de vida na Terra) ‑, a capacidade de impedir que a degradação alastre porque “há sombras na sombra dos teus passos / há silêncios de morte em cada voz”. Os “fantasmas” são, agora, substituídos por estas “sombras” de difícil deteção uma vez que se confundem e fundem com a própria sombra das pessoas; contudo a sua presença não cessa de se fazer sentir como o ilustram as sucessivas aliterações das sibilantes, a construção paralelística e o predomínio de vogais fechadas ladeadas, no início e no final do verso, por uma vogal aberta. Por isso, “cada voz” está muda, remetida ao silêncio, sendo este último extremamente revelador do medo já que ele é “de morte”. Este percurso destrutivo culmina na referência a “Ofélia” que, neste caso, é o símbolo da “Pátria”; as duas jazem e são levadas pelas águas. Essa morte origina o vaguear alucinado e interminável de Hamlet (enfatizado pelo uso da conjugação perifrástica “anda (…) perguntando” e o facto de esse gerúndio rimar com o verso anterior “flutuando” prolongando indefinidamente no tempo a deambulação de Hamlet) que a procura não num espaço físico mas dentro do próprio sujeito poético plural. Essa busca é, como a própria Dinamarca, percorrida pela necessidade de optar por “ser” – a “firmeza” – ou “não ser” – a “indecisão” – que culmina no já mencionado monóstico revelador de que o “não ser” tem persistido. Por isso mesmo, o sujeito poético constata que uma longa espera gera o desespero e que “o tempo foge”; dada a sua fugacidade, a consequência da não ação é a perda do “puro ardor” já que o tempo de cada ser é o “hoje” e é nele que urge “ser”.
A Dinamarca funciona, então, como uma prisão e “Elsenor” é a “capital da dor”. Para inverter ou reverter essa situação é necessário abdicar da “submissão”, “roubar à dor as próprias armas” para vencer os “fantasmas/que andam à solta em Elsenor”. Este apelo lancinante à “revolta” intensifica-se com o encavalgamento dos versos na última estrofe, com a agressividade inerente ao uso sistemático daquelas aliterações e acumulação de frases, por vezes, apenas justapostas ou unidas pela conjunção coordenada copulativa “e”.
O poema acaba por funcionar como uma sobreposição de dois planos: o distante “Reino da Dinamarca” e o momento presente do sujeito poético plural. Os traços negativos da Dinamarca são, então, projetados no espaço do sujeito poético que, mais do que rever-se nessas circunstâncias, as atualiza ao substituir a expressão “os fantasmas” por “estes fantasmas”, dando corpo a estas sombras, retirando-as do campo abstrato em que se incluíam no início.
Quer o poema de Mário Cesariny quer o de Manuel Alegre procuram referir a existência de um espaço opressivo, improdutivo, no qual as vontades foram subjugadas e ninguém ousa erguer a voz. Em ambos, esse local corresponde à longínqua – no tempo e no espaço – Dinamarca que vai implodindo pela ação das “hélices que andam” e dos “fantasmas”. Como consequência dessa tentativa de alienar os vivos, o sujeito poético plural dos dois poemas exige que se vença a opressão com o nosso “dever falar” ou assumindo “ser”; porém, com o poema de Egito Gonçalves tornam-se claras as limitações que foram impostas a quem tem por obrigação pronunciar-se.
[…] o “Reino da Dinamarca” de Manuel Alegre corresponde ao Portugal do período da ditadura. A rutura do país deve-se à emigração ou exílio (são os novos que partem e o país fica entregue aos velhos, mais conformistas e menos produtivos); à guerra colonial que não poupou nada nem ninguém, daí não haver mãos imaculadas, elas “do sangue (…) trazem a marca”; à atuação opressiva do aparelho de Estado através das perseguições da PIDE, os ditos “fantasmas” que obrigam os homens a ajoelhar, a silenciar não só as palavras de condenação como os próprios pensamentos já que eles são “sombras na sombra” dos passos de cada um.
O destino de Portugal-pátria é associado ao de Ofélia, ambas morrem levando consigo a hipótese de redenção. É nessas circunstâncias que Hamlet – o povo português – pergunta/procura por ela no interior de cada um; só será possível resgatá-las se a opção for “ser”: a “firmeza”, a “revolta”, o “vencer [aqueles] fantasmas”. O ambiente de tensão e de espera interminável é notório não só na dupla pergunta retórica – “Até quando? Até quando?” – mas no início da última estrofe142. Mais uma vez é enfatizada a ideia de que o tempo de cada um é o presente, que Portugal é uma prisão, a sua capital está dominada pelo sofrimento e só com um ato violento – “roubar à dor as próprias armas” – é possível combater e destruir essa mão tentacular do Estado.
Estes quadros do país funcionam como uma espécie de projeção do escritor para um espaço distante daquele que vai ser abordado como se, de alguma forma, o seu olhar fosse o de um estrangeiro que, a partir de uma realidade distinta, perceciona um país e uma cultura que não seriam os seus. À semelhança do que sucede quando se aborda uma cultura e/ou uma civilização diferente, também nestes textos há uma tomada de consciência sobre o país, como se de um “Outro” se tratasse, criando-se um distanciamento entre duas realidades: o país imposto pelo aparelho de Estado e o país idealizado pelos escritores. É esse olhar sobre o outro que possibilita à generalidade dos autores da época construírem “textos parcialmente programados”, na medida em que recuperam um Portugal que é o difundido pelo Estado, e olharem essa sociedade a partir de um prisma antagónico devido à sua autoexclusão voluntária do ambiente referido.
                 
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavrasTese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 63-66, 71-72.
           
           
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/11/ser.ou.nao.ser.manuel.alegre.aspx]

Sem comentários:

Enviar um comentário