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domingo, 18 de agosto de 2013

TEJO QUE LEVAS AS ÁGUAS (Manuel da Fonseca)



 Tejo
                
                 
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor

Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro

Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta e a outros mata

Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas

Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais

Afoga empenhos favores
Vãs glórias, ocas palmas
Leva o poder dos senhores
Que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.
                 
Manuel da Fonseca, Poemas para Adriano, 1972

                 


                    
Poemas para Adriano é o conjunto de nove poemas de Manuel Fonseca escritos especialmente para o álbum Que nunca mais, lançado pelo músico português Adriano Correia de Oliveira, em 1975. Com esse álbum, o músico foi eleito o Artista do Ano, pela revista inglesa Music Week.
                
                
Diante das barbáries que assolam a cidade, o poeta se revolta e apela para as águas do rio Tejo, que com sua pureza e seu poder de movimentar-se possam não só “lavar” tudo de mal que a cidade contempla como também pede para que o rio as “leve” para o “mar”, leve para longe: crimes, roubos, fomes, terror, ódio, opressão, falta de liberdade, falta de verdade, poder desenfreado.
A musicalidade desse poema é marcada pela presença de vários recursos estilísticos utilizados pelo poeta. O poema é composto por nove quadras, com versos em redondilha maior, composição que torna os versos mais musicais. Todos os versos são rimados, com rimas alternadas (ABAB). É interessante notar que muitos dos vocábulos utilizados nas rimas dos versos se vinculam diretamente ao sentido que o poeta pretender dar o poema, seja no sentido de aproximar ou de opor os significados: (águas/mágoas; par/mar; espantos/quantos; terror/amor; empresas/tristeza; dinheiro/inteiro; vivendas/rendas; lata/mata; grades/verdade; forjadas/amordaçadas; vícios/hospícios; venais/hospitais; favores/senhores; palmas/almas; comprado/destroçados; lodo/iodo).
Outro recurso utilizado pelo poeta para aproveitar e valorizar as sonoridades das palavras é a aliteração, isto é, a repetição insistente dos mesmos sons consonantais em alguns versos do poema. As aliterações mais recorrentes se dão com o som do “l” e do “v”, como se nota nos exemplos a seguir do poema:
Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar
(...)

Lava avenidas de cios
Vielas de amores venais
(...)
           
O objetivo da aliteração no poema é torná-lo mais musical, mais ritmado e sonoro. A aliteração dos fonemas “l” e “v” ajuda a produzir a imagem do movimento das águas do rio Tejo ao lavar e levar embora os problemas que a cidade apresenta. A articulação linguística e poética entre os verbos “levar” e “lavar” contribuem também para remeter ao movimento de ida e volta das águas. Sendo que quando as águas vêm até a cidade elas devem “lavar” a cidade e quando voltam devem “levar” tudo para o mar, para bem longe da cidade.
O eu-lírico pede para que o rio “lave” a cidade “de mágoas” e as “leve” para o “mar”. Lave a cidade de “crimes espantos”, de “roubos”, “fomes”, “terror”, daqueles que “do ódio fingem amor”, dos “bancos e empresas” que lucram com a exploração dos mais pobres. Pede para que as águas lavem os “palácios”, as “vivendas” e os “casebres” e levem para longe os “negócios e rendas” que só causam desigualdade social, exploração e morte dos mais fracos.
O rio Tejo deve levar embora “as grades de aço e silêncio forjadas”, ou seja, a censura, a falta de liberdade de expressão, para que “a verdade” possa “soltar-se” “das bocas amordaçadas” e a mentira, a enganação, a alienação não sejam mais predominantes na cidade. As águas do rio ainda devem lavar as “avenidas” da cidade dos “vícios” que são “vielas de amores venais”, os “albergues e hospícios”, as “cadeias e hospitais”. O rio deve afogar os “favores” empenhados, as “vãs glórias” e as “ocas palmas”, ou seja, tudo que foi conquistado de forma desonesta, indigna. E por isso o “poder dos senhores que compram corpos e almas” devem ser levados embora pelo rio. E os “rostos corpos destroçados” das “camas de amor comprado” devem ser lavados “com sal e iodo”.
A musicalidade do poema é marcada ainda pela repetição da primeira estrofe na estrofe final, formando assim um estribilho. Esse recurso também ajuda a encabeçar e fechar o desejo principal do eu-lírico do poema que é de purificar, lavar a cidade de todos os males com as águas do rio.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 73-76.
               
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/18/tejo.que.levas.as.aguas.aspx]

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