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sexta-feira, 13 de setembro de 2013

S.O.S.! S.O.S.! (José Gomes Ferreira)

  
             
          
CAFÉ
1945-1946-1947-1948
I
       
Quem foi o arquitecto,
que fez este Café?
tão longe da Natureza 
e tantos homens de pé?

Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.
           
LIX
              
Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
‑ e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.

Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
‑ e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.

Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
‑ e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.
S.
O.S.! S.O.S.!

Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!

Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...

E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!

Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!
               
José Gomes Ferreira, Poesia III
Portugália Editora, 1971 (4ª edição), pp. 135, 193-194
                 
              
ORIENTAÇÃO DE LEITURA
                
Atenta no poema n.º «LIX» da série «Café». As perguntas que se seguem dizem respeito ao segmento textual desde «S.O.S.! S.O.S.!» até «Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!».
1. O excerto inicia-se com um apelo repetido.
1.1. Identifica o(s) interlocutor(es).
1.2. Que Ihe(s) é solicitado?
2. «para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos».
2.1. Segundo o sujeito poético, qual é o pesadelo dos homens?
3. Explica o sentido de: «semi-homens» e «infra-homens».
4. «E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos / desta desistência / de já nem quererem ser deuses!»
4.1 Interpreta a repetição do adjetivo «fartos».
4.2 Na tua opinião, os homens já desistiram de querer ser deuses («de já nem quererem ser deuses»? Fundamenta a tua resposta.
5. Parece-te possível que os homens transformem «os cavalos em relâmpagos»? Justifica.
6. Apresenta uma interpretação para a mancha gráfica do excerto.
7. O excerto começa por uma frase sugestiva: «S.O.S.! S.O.S.!» Justifica a afirmação.
               
Adaptado de Página Seguinte. Português 10º Ano, Filomena Alves e Graça Moura, Lisboa, Texto Editores, 2007.
            
            
JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)
UMA TESTEMUNHA PARTICIPANTE DO SÉCULO XX
              
José Gomes Ferreira nasceu no Porto em 1900. Embora tivesse conhecido o lançamento de Orfeu Presença e consequente manifestação dos dois momentos do modernismo aristocrático, como vimos, o poeta não se sente solicitado por ele e vai realizar-se, a seu tempo, seguindo outros rumos. Poesia (de 1948), Poesia II (de 1950)e os mais volumes da sua obra em verso surgem em plena fase da maturidade do poeta que assim se exprime em 1931, ao dar início à sua carreira poética: «... de repente, em 8 de Maio, às dez horas da noite... escrevi de jorro e sem esforço a minha primeira cristalização de poesia autêntica, com a sensação de quem abria uma porta secreta para uma zona interdita de riqueza confusa... ». Uma data histórica, sem dúvida, para o poeta e para a literatura portuguesa, pelo que de superiormente belo tem sabido encontrar na tal riqueza confusa de que atrás se falou.
É com a geração neorrealista que o poeta sintoniza, embora confesse o sortilégio que nele exercia o velho Gomes Leal que encontrava, por vezes, nos seus passeios com o Pai (A Memória das Palavras) e se sinta na sua poesia a presença de João de Deus e, principalmente, de Raul Brandão ‑ «o meu mestre secreto», como declara. Mas pende, de facto, para a linha da geração neorrealista do Novo Cancioneiro.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), p. 510.
            
            
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

  
                      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/13/S.O.S.aspx]

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