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domingo, 12 de janeiro de 2014

QUANDO VOLTEI ENCONTREI OS MEUS PASSOS (Camilo Pessanha)


Guy Denning, "fast fall" oil on canvas 
   
   
Quando voltei encontrei os meus passos 
Ainda frescos sobre a húmida areia. 
A fugitiva hora, reevoquei-a,
— Tão rediviva! nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
— Mesquinhos passos, porque doidejastes 
Assim transviados, e depois tornastes 
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário, 
Em redor, como as aves num aviário, 
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista — para quê? 
Se há de vir apagar-vos a maré, 
Como as do novo rasto que começa...
  
Camilo Pessanha
  
  
Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:
Autógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional.
Publicações anteriores:
 O Progresso, de Lamego, (16 de Fevereiro de 1895).
 Novidades, de Lisboa, (18 de Fevereiro de 1897):
 Centauro (Dezembro de 1916).
   
   
*
   
   
PEGADAS NA AREIA OITOCENTISTA: CAMILO PESSANHA E A POÉTICA ERÓTICA
É possível certa predisposição para ler nisto um poema de amor. Mas onde está o amor? O «eu lírico», como o designarei, parece ter dito adeus a alguém, mas não diz a quem. De qualquer modo, deve ter-se comovido muito, porque regressa quase logo e encontra as próprias pegadas na areia húmida. O que se passa aqui, então? Vamos brincar aos detetives, por assim dizer. Desde logo, se a areia estava húmida, as pegadas deviam estar abaixo do limite da maré cheia, e, mesmo que a maré estivesse a vazar no momento em que foi embora, o «eu lírico» deveria regressar não muitas horas depois, antes que a próxima maré alta as apagasse de vez. Além disso, uma vez que apenas refere «os meus passos», aparentemente caminhava sozinho. Estaria a caminho de um encontro amoroso? Refere a fugitiva hora — de presumir que agradavelmente passada — e recrimina aos próprios passos terem-no levado sem tino e depois trazido de volta a esse ponto doloroso da memória.
Onde, então, o elemento erótico? Não está presente em nenhuma palavra ou frase, mas está lá implícito, por insinuação, alusão, conotação. […]
   
Rip Cohen, versão de uma palestra proferida no King’s College London, em 5-10-2005.
  
Ler ensaio completo em:
   
   
Guy Denning, "better confusion" oil on canvas


   
   
O “EU” REVELADO E AS MÁSCARAS DO “EU”
O que nos chama a atenção, em primeiro lugar, são as imagens que remetem à circularidade do trajeto do sujeito poético. O poema começa com o reencontro do sujeito com os rastos deixados por ele mesmo na areia. Essa imagem causa estranhamento porque aquilo que fica marcado na areia tende a desaparecer no ir e vir das ondas do mar. O sujeito, no entanto, encontra “frescos” “seus passos”. A imagem, portanto, dá a dolorida noção de que o sujeito será apagado pouco a pouco e não pode reter aquilo que é objeto de seu desejo. Essa é outra tendência da poesia de Camilo Pessanha: o eu lírico camiliano quer reter aquilo que se recusa a ser retido.
Passagens como essa abundam no conjunto dos poemas do autor. Vejamos o caso, por exemplo, de “Se andava no jardim”:
Se andava no jardim,
Que cheiro de jasmim
Tão branca do luar!
….
….
….
Eis tenho-a junto a mim.
Vencida, é minha enfim.
Após tanto a sonhar...

Por que entristeço assim?...
Não era ela, mas sim
(O que eu quis abraçar),

A hora do jardim...
O aroma de jasmim...
A onda do luar…
  
Na primeira estrofe, o eu lírico evoca a imagem de seu objeto de desejo no momento de sua idealização. Após essa pequena exposição, temos um brusco corte no poema que possivelmente seria o registro do esforço do eu lírico, seu deslocamento, para obter seu desejo realizado. A próxima estrofe registra o momento de posse, de realização do ideal e concretização do desejo. Por que, no entanto, o eu lírico sente descontentamento diante do desejo realizado? Em posse do objeto de desejo, de onde brotaria a insatisfação do eu lírico revelada na terceira estrofe?
Ora, assim como no poema que voltaremos a analisar (“Quando Voltei encontrei meus passos”), o desejo do eu lírico recai sobre aquilo que não pode se fixar. É a “hora”, o “aroma” e a “onda do luar”, fragmentos fugidios suscitados pela imagem da mulher amada (que nessa perspectiva, perde sua corporeidade), que o eu lírico, em vão, anseia.
A respeito dos instantes constantemente perdidos na poesia de Pessanha, escreve Maria H. M. Dias que há dois problemas fundamentais, o primeiro, que nos interessa, é:
A necessidade do retorno (permanência) de um momento temporal: uma sensação de perda se instaura porque entre a primeira e segunda aparição da imagem correu o tempo. Por isso, o retorno da imagem significa o impedimento do ritmo progressivo e corresponde a uma possibilidade de detenção de momentos na corrente contínua e fluída do ritmo do discurso. Entretanto, apesar de construir uma volta, é impossível recuperar o instante primeiro em que a imagem se inscreveu(DIAS, Maria Heloísa Martins. “Poesia de Camilo Pessanha: A Permanência do que se Nega a Permanecer – O Tempo e seu Fluir. A Cristalização do Instante”. Boletim Informativo do Centro de Estudos Portugueses, 2ª série, nº 7. São Paulo, USP, 1979. p. 24).
  
Assim, nos dois poemas, guardadas as evidentes diferenças temáticas, o que o sujeito perde é a sensação primeira e, com isso, qualquer possibilidade de se reatar com sua temporalidade interior. Dessa forma, a “fugitiva hora”, o que o “eu” deseja é a volta da promessa da realização, não a realização mesma.
Em uma carta de 1894 a Alberto Osório, Camilo Pessanha fala de sua perda de substância em cada lugar que ele passa. A carta nos interessa não pelo teor pessoal, mas por sua mundividência:
Para que servirá tamanho apego às coisas vãs — do futuro ou do passado? Depois vem logo o doido e ai entre ele de destroçar o jardim, de sovar a terra dos canteiros, de arrancar os arbustos às mãos ambas. Eu mal virei costas e quando olhei para trás tudo era uma ruina.
Tudo, tudo: o chão todo em covões, da terra que foi com as raízes. Do castelo não ficou pedra sobre pedra.
E eu que tinha saudades de quanto ia deixando, até de Barcelona onde estive cinco dias, até de Colombo onde estive duas horas. Por que a gente é bem um grumo de sangue, que por toda a parte se vai desfazendo e se vai ficando.
(Camilo Pessanha, Cartas a Alberto Osório de Castro, João Batista de Vastro e Ana de Castro Osório. Lisboa, IN-CM, 1984, pp. 46-47)
  
Por isso o caminho deixado pelo sujeito poético é vão, pois feito de fluidez, e não permanência. O drama do sujeito se acentua quando aquilo que ele não detém para si, ele tenta reaver como imagem da imagem: “A fugitiva hora, reevoquei-a, / Tão rediviva! nos meus olhos baços...”.
A terceira estrofe faz uma analogia entre a trajetória do sujeito com o voar sem sentido das aves presas num aviário. As aliterações em /v/ e /f/ reproduzem o som do vento desértico, vazio. Na última estrofe, a circularidade anunciada pelo último verso junto ao apagamento dos rastos anunciam, ainda mais uma vez, a transitoriedade daquilo que, para o sujeito, devia permanecer.
Paulo Franchetti, no fim de sua análise desse poema, afirma:
As imagens do mundo não se fixam, é certo, mas a sua evanescência, sim. Os passos não recobram plena vida sob o olhar cansado, mas a sua tentativa de fazê-los reviver se renova a cada leitura dos seus versos. Reflexiva, auto-referenciada, a poesia presentifica a fratura entre o eu e o mundo, o desenraizamento e a perda se substância do sujeito. Assim fazendo, torna-se ela mesma um novo elo de ligação entre esse sujeito e o mundo, uma forma de outra radicação, um lugar onde alguma coisa afinal se preserva, se cristaliza e se oferece à contemplação (FRANCHETTI: 2001, pp. 69-70)
Por fim entendemos que, apesar desse sujeito que aos poucos se desmancha como ente literário, a beleza desse texto dá ao poema de Pessanha a força necessária para que ansiemos pela hora rediviva da leitura.
  
São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011. 
Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 72-74.
   
   
   
   

 [O RASTRO DO SANGUE]
  
Paulo Franchetti, em “Editar Camilo Pessanha. Questões de método e de princípios” (2007), numa discussão sobre a fixação do texto de Pessanha, explicita, relativamente à primeira quadra do soneto:
  
“Na primeira versão, a do jornal, vinha:
  
1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos sobre a húmida areia. 
3 A fugitiva hora – encontrei-a 
4 E reviveu sob os meus olhos baços.
  
Na segunda versão, que é uma intervenção manuscrita sobre o texto do jornal, lemos:
  
1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos sobre a humida areia. 
3 A fugitiva hora reencontrei-a 
4 Tão rediviva, em fugitivos traços.
  
Essa versão do v. 3 foi cancelada, e uma nova foi escrita à direita do texto impresso: 3 A tão antiga hora! Reevoquei-a /. É essa que é passada a limpo, na cópia manuscrita, com uma modificação de pontuação:
  
1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda vivos, sobre a húmida areia. 
3 A tão antiga hora, – reevoquei-a, 
4 Tão rediviva, em fugitivos traços,.
  
Finalmente, no manuscrito de 1916, lemos:
  
1 Quando voltei encontrei os meus passos
2 Ainda frescos sobre a húmida areia.
3 A fugitiva hora, reevoquei-a, 
4 – Tão rediviva!, nos meus olhos baços...
[…]”
  
  
  
Este poema, como, de resto, a obra poética de Camilo Pessanha, têm sido, ao longo do tempo, objeto de controvérsia quanto à sua fixação.
O leitor pode encontrar o rol das principais edições de Clepsidra em http://camilopessanha.com.sapo.pt/obra_pessanhacamilo/obra2.htm
Em agosto de 2013, Franchetti, relativamente à sua edição de Clepsydra, de 1995, esclarece:
O que pretendi foi, isso sim, afirmar o caráter inacabado e inacabável do que teria sido o livro de Pessanha, tornando as várias versões disponíveis equivalentes, do ponto de vista do interesse da leitura.
E foi justamente o rendimento dessa hipótese o que tentei mostrar no estudo que fiz a seguir sobre os versos de Pessanha – o ensaio Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha –, no qual trabalho em vários momentos a história dos textos e as suas versões, confrontando versos com cartas, declarações, texto em prosa, na tentativa de refletir o caráter movente da poesia do autor e identificar o que me parecem doismodos, duas poéticas que organizam as imagens, símbolos e temas dispersos ao longo do universo textual que chamamos de Camilo Pessanha.” (in “Sobre uma proposta de publicação dos poemas de Camilo Pessanha”).
É desse ensaio (disponibilizado em books.google.pt) que transcrevemos o 2º capítulo, “O rastro do sangue”, inteiramente dedicado ao soneto “Quando voltei encontrei os meus passos”.
                                                         
O RASTRO DO SANGUE 

Quando voltei, encontrei os meus passos
Ainda vivos sobre a húmida areia.
A fugitiva hora — encontrei-a,
E reviveu sob os meus olhos baços.

Olhos turvos de lágrimas contidas…
Passos perdidos, porque doidejastes
Uma hora inútil? E depois tomastes
Ao ponto inicial das despedidas?

Onde fostes sem tino ao vento vário,
Em redor como as aves num aviário,
Até que a asa lhes faleça exangue...

O esforço inútil! E vem logo a maré
E apaga-vos. (Meus passos — para quê?)
— Como um cão que lambe um rasto de sangue...

Esses versos foram publicados por Camilo Pessanha num jornal em 1898. A data da composição, anotada pelo poeta e transcrita na publicação, é 1895. Portanto, o poema foi composto em Macau, no ano seguinte ao da carta que comentamos no capítulo anterior. Algum tempo depois, em dois momentos distintos, Pessanha submeteu o poema a várias e profundas alterações, que logo adiante analisaremos. De momento, uma vez que a primeira versão conhecida do soneto está assim próxima, temporal e textualmente, do que vinha na carta de 1894, é sobre ela que nos debruçaremos, tentando aprofundar ou estender os tópicos que vimos identificando e analisando.
Antes de tentar compreender e interpretar o que o poema está significando, vejamos a forma como ele se apresenta à leitura, consideremos suas características mais evidentes e exteriores, isto é, a forma mais imediata de sua atuação sobre o leitor; e já que se trata de um soneto, composto numa época em que essa forma gozava de amplo prestígio e de grande significado tradicional, observemos também rapidamente a sua inserção no gênero e o que nos diz do ponto de vista da estruturação métrica e rítmica.
Ora, a primeira impressão que emerge da leitura é a da não coincidência das pausas métricas e das pausas sintáticas e expressivas. Na última estrofe, isso é mais sensível, mas ao longo de todo o poema os enjambements e a quebra sintática da frase no interior dos versos introduzem pausas que não coincidem com o final dos versos e das estrofes. Lendo o poema várias vezes, atentos aos efeitos rítmicos, podemos particularizar a impressão: apenas no primeiro terceto temos uma leitura fácil, do ponto de vista métrico acentual e do ponto de vista da coincidência das pausas métricas com as pausas rítmicas. As demais estrofes trazem vários tipos de resistência a uma leitura que privilegie a tradição métrica, como logo veremos.
Também no nível de cada verso, isoladamente considerado, o soneto causa estranhamento: há vários versos de métrica ambígua ou irregular) e já o primeiro dá o tom do soneto, fugindo ao uso corrente do decassílabo em seu tempo. Conhecido pelo nome de “provençal” ou “galego-português” não é portanto um verso estranho à versificação portuguesa1. Mas tendo caído em desuso a partir do século XVI, continuará muito pouco utilizado na segunda metade do XIX, apesar do parecer de Castilho, que o julgava “muito aprazível e acomodado ao canto”2. Camilo Pessanha tinha consciência de sua raridade, e por algum tempo parece ter acreditado mesmo que se tratava de uma solução sua, original. É o que vemos numa carta a Carlos Amaro, datada de 1908 — dez anos, portanto, depois da primeira publicação deste soneto —, na qual o poeta escrevia:
“Também desejaria falar-lhe mais de versos. Sabe que, à força de matutar na última noite que passei em Lisboa, vim a descobrir que o ritmo dos meus decassílabos que tanto me preocupavam é o do verso de Verlaine:
D’une douleur on dirait
                                             orpheline?
Se eu aqui tivesse a obra do grande poeta (tenho-a em Macau) havia agora de estudá-la sob esse aspeto. Nem de tal me lembrei, e até estava convencido de que ele se servia exclusivamente de metros clássicos.”3
O que é interessante nessa passagem é que ela permite ver que, utilizando essa particular distribuição dos acentos como forma de obter novas possibilidades rítmicas desde 1890 (é dessa data o soneto que começa por “Ó Madalena, ó cabelos de rastos”), Pessanha sentia claramente que fugia aos metros clássicos e que inovava, ao utilizá-la sistematicamente4. No que estava certo, pelo menos no que diz respeito ao seu próprio tempo, porque embora sempre deva ser possível encontrar exemplos isolados de verso provençal no final século XIX, apenas na obra de Camilo Pessanha se pode observar uma recorrência tão notável desse metro.
Esse primeiro verso, portanto, pela sua raridade, inscreve o soneto numa clave de estranhamento. E o que o segue aumenta a singularidade métrica, pois não se escande facilmente. De facto, não podemos ler: a/in/da/vi//vos/so/bre a/hú//mi/da a/rei//a — como talvez fosse a leitura espontânea, buscando a repetição da tônica na quarta sílaba e a acentuação na oitava, como no sáfico. Daí resultaria um verso de onze sílabas. A leitura tem mesmo de ser: ain/da/vi//vos/so/bre a/hú//mi/da a/rei//a — com acentos na terceira, sétima e décima. O verso seguinte, por sua vez, acrescenta a tensão instaurada pelos precedentes, ao exigir do leitor uma pausa prolongada, de modo a evitar a cisão e garantir, assim, a manutenção do número métrico. É apenas no quarto e último verso que se encontra, do ponto de vista das expectativas métricas e rítmicas criadas pela tradição do verso português, um momento de resolução, com um perfeito sáfico.
A segunda quadra também apresenta algumas tensões métricas: osenjambements minam a cadência dos decassílabos e potencializam o estranhamento do verso 6, dotado de apenas duas tônicas, e do verso 8, que numa leitura desatenta seria claramente hipométrico. É na terceira estrofe que encontramos o momento de repouso, do ponto de vista das tensões e das dissonâncias: sem enjambement, sucedem-se aqui três versos bastante regulares. Mas esse momento de repouso métrico é violentamente rompido logo no primeiro verso do terceto final: “O esforço inútil! e vem logo a maré”. Como manter este verso dentro do padrão decassilábico? É verdade que pode ser decomposto em duas sequências, uma de quatro e outra de seis silabas poéticas. Mas, de um ponto de vista tradicional, é mesmo um momento de quebra, em que o ritmo expressivo se impõe, com flagrante desrespeito à convenção métrica. O verso seguinte, entrecortado sintaticamente, não representa um problema, do ponto de vista do metro, mas o último, embora mantendo-se dentro dos limites silábicos, sintetiza todo o estranhamento que marca esse soneto, ao apresentar uma acentuação completamente estranha aos esquemas tradicionais, e que dá ao verso um andamento algo grotesco e bastante inusual.
Anotadas essas impressões quanto à forma de articulação métrica e rímica dessa primeira versão do soneto, aproximemo-nos dele, agora, tentando identificar o que nos diz no plano imagético e conceitual.
Partindo sempre do mais elementar para o mais complexo, a primeira constatação a fazer quanto ao desenho geral desse soneto é que ele se estrutura sobre uma metáfora simples e banal: a vida é uma caminhada, isto é, o deslocamento no tempo é tratado como deslocamento espacial. Já no comentário à carta a Alberto Osório, abordamos alguns particulares desenvolvimentos dessa metáfora. A nova dimensão imagética, em relação aos fragmentos de que já nos ocupamos, é a do reencontro do momento inicial, que não estava presente no contexto da primeira carta analisada, em que o movimento era um contínuo afastamento de um ponto original.
Agora, a “fugitiva hora” em que o movimento se inicia é reencontrada pelo poeta ao final de um percurso que se revela circular. Essa circularidade do trajeto se apresenta para nós de modo inequívoco nos dois primeiros versos. De facto, não se trata de um caminhar retilíneo, e tampouco se trata de um movimento de volta sobre os próprios passos, mas de uma caminhada em que se pisa terreno novo até o momento do encontro do lugar da partida. O sentido básico desses primeiros versos, que será desenvolvido e glosado ao longo de todo o soneto, é um conhecido lugar-comum: após um longo deslocar-se, o poeta percebe que estivera andando em círculo. Mas já existe, nesse segundo verso, um elemento novo, que revitaliza a batida metáfora em que se insere: os passos antigos, os primeiros, ainda estão presentes na areia de uma forma inesperada: estão vivos. “Ainda vivos” diz o poema, e a excecionalidade desse estado em que encontra os passos é ressaltada pelo desdobramento da imagem nos dois últimos versos dessa primeira quadra: a hora da partida, a “fugitiva” hora já desaparecida é trazida de novo à vida pelo olhar do poeta. Embora não se explicite imageticamente, é muito sensível que o ainda refere um estado agônico, de quase morte, reforçado logo a seguir pela introdução da ideia da revivescência propiciada pelo olhar sentimental e pela reconstrução da memória, isto é, pela evocação emotiva que reencontra as circunstâncias em que se deu o início do percurso.
Já a segunda estrofe associa, ao topos da caminhada circular, o da inutilidade dos esforços. Numa construção alegórica bastante clara, temos aqui uma apresentação da impossibilidade de progresso. A identidade entre o momento da partida e o da chegada — seja do ponto de vista da situação espacial, seja do ponto de vista da direção do movimento — é que mostra que os passos doidejaram perdidos, sem conduzir a lugar algum; e leva também ao julgamento de que o tempo da caminhada/vida foi inútil e os esforços foram, portanto, igualmente inúteis. Nesse quadro, as lágrimas contidas tanto podem ser lidas como índice do enternecimento pela recuperação da origem ou, o que parece mais condizente com o tom geral do poema, como produto de uma sensação de impotência.
A terceira estrofe, ao glosar, por desenvolvimento comparativo, o tema do trajeto circular, introduz dois novos elementos, que adensam a imagem inicial da caminhada. Em primeiro lugar, enquanto na estrofe inicial não havia uma determinação externa para a circularidade do trajeto, agora já temos a figura do vento vário, que, sem razão ou constância, acabou por imprimir a direção circular do trajeto descrito na primeira estrofe.
O vento vário, o vento mau, símbolo tradicional do destino funesto, teve uma atualização poética que era da predileção de Pessanha, e de que talvez se encontre aqui um eco ou alusão. Mas o que é interessante observar é a transição da imagem do vento vário para a das aves engaioladas. É uma associação por contraste. O vento, elemento que poderia compor a imagem de liberdade das aves, conduz à comparação do trajeto do poeta com o descrito pelas aves engaioladas. Nessa passagem de um universo para outro, em que o termo comparante não se mantém, o único elemento de sentido que permite a transição imagética é a existência de um limite externo para o movimento, isto é, de um condicionante para o trajeto. Ora, esse condicionante, no caso do andarilho que reencontra os próprios passos, não aparece claramente identificado em nenhum momento. Tampouco se percebe qualquer determinação do sujeito particular que experimenta o condicionamento. Dessa conjunção de circunstâncias, resulta um sentido interpretativo que se poderia resumir numa proposição ampla: mais do que a situação individual do sujeito desse soneto, é a vida do homem, em geal, que pode ser descrita como uma caminhada circular. Ou seja, o soneto nos parece propor uma representação da condição geral, humana, e não de uma condição particular ou individual.
O símile das aves engaioladas, que ocupa todo o primeiro terceto, é central na constituição dos sentidos do poema, pois além da determinação externa acrescenta ainda um outro elemento à imagem inicial da caminhada: a noção de esgotamento, de cansaço, em que a morte se insinua como solução e fim do movimento repetitivo. Nesse ponto do poema, o sujeito do movimento circular, que no princípio parecia dotado de poder de vida — era ele que fazia reviver sob os seus olhos os primeiros momentos da partida —, agora é comparado às aves exangues, de modo a reforçar a falta de sentido do trajeto percorrido: o esforço despendido na caminhada não produziu frutos, mas apenas exaustão.
É justamente esse o tópico explicitamente desenvolvido no último terceto, que abre com a proclamação da inutilidade do esforço empreendido. Abandonado agora o símile das aves, retorna o poema à imagem inicial, em que o poeta contempla na areia os próprios passos. A exclamação refere-se globalmente a todas as ações até aqui descritas. Imediatamente, parece surgir da contemplação das aves, mas logo concluímos, pelo desenvolvimento da estrofe, em que se dá um retomo à cena inicial marinha, que seu escopo é geral e que todo esforço, inclusive o da evocação da hora da partida, parece inútil.
Os últimos versos, completam o cenário, introduzem finalmente o elemento que faltava para compor a marinha: o mar, a maré montante, que em breve apagará todos os passos na areia — os antigos, recém-descobertos, e os atuais, que reconduziram ao encontro da origem. É uma vez que a caminhada e as pegadas dela resultantes nos surgem como representação metafórica da vida, a maré montante nos aparece como metáfora da morte.
O que, porém, é digno de atenção aqui é o desdobramento comparativo que sofre essa última metáfora: a maré apaga os rastros na areia como um cão lambe um rastro de sangue. Voltamos assim àquele fragmento de carta que já comentamos, pois é claro que, se o cão representa a morte, o trajeto da vida é, de novo, um rastro de sangue: o grumo de sangue por toda parte foi deixando um pouco da sua substância, até o completo esgotamento. Mas não é o esgotamento que vem para primeiro plano, com a imagem final do soneto, mas o apagamento dos rastros, a devoração da substância abandonada pelo sujeito ao longo do seu trajeto. Ou seja: a cena angustiante do cão lambendo os rastros de sangue reforça a postulação da inutilidade dos esforços, porque nada resta do indivíduo, uma vez terminado o seu tempo e unidas as duas pontas da sua caminhada. O que avulta, portanto, quando lemos esses versos com atenção, é a ideia de que se perde a memória, a história. Trata-se, mais do que uma anulação da vida em si mesma, de uma perda dos registros dessa vida, do esquecimento. E aqui tangenciamos uma questão que nos parece central na visão de mundo implícita na obra de Camilo Pessanha: a descrença na transcendência. E essa falta ou impossibilidade de transcendência — presentificada pela imagem das aves presas, que voam em círculos, sem nunca ir além dos limites que lhes são impostos pela tela do aviário — que faz da morte um momento de completa aniquilação: a morte é o puro esquecimento, diz Pessanha em outro poema, o momento único em que o homem “dorme enfim sem desejo e sem saudade / Das coisas não logradas ou perdidas”.
Fechado o soneto, ao retornarmos às primeiras linhas, quando o poeta nos narrava o encontro com os rastros ainda vivos, somos levados a reavaliar toda a leitura a partir do verso final. Adquirem agora mais peso o adjetivo “vivos” e o verbo “reviveu”. A partir do que já viemos comentando, os rastros estavam ainda vivos não apenas porque o sujeito reencontrava a hora do seu nascimento e, assim, os revivia. Estavam vivos porque constituíam parte do seu ser, que se foi desfazendo ao longo do caminho. O último verso nos remete ao universo da carta de abril de 1894, em que a experiência da vida era descrita em termos de uma impregnação do mundo pela substância do sujeito, que por isso mesmo ansiava pela recuperação do passado e das experiências como forma de recuperar-se a si mesmo, a sua integridade. Deparamo-nos novamente aqui, portanto, com aquela forma peculiar de relação com o mundo que Pessanha qualificava como uma “espécie de avareza” e compreendemos a razão por que a avareza se frustra: o sujeito não consegue, mesmo quando os reencontra, recuperar os rastros que deixou. O sentimento que predomina no reencontro com o passado é a frustração, a impotência. E a morte, que poderia parecer uma resolução de tensões — um momento de repouso, portanto — não é, na verdade, consoladora. Num universo sem transcendência, é apenas um momento de vazio, de anulação das formas e dos esforços — um momento impessoal, que se vaza numa imagem de acentuada brutalidade, em que sentimos materializar-se surdamente a revolta do poeta.



The Guardian  36x48  oil on canvas:

Esse soneto, como já registramos, foi ao longo dos anos reescrito, até que por volta de 1915, o poeta lhe deu a forma sob a qual o conhecemos hoje. Pode ter havido várias versões intermediárias, mas restou-nos apenas uma, provavelmente de 1908, com o seguinte texto:
Quando voltei, encontrei os meus passos
Ainda vivos, sobre a húmida areia.
A hora tão antiga — reevoquei-a,
Tao rediviva, em fugitivos traços,

Nos meus olhos, que as lágrimas contidas
Turvavam! Passos, porque doidejastes
Assim perdidos, e depois tomastes
Ao ponto das primeiras despedidas?

Porque essa agitação, fadigas minhas.Em redor, como à tarde as andorinhas
No ar se esgotam — sem discernimento?
Onde fostes? Meus passos! Para quê?..
Até vir apagar-vos a maré
Como um cão que lambe um rasto sangrento.
  
As intervenções do poeta, nessa versão que nunca chegou a ser publicada, são muitas, e estão marcadas com itálico no texto transcrito. Não nos interessa, neste momento, comentar em profundidade o sentido de cada uma das intervenções do autor, mas apenas discutir, do ponto de vista do tema que vimos perseguindo, as direções principais em que elas aqui se processaram6. De modo geral, é possível observar que, do ponto de vista da versificação, o poeta atuou no sentido de eliminar focos de tensão, normalizando aqueles versos que eram heterométricos (mas não os isométricos de acentuação desusada). Já no que diz respeito à apresentação das imagens e à estruturação sintática, também parece claro que nesta segunda versão o soneto adquire um tom mais dramático, mais carregado. Ao invés das aves exangues num aviário, desfalecendo pela inutilidade do esforço do voo circular, temos agora andorinhas que se esgotam sem discernimento, em agitação inexplicada já que não procede do confinamento. O próprio encontro mais ou menos acidental com os passos iniciais, que na primeira versão conduzia diretamente ao reencontro com o tempo passado, conduz aqui ao esforço da evocação. E já não se trata da hora fugitiva, indistinta, mas da hora mais antiga, determinada, sendo agora fugitivos apenas os traços, os resultados da evocação. Quer dizer, parece haver aqui uma vontade de explicitação das imagens centrais, de levar às últimas consequências a componente alegórica do soneto que, na primeira versão, diluía-se na diversidade das metáforas. Mas a parte em que as transformações foram maiores é a que vai do verso número cinco até o verso número doze. É aqui que se dão as maiores mudanças, que têm por efeito basicamente aquilo que estamos descrevendo como a acentuação do caráter dramático do texto: os versos se tornam mais entrecortados, devido às reiteradas apóstrofes, aos vocativos bruscos, e aos violentos enjambements que dominam toda a segunda estrofe. Do ponto de vista expressivo, o objetivo final desse conjunto de alterações não é evidente, pelo menos não neste nível de análise; mas talvez não seja descabido pensar, a partir dos elementos que fomos identificando na leitura, que a ação do poeta tenha sido dirigida a fazer com que tudo, nesta versão, convergisse gradativamente para a imagem final, isto é: que o objetivo das alterações tenha sido equilibrar melhor o soneto, distribuindo ao longo dos versos uma crispação que, no texto de O Progresso, ficava condensada no desfecho inesperado e que era afinal, pela violência e crueza da imagem, destoante do conjunto.
Não será essa, entretanto, a última versão do soneto. Em 1915, nos autógrafos que deixou em Lisboa e que serviriam de base para a publicação na Centauro e naClepsydra de 1920, temos uma redação bastante diferente, que resolve de uma outra forma a desproporção entre último verso e o restante do poema. Ei-la:
Quando voltei encontrei os meus passos 
Ainda frescos sobre a húmida areia. 
A fugitiva hora, reevoquei-a,
— Tão rediviva!, nos meus olhos baços...

Olhos turvos de lágrimas contidas.
— Mesquinhos passos, porque doidejastes 
Assim transviados, e depois tornastes 
Ao ponto das primeiras despedidas?

Onde fostes sem tino, ao vento vário, 
Em redor, como as aves num aviário, 
Até que a asita fofa lhes faleça...

Toda essa extensa pista — para quê? 
Se há de vir apagar-vos a maré, 
Como as do novo rasto que começa...
  
Como vemos, esta versão retoma soluções encontradas em ambas as anteriores, com claro predomínio da primeira. Do ponto de vista da configuração rítmica, é notável o trabalho de normalização da métrica e da distribuição dos acentos. Não só não é recuperado aqui nenhum dos casos de escansão problemática que identificamos no comentário ao texto do jornal, mas mesmo aqueles versos que, na versão intermediária, ofereciam alguma dificuldade de leitura foram alterados. E no que toca à distribuição das tónicas no interior dos versos, devemos notar que apenas os dois primeiros causam ainda algum estranhamento, pois mantêm o acento métrico na sétima sílaba. Os demais, deixam-se ler ou como heroicos, ou como sáficos. Não oferecem, portanto, resistência à leitura orientada pela tradição. Porém o que é mais digno de nota nesta versão é o desaparecimento da imagem final, em que a morte ou o esquecimento se apresentava como um cão que lambia avidamente os restos de vida que o sujeito tentava recuperar.
Para melhor compreender o sentido dessa supressão, consideremos a configuração do poema, do ponto de vista da construção imagética. Em todas as versões, o poema se constitui sobre uma equação simbólica, que se poderia explicitar da seguinte forma: as pegadas na areia estão para a maré montante assim como a vida está para a morte. Na base dessa equivalência, encontra-se a metáfora central do poema: a vida é um percurso circular. Pois bem, as primeiras versões acrescentavam, a esse cerne imagético, dois desenvolvimentos comparativos, como já observamos: a circularidade do percurso da vida e sua falta de progressão real eram com parados ao voo das aves num aviário; a maré que apagava os rastros gerava a imagem de um cão lambendo um rastro de sangue.
Do ponto de vista da articulação simbólica, entretanto, os dois desenvolvimentos não têm o mesmo estatuto. A imagem das aves se mantém, por assim dizer, no nível simbólico básico do poema, pois se vincula diretamente à metáfora primeira: a vida é uma caminhada circular e inútil, como é também o voo das aves presas num aviário. Isto é: o trajeto das aves é um símile do trajeto da vida, reforça apenas a noção de circularidade e de inutilidade do percurso. Já a imagem do cão é um desdobramento da imagem da maré — ou seja, é um desenvolvimento de um dos termos da equivalência lógica, e não um símile vinculado à metáfora básica —, acrescentando à ideia de rastro a de perda de substância e à de apagamento desses rastros a de devoração, de transferência de substância de um ser a outro.
Dessa posição simbólica e sequencial, e da sua própria violência sensória, provinha um certo caráter de perturbação que era muito sensível nesse verso, que ficava vibrando na memória da leitura e desequilibrava o conjunto do soneto. A neutralização desse desequilíbrio, como já dissemos, parece ter sido o objetivo do trabalho do poeta na versão intermediária. E também nesta última versão, em que a imagem é simplesmente eliminada, em beneficio do reforço da unidade da cena marinha. Agora, já não há devoração, nem sangue: os rastros apenas se dissolvem na maré montante, natural e rítmica, que elimina igualmente os dois rastros de extensão e significado díspar. Sem o último desenvolvimento comparativo, substituído pela introdução do novo rastro alheio, o poema agora sintetiza de modo muito mais impressionante a inutilidade dos esforços e a onipotência absurda da morte. Da mesma forma, eliminado aquele foco de tensão que era o verso final, o poema todo parece muito diferente. Não chegam mais à superfície do texto os movimentos angustiados do homem que sente a aproximação do final da vida, e o tom geral é de serenidade, quase resignação.
Do ponto de vista formal, o soneto agora transcorre suave e equilibradamente, e esta versão reúne e acrescenta todas as soluções imagéticas que evocam experiências sensórias: sente-se a asita fofa das aves que desfalecem; vê-se a extensa pista circular, de rastos frescos; percebe-se a aproximação da maré que a vai apagar. Da primeira imagem, é conveniente repetir, não resta praticamente nada: o coágulo, o grumo de sangue se dissolveu. Atuou aqui, Sobre uma perceção de mundo que também dera origem a uma notação nervosa, numa carta dirigida a um amigo distante, uma vontade de depuração e de harmonia que permitiu a realização desses versos límpidos, cm que, como resultado de uma particular alquimia poética, encontramos aquilo que nos acostumamos a reconhecer como a maneira característica de Camilo Pessanha: uma atitude aparentemente desistente, que se expressa entretanto por meio de um texto muito trabalhado, que exibe uma perícia de construção que é, ela mesma, a negação mais forte do que o poema diz na sua superfície7.
É importante fixar este momento da análise e estabelecer este ponto: ao longo do tempo, a imagem que parece ter sido a geradora do soneto foi dissolvida pelos outros elementos do texto e finalmente eliminada. É importante essa constatação, porque acreditamos que se observa aqui, no caso específico deste poema, uma constante da construção poética de Camilo Pessanha. De facto, na leitura atenta das cartas, contos, poemas e rascunhos de poemas disponíveis para consulta, é sensível que muitos poemas se vão, como este, gradativamente construindo por uma mudança do universo referencial: a partir de uma imagem ou de um texto que funcionava mais ou menos alegoricamente no âmbito de uma mitologia pessoal, vamos, ao longo do tempo, transitando para um texto menos comprometido com uma experiência biográfica, menos transparente e mais fechado em si mesmo8.
O soneto também parece exemplar no que diz respeito à atitude de espírito que dele emana, e que a crítica tem definido reiteradamente como abulia ou como desistência. Ora, a análise das várias redações do poema nos mostrou, na verdade, que entre a primeira e a última versões se produziu uma transição de um estado de revolta e de reação para um estado que talvez se pudesse descrever melhor como vontade de resignação do que como abulia. Vislumbramos assim, na observação do desenvolvimento progressivo deste soneto, uma enorme tensão construtiva, que não se resolve em proclamações, nem em gestos e atitudes enérgicas atribuídas ao sujeito lírico, mas justamente na resolução dos problemas formais do poema. Mais adiante retomaremos este ponto, durante a análise de outros textos. Por agora, registremos apenas esta sugestão: alguma crítica tem detetado na poesia de Camilo Pessanha, uma atitude desistente frente ao mundo, decorrente de uma ausência de vontade atuante e de empenho afetivo9. De nosso ponto de vista, o que temos nessa poesia é uma vontade e uma energia construtiva que atuam de modo muito especial: na formação de um texto límpido e encantatório, cujo efeito mais notável é o de parecer justamente, na sua superfície, fácil, espontâneo, desprovido de tensões e de vontade. Ou seja, tem-se aqui uma vontade que se exerce no sentido de realizar-se negativamente, de aparecer como ausência de vontade do sujeito lírico. No ambiente em que surge, poderíamos talvez entender que se tratasse de uma particular atualização de uma visão de mundo, de uma espécie de aposta num caminho de ascese em que a voluntas nos aparece comonoluntas pela mediação de um trabalho de construção estética10.
Apenas a forma nos revela o esforço necessário à obtenção dessa noluntas, dessa vontade que se nega a si mesma, e apenas a consideração da evolução formal de cada poema, ao longo do tempo, nos permite aquilatar mais concretamente o trabalho necessário à atualização sensível desse estado de espírito que, por ser justamente tão bem resolvido em termos formais, já foi tomado como a expressão mais acabada de uma espontaneidade que nunca existiu no caso de Camilo Pessanha.
Em outro momento devemos retornar a este ponto. Por agora, o que mais importa, para que percebamos nos textos como se processa o desenvolvimento dos temas e questões que vimos debatendo, é prosseguir na análise dos poemas que mais diretamente procedem do complexo simbólico que vimos tentando balizar com a consideração dos temas do exilio, da nostalgia e do langor, desvendando outros fios de sentido que nos permitam ter uma compreensão mais abrangente dos tópicos que destacamos neste primeiro momento de trabalho.
  
Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, pp. 39-56
  
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(1) Para um estudo sistemático do decassílabo em Camilo Pessanha, veja-se A. Coimbra Martins, “Subsídios para o Estudo da Poética Simbolista: O Decassílabo de Camilo Pessanha” Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, (Lisboa — 1957), Lisboa, 1959. pp. 521 -542. Veja-se ainda do mesmo autor: “De Castilho a Pessoa —Achegas para uma Poética Histórica Portuguesa” Bulletin des études portugaises, NE 30, 1969. Vejam-se também, sobre a estrutura métrica e acentual deste soneto os comentários de Óscar Lopes em: História Ilustrada das Grandes Literaturas, Lisboa, Estúdios Cor, 1966, pp. 388-389. Quanto ao verso provençal, talvez seja interessante notar que sua utilização esporádica pelos nossos finisseculares chamou a atenção de Manuel Bandeira, que, na sua Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Parnasiana (Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1938), dedica-lhe uma longa nota, na qual transcreve oito exemplos extraídos de Os Lusíadas e nove da lírica de Camões (op. cit.. p. 262).
(2) Apud Coimbra Martins, “De Castilho a Pessoa”, op. cit. No mesmo estudo, o autor afirma que o verso em questão foi muito utilizado na poesia finissecular de língua espanhola por influência de Ruben Darío, que o utilizou no poema Pórtico, publicado em 1892. Curiosamente, Pessanha, que era admirador de Darío, vai redescobrir o verso em Verlaine.
(3) Apud António Dias Miguel, Camilo Pessanha — Elementos para o Estudo da sua Biografia e da sua Obra, Lisboa, Álvaro Pinto, s/d, p. 131.
(4) Nestes comentários, a referência aos poemas cujo título foi atribuído pelo poeta será feita entre aspas, com maiúsculas (v.g.: “Branco e Vermelho”). Já os poemas sem título ou, como é o caso deste, intitulados por terceiros, serão sempre referidos pelo primeiro verso ou primeiras palavras do primeiro verso seguidas de reticências, sem maiúsculas (v.g.: “Porque o melhor, enfim” e “Imagens que passais...”).
(5) Refiro-me, é claro, aos versos da “Chanson d’Automne”, que, segundo depoimento de Carlos Amaro, eram a fórmula utilizada por Pessanha rias despedidas aos amigos: Et je m’en vais, / Au vent mauvais / Qui m’emporte / Deçà, delà, / Pareil à la / Feuille morte.
6. Antes de prosseguir no comentário, registaremos que este soneto foi analisado extensamente por Barbara Spaggiari na sua primara edição da Clepsidra (Bari, Adriatica, 1983), merecendo especial atcenção da autora as modificações surgidas entre as duas primeiras versões. Como, entretanto. Spaggiari escreveu o seu livro sem poder consultar o material depositado em Macau, julgou que a evolução do poema se tivesse processado na ordem cronológica inversa que realmente se deu. Assim: o texto manuscrito, que é o produto das correções de Pessanha sobre o recorte de jornal, foi por ela considerado como o texto do jornal; já o texto do jornal foi tomado pelo das correções. Na edição que publicou em 1997, no Porto, pela Lelo Editores, a autora corrigiu, na anotação das variantes, o engano de 83. Mas manteve ainda o comentário estilístico como se a ordem das versões fosse ainda a que consignara na edição de Bari. Isso produziu alguns efeitos críticos bastante divertidos, que mereceriam ser considerados. Limitamo-nos, entretanto, a registrar o facto, que responde pelas divergências maiores entre as duas análises.
(7) A propósito da maneira de Pessanha, veja-se, por exemplo, o belo estudo de João Camilo doa Santos, “A Clepsidra de Camilo Pessanha”, Revista Persona, 10, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, julho de 1984.
(8) Vejam-se, para exemplo, as anotações do aparato critico dos seguintes poemas: “Vida”, “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, “E eis quanto resta…”, em Paulo Franchetti, Clepsydra, Lisboa. Relógio d’Água, 1995.
(9) É o caso, por exemplo, de Esther de Lemos, que no seu estudo clássico de 1956, A Clepsidra de Camilo Pessanha (Lisboa, Verbo, 1981), escreve na p. 184: “Há um soneto seu, único, estranho, que realça no seu livro como uma nota discordante numa sintonia. Este soneto representa, quanto a mim, um dos momentos em que a tendência recalcada se liberta e o Poeta se desforra, em pensamento, da sua longa desistência e renúncia cobarde” (grifo nosso). Uma critica interessante do ponto de vista psicologizante de E. de Lemos encontra-se no artigo de João Camilo “Sobre a ‘abulia’ de Camilo Pessanha (Persona, n.º 11, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1985, pp.67 e ss.).
(10). Aludimos aqui, evidentemente, ao pensamento de Schopenhauer. A propósito de Schopenhauer e a literatura finissecular, ver Guy Michaud: Message poétique du Symbolisme, Paris, Nizet, 1947. As reflexões de Schopenhauer sobre o papel da arte enquanto prelúdio do ascetismo estão concentradas basicamente no livro terceiro de O Mundo como Vontade e Representação, e é assim que resume o tema, no § 68 do livro quarto: “Por el libro terceiro sabemos que el goce estético que nos proporcionam los objetos bellos consiste en gran parte en que, sumidos en el estado de contemplación pura, libertados durante este intervalo de toda voluntad [...] nos libramos, por decirlo así, de nosotros mismos, y nuestra inteligencia deja de estar al servicio de nuestra voluntad [...]. Asi podremos comprender cuán bienaventurada deberá ser Ia vida del hombre cuya voluntad no está apaciguada por un breve instante, como sucede con el goce estético, sino para siempre, pues se encuentra completamente apagada, salvo una breve chispa para conservar la existencia del cuerpo y que desaparecerá con éste. Este hombre, después de amargas luchas contra su propia naturaleza, habrá vencido, convirtiéndose en espíritu puro, como límpido espejo dcl mundo. A él ya nada le puede agitar, pues há cortado los mil lazos con que la voluntad nos ata a la tierra y que bajo la forma de concupiscencia, de miedo, de envidia o de cólera, nos commueven dolorosamente en todos sentidos (A. Schopenhauer, El Mundo como Voluntad y Representación, em Obras, Buenos Ayres. Librería El Ateneo, 1950, pp. 624-625). Quanto à presença de Schopenhauer no universo cultural de Pessanha, lembramos que, na revista Os Novos, onde o poeta colaborou, Carlos de Mesquita publicou, em 1893, uma apresentação de Jerónimo Freire em que expunha as linhas gerais do pensamento daquele filósofo. Ver, a respeito, Ofélia Milheiro Caldas Paiva Monteiro, O Universo Poético de Camilo Pessanha, Coimbra. Separata do Arquivo Coimbrão, vol. XXIV 1969. Lembramos ainda que, em uma carta de 1888, quando expunha o seu projeto de um livro de versos, Camilo se expressa nestes termos: “o [livro de] verso não teria nome. Dividi-lo-ia em duas partes. A primeira havia de ser a luta pela realização do prazer, com a certeza de lutar por uma aspiração falsa. Seria talvez pessimista: o prazer, não tendo realidade sua, era o aniquilamento do desejo, de forma que esta luta representaria ansiar a morte. A outra parte – exceções, consolações, aniquilamentos parciais do eu, êxtases, espasmos e modorras” (apud A. D. Miguel, op. cit., p. 72).



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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/12/quando.voltei.aspx]      

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