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sábado, 15 de fevereiro de 2014

BEATRICE (Antero de Quental)


"Dante and Beatrice", Sandro Botticelli 
                                
  
        
       
BEATRICE

Depois que dia a dia, aos poucos desmaiando,
Se foi a nuvem d’ouro ideal que eu vira erguida;
Depois que vi descer, baixar do céu da vida
Cada estrela e fiquei nas trevas laborando:

Depois que sobre o peito os braços apertando
Achei o vácuo só, e tive a luz sumida
Sem ver já onde olhar, e em todo vi perdida
A flor do meu jardim, que eu mais andei regando

Retirei os meus pés da senda dos abrolhos,
Virei-me a outro céu, nem ergo já meus olhos
Senão à estrela ideal, que a luz do amor contém.

Não temas pois ‑ Oh vem! o céu é puro, e calma
E silenciosa a terra, e doce o mar, e a alma...
A alma! Não a vês tu? mulher, mulher! oh vem!
      
Antero de Quental, Primaveras Românticas


          
            
A EXPRESSÃO DO LIRISMO AMOROSO
        
Na primeira fase, Antero de Quental exprime o amor espiritual, à maneira de Petrarca, sem a sensualidade da lírica de Garrett, mas cantando a mulher como ser adorável, uma "visão", como sucede em "Ideal", "Beatrice", "Abnegação" ou "Idílio".
Português: acesso ao ensino superior 2000, V. Moreira, H. Pimenta. Porto Editora, 2000.
       

         

Beatrice ‑ Afirma esta poesia a atitude romântica na fusão da religião cristã com o transbordar da paixão. O idealismo platónico dominante remete-nos para a poesia de João de Deus A Vida e Adoração, e, como já dissemos, vai mergulhar no soneto camoniano. Como ele, diz: «Transforma-se o amador na coisa amada ‑ / Dois são... e um só, também... / Anda uma alma com outra tão liada!... / São como filho e mãe». Amor de mãe, de irmã, de filho, até, como aqui, servem para provar a sublimidade do amor. Note-se o colorido romântico do vocabulário ‑ estrela, clarão sagrado, luz radiosa, senda dos abrolhos (J. de Deus), luz d'amor, o ritmo embalador, crescente, dos versos dado por uma pontuação expressiva e medidas diferentes, a traduzir a galopada do seu pensamento.
As manifestações do amor sensual que se desdobram na poesia Peppa, são acidentais na sua poesia, quase poderíamos dizer, artificiais. Antero é a antítese de Garrett. Este era o homem todo sentidos, Antero é o homem ideia, pensamento.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977)
       
  *
         
Antero escreveu o poema Beatrice entre 1861 e 1862 e publicou-o em Coimbra na Imprensa da Universidade em 1863; foi reproduzido depois nas Primaveras Românticas, cujo livro teve a sua primeira edição na Imprensa Portuguesa Editora, Porto, 1872. Na Biblioteca Nacional de Lisboa existe o exemplar oferecido pelo autor a António Feliciano de Castilho, com algumas notas manuscritas. O soneto Beatrice, secção do mesmo poema, escrito em alexandrinos, aparece também nos Sonetos Completos, publicados em vida do autor, sem diferença alguma em relação às outras lições.
Beatrice na obra de Dante representa um grande mito da consciência popular da Idade Média, mais do que literária, donde deriva a sua natural e lógica indissolubilidade do mundo medieval, mas também o seu elevar-se em tema geral e centro propulsor de toda a obra dantesca. Aqui ela parte como mulher terrena e se transfigura na arte no alto significado de teologia e de ciência divina; para Antero Beatrice constitui «essa ponte mística do amor e do sentir» (ANTERO DE QUENTAL, Primaveras Românticas, prefácio de Nuno Júdice, Coleção «Clássicos da Língua Portuguesa», n.º 5, p. 30), Em ambos os poetas ela é uma voz da memória, um «itinerarium mentis ad Deum», a realização, no seu momento mais completo, da poesia e ao mesmo tempo a enunciação de um enigma. Por quê, então, procurar indagar sobre a identidade de uma mulher, envolvida deliberadamente no mistério, seja ela a Beatrice Portinari medieval, seja a hipotética mulher casada «dos arredores de Coimbra» («Segundo urna informação de Eça Leal, os versos da secção Beatrice das Primaveras Românticas foram inspirados por uma mulher casada dos arredores de Coimbra (...)», é quanto refere António Sérgio em: ANTERO DE QUENTAL, Sonetos, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1972, p. 41). Ligá-la ao particular dado biográfico significa destruí-la como criatura poética. […]
Beatrice é um nome de mulher e como diz Antero «Um nome de mulher purifica a página onde se escreve, como uma só planta de aloés perfuma uma floresta inteira» (ANTERO DE QUENTAL, Obra Completa. Prosas da época de Coimbra, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1973, p. 166). Mas é evidente que a humanidade da mulher, como em Dante, é o caso de repetir, encerra um valor metafórico, uma interpretação alegórica, que, sem serem necessariamente símbolos da teologia ou da filosofia, são decerto signos de uma predileção psicológica e sentimental que a arte traduz em facto poético. […]
Antero abre o seu poema com um dístico que é um canto ao puro amor: «Nem visão, nem real: amor! amor somente!... / Pois quem sabe o que diz esta palavra – amor ‑?»
Outros passos de um percurso forçosamente redutor penso que mostram ulteriores ligações. Dante vê em Beatrice uma mulher-anjo, aliás, um anjo-mulher e, correlativamente, Antero exclama: «Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado, / Anjo! deu-te o Senhor um mundo à parte» Beatrice é imagem divina, «par che sia una cosa venuta / da cielo in terra a miracolo mostrare». (Tanto gentile 7-8). Versos aos que fazem eco os do poeta açoriano, ditados pelo devaneio da imaginação: «O infinito! Ideal! Visão, que mal pressinto! / Transfigura-te aqui! deixa cair teu véu! / Quero palpar e ver a Deus, n'isto que sinto! / Quero antever o céu!» A invocada e amada mulher, enfim, é no Elogio da Morte «alegoria da alegoria» a «Funérea Beatriz de mão gelada... / Mas única Beatriz consoladora!» A morte apresenta-se aqui em veste feminina, embora seja vista também, pelo Antero da Filosofia da liberdade, como o cavaleiro do soneto Mors Liberatrix, ao qual se referia provavelmente Carolina Michaelis de Vasconcelos, ao asseverar que «um lugar de honra será certamente dado ao sincero espírito que depois de invocar em cantos de poder genial a funérea Beatriz, se agarrou, n'um dia de desalento e enfraquecimento moral, exhausto de forças, à mão gelada da formidanda libertadora» (ANTHERO DE QUENTAL, ln memoriam, Porto, Mathieu Dugan Editor, 1896, p. 425).
Há portanto, quanto à conceção da morte, uma adesão à Beatrice dantesca, mas também um afastamento radical, no que da sua imagem emblemática, que é luz, salvação, guia, traduz-se em pessimismo e negação: Antero pertence a outro século e, neste sentido, recupera um tema mais moderno, o do romântico binómio amor e morte, essas duas forças trágicas do destino humano, sobre que o poeta volta a meditar no soneto Mors-Amor.
       
Ler ensaio completo: "Antero de Quental perante a Itália: Alegoria de Beatrice em Dante e na poesia anteriana", Amina di Munno. Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.
               


A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


 [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/15/Beatrice.aspx]

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