Páginas

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

OCEANO NOX (Antero de Quental)


José Carreiro, Ribeira Grande, ilha de São Miguel, Açores, 2011-10-16
             





OCEANO NOX 
A A. de Azevedo Castelo Branco
   
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... 

Antero de Quental
        




          
Antero indaga o Céu em busca de resposta, e só encontra o Nada. Ao sentimento dilacerante de que o equilíbrio é já impossível, soma-se agora o duma catastrófica solidão íntima ecoando a profunda mudez cósmica, como se pode ver no "Oceano Nox".
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa, São Paulo, Editora Cultrix, 1985 (21.ª ed.)
        
*
          
[…] a falta de resposta, isto é, de sentido (do mundo), que se patenteia no último terceto de "Oceano Nox", tem também um perfeito paralelo em Camões:
OCEANO NOX:
Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
  
CAMÕES:
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
  
São topoi muito gerais da ordem lírica, do estado de consciência poético, são a enunciação da própria situação poética no seu status nascendi, são ordenação estética do caos silencioso para que o homem encontrou uma falaciosa arrumação semântica. E por isso este discurso poético não é niilista, apenas questiona o sentido do sentido trivial, e quem lê nele niilismo lê apenas a falta do seu querido sentido trivial pré-estabelecido.
Fariam bem os autores destas interpretações em procurar nesta poesia todos os elementos que não só não vieram reduzir o mundo a nada, nem torná-lo mera abstração, mas, pelo contrário, vieram acrescentá-lo com a sua presença. Algo que não existia passou a existir.
Num artigo de 1861, Antero tematiza tudo isto, fala dum "sentimento confuso" que vem do "fundo da alma" e se eleva até tornar-se ideia, "ideia de sentimento": é um modo de descrever o processo de seleção e organização dos elementos do caos, não dentro da sua semantização pré-estabelecida, mas numa unidade superior a que Antero chama "Forma", e a qual para ele tem a sua manifestação mais pura no soneto. […]
Antero de Quental: Método paradoxal, pontual”, Alberto Pimenta. 
Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 249-266.
        
*
          
Direi algo obscuro: o mar, na experiência do poeta, é — em razão da força organizadora dos advérbios de modo, soando a tristeza conexa entre a criatura e a criação — projeção de uma perda dramática. A situação do poeta, sentei-me, busca ouvir tal dano no lamento que saía das coisas, vagamente. Nessa audição, Antero de Quental requer do ato poético um sacrifício. Explico: a palavra “nox”, qualificando o substantivo “Oceano”, está ali a anunciar onde a morte dorme, enquanto as palavras como ondas esfacelam na praia o inquieto desejo.
As perguntas estão no poema a promover um ethos de alienação, capaz de dar ao poeta a alegação de que o fracasso em entender o que murmura tem um significado superior. Ou seja: a alienação da audição está na poesia como colapso das relações significativas; quer dizer, o algo que está constantemente para acontecer, a fala do Inconsciente imortal, é o queixume do homem uno em si mesmo que, por conseguinte, deve considerar a estória que se conta, à beira das ondas, pelo que sabe estar além da história.
Melhor: o tipo de alienação existencial que Antero de Quental cria possui tal sanção teológica que é difícil percebê-lo como ideologia; antes, a derradeira ficção da sublimidade do ego em se identificar com aquela vastidão significante, o mar, requer instrução e repouso na fé. Contudo, o espectro do conhecimento que parece adquirir pronúncia a cada estalo das águas, sendo adquirido pela perda do poder do eu, assedia a ética para que ela persiga a sua maturidade até o ponto de não-retorno à identificação — que sempre é possível.
O ato poético de Antero de Quental, que da desordem espiritual de uma paisagem originária retira, por seus sons, o Inconsciente imortal — como ética de qualquer natureza, incluindo aí o caos torpe da história humana — apresenta o saber que diz que as melhores coisas são tremendamente sigilosas. Ou seja: se a relação entre o poeta e o expansivo significante for abstraída, fica o primeiro com a independência que, surpreendentemente, coincide com o puro conceito da liberdade ética.
Nesse sentido, quando a razão do poeta se põe em escura, postula a própria frustração de maneira que a imaginação descubra-se, inusitadamente, numa atitude de admiração. Se os murmúrios deixam registros do Inconsciente imortal que na natureza há de queixar-se e nada mais, o ato de contemplação do oceano ilimitado, onde dorme a morte, permite ao poeta sentir que tudo está simultaneamente ali, coexistindo com ele; num domínio de existência no qual o homem é incapaz de conhecer.
Assim sendo, o ato poético da compreensão de Antero de Quental, seu puro conceito de liberdade ética, toma aquilo que insiste como desconhecimento —Inconsciente imortal —, a partir da alienação existencial; que aponta para o íntimo destino antológico do homem; manifesto somente quanto ao aspeto ou condição de sua inatingibilidade. Ou seja: só na grandeza da derrota o ritmo da visão é quebrado na conjuntura que se anuncia, e nada mais...; que, não obstante, leva o poeta para além da segurança da audição.
O abismo do idealismo da escuta, “Oceano Nox”, está no nome do soneto como se fosse a forma daquele mistério; melhor: a poesia é que se torna ameaça quando se debruça sobre a audição do nada mais; pois comporta-se profeticamente, reivindicando o direito de preencher literalmente o silêncio que ainda perdura no lamento que sai datrágica voz rouca. Desse lamento, sentado tristemente, Antero de Quental contempla a face da eternidade; falantes, as ondas pronunciam vagamente sua linguagem cuja significação não pode ser lida em termos fenomenológicos.
Por não poder ler dessa forma, Antero de Quental abre os ouvidos para se perceber mais distante de si, mantendo ainda o silêncio do nada mais preenchido pela impossibilidade de atribuir um sentido positivo à existência. A ação do mar que o fez deter-se na escuta é absorvida no soneto como momento contingente do destino; o que significa dizer que não é construído a partir de uma ideia; pois a impossibilidade da objetividade do sentido faz a poética cumprir a tarefa de tornar o eu gramatical do soneto um eu espiritual da escuta supra-sensível.
Ou seja: o soneto “Oceano Nox”, mediante a sua participação imediata na linguagem dos murmúrios que as ondas ressoam, da qual não se liberta, refere-se a um “nós”, envolto num processo de completa subjetivação; cujo estado histórico de impossível objetividade de sentido é juízo ético sobre a improcedência do próprio ato de conhecer o contínuo nada mais que o Inconsciente imortal pronuncia derradeiramente. Dessa maneira, o “nós” se instala na medida em que qualquer homem tende à escuta das palavras pronunciadas nos estalos das águas; mais, quando os respingos sugerem discursos que só o íntimo de cada um encontra ao traduzir toda e qualquer justiça para a humanidade.
A febre ética de Antero de Quental desfralda o puro poder do indizível que, por não se revelar, mostra as palavras do soneto a manter uma proximidade radical entre a natureza cm excessivo significante e o precário real de seu significado. Já que isso concerne ao acontecimento primeiro do soneto — passava como o voo dum pensamento que busca e hesita, inquieto e intermitente — a febre ética toma o intermitente para expor o que ocorre enquanto sucede.
Mas o que tal quer dizer, se faço existir a presença de um “nós”? Ninguém pode se negar a admitir que na proximidade de uma vastidão contemplada, a adivinhação apareça como o único caminho da mente entre o íntimo abismo que se abre enquanto os olhos buscam pontos de fuga na imensidade; ao mesmo tempo em que ela, na audição, se põe ao ouvir um nada mais. Assim, adivinhação consubstancia a poética de Antero na medida em que funda a sua ética — a justiça pretendida responde ao enigma do futuro como se fosse por ele interpelado.
Sendo, o soneto de Antero de Quental imprime através de um eu espiritual, que escuta supra-sensivelmente, algo que deve escapar à necessidade de sentido para afirmar o fatal ético de qualquer sentido em suas poesias. Nesse ato, o “nós” envolto num processo de completa subjetivação afirma a medida da humanidade, que, ao ser pensada, encontra nos ruídos da natureza a pronúncia de uma linguagem desejada e inexecutável de ser conhecida. Sem ela, porém, o eu poético não escuta o silêncio que a justiça almeja.
Se assim pode ser, recuo e postulo uma treliça para separar e, mentirosamente, concluir. Se no início do texto admiti um corte, devo agora retomá-lo. Há algo que não se realiza quando se pretende observar as ações do ego poético na cultura portuguesa — segundo a presença do romantismo, sem lhe dar momento temporal. A sua demonização ao falar, conforme o deslocamento que difunde o seu poder à medida em que subverte os parâmetros poéticos, parece sempre encontrar um particularismo que corresponde à presença, algo utilitária, da Natureza (mesmo urbana, e no sentido de uma paisagem que lhe dá possibilidade de abstração).
Esse fato de cultura cunha o sublime egotista, romântico e para além dele, através da estrutura da alienação que, dos colapsos das relações significativas, regentes da expectativa poética, faz da alma uma lacuna; cuja extensão é descoberta à medida que é preenchida por escape comum à viagem de um eu; golfos, praias, enseadas e cabos para um pouso da subjetividade — o que chamo de particularismo português, ou, então, cordato risco lusitano. Explico: os três poetas, cada qual na singularidade que os revela, têm o espaço interior, expressão da infinitude do espírito romântico, nascido sem a marca de um vazio maciço e mais ou menos inconsciente, segundo a forma da poesia moderna; o que significa que a sublimidade centrada nas emoções do sujeito é objeto — o que é o mesmo que dizer que a primitiva psicologia associacionista tem ainda lastro.
Ou seja: num ou noutro, a consciência poética ativa-se na medida em que a essência da alma do poeta expressa um tipo de reflexão capaz de erguer sensações em tom familiar, consigo mesma e conhecendo as suas faculdades. Assim, objetos vastos provocam sensações vastas; e estas dão ao espírito do poema uma ideia superior dos próprios limites. Logo, a alma do poeta é ainda o espaço em que as sublimações ocorrem, mas sem qualquer efeito constitutivo do problema da relação entre sensação e reflexão na poesia.
Essa relação é motivada por um apego naturalista, como se fosse um ato moral da metáfora; o que é o mesmo que dizer: não há associação que seja capaz de, mesmo em tom ínfimo, enfraquecer a garantia que a linguagem corrobora ao reiterar a relação entre sensação e reflexão. A consciência poética, então, é disposta sobre e contra qualquer ordem formal — no sentido de concreta abstração, como um fato plástico —; antes, afirma-se espectadora que não tem nenhuma ação e não pode interferir e, ao mesmo tempo, não possui autoconhecimento fora dessa ordem. Se as sensações são retiradas, a consciência só percebe a reiteração da linguagem.
É isto que torna possível uma convenção não examinada na cultura portuguesa; o significado das palavras está unicamente na maneira como são usadas, pois em princípio um apelo à Natureza além da linguagem não tem fundamento familiar no particularismo de um eu português. E é dessa forma que o voo da liberdade de Camilo Pessanha pressupõe o deserto e clama a morte como um personagem íntimo ao facto poético; e é assim que o corpo de Cesário Verde se oferece como contraponto à paisagem onde ele deposita sua tristeza, recolhendo num eu-recetáculo as sensações naturalizadas nas próprias reflexões de paisagem; como também, é assim em Antero de Quental, ao ouvir e medir a mística, a razoável intimidade entre a justiça e o que desconhece ao se pôr palavras como se colocasse velas nas sensações, para de imediato evitar o risco da viagem e encontrar, rapidamente, um canto para profetizar o quanto de justiça o esperava se o navegar tivesse delírios em remos.
Desempenho da leitura: sete ensaios de literatura portuguesa,
Marcus Alexandre Motta. Editora 7Letras, 2004
        
*
          
Para Antero de Quental, acreditar num Deus supremo foi o alicerce onde firmou todo o seu projeto de vida. A perda desse fundamento transformou o poeta num ser angustiado, pessimista e cheio de dúvidas. Esses sentimentos permaneceram ao longo de toda a sua trajetória de vida, levando-o à busca de Deus pelos caminhos da Filosofia. Percorrendo-os, foi atribuindo novos nomes a Deus - Bem, Justiça, Verdade, Absoluto, Ideia, Ignotus, Inconsciente -, na tentativa de conciliação entre o seu novo ser e o que fora em sua juventude. Nesta busca de um impossível, conseguiu apenas um simulacro de solução: a evasão pela morte. Como um romântico - que, no fundo, sempre foi - matou-se na sua Ilha de São Miguel, sentado em um banco de praça, diante de um muro onde se lia a palavra cujo sentido perdera: Esperança.
Antero de Quental: Uma trajetória com DeusHelen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003.
   

   SUGESTÃO DE LEITURA:

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/06/oceano.nox.aspx]

Sem comentários:

Enviar um comentário