NEMÉSIO, O MAR E A ILHA.
O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises.
Por Diogo Pires Aurélio
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
A obra de Vitorino Nemésio, em especial a sua poesia, tem sido prejudicada por uma série de mal-entendidos, quer de natureza literária quer até de natureza biográfica. Começou com os críticos da Presença, que nunca se acostumaram àquele seu virtuosismo, alegadamente só de palavras, “coisas de soar”, como ele gostava de dizer, sem uma âncora na “estrutura psicológica” em que era suposto a poesia estar, antes de estar nos versos, e a resvalar para o gongórico. Nemésio fazia piruetas numa sintaxe retorcida e num léxico que lembrava o “pitoresquismo” – suspeita de que nunca se livrou e de que o próprio Jorge de Sena se fez eco –, tudo a flutuar numa leveza que contrastava com a seriedade e o dramatismo evidenciado nas obras mais representativas da folha coimbrã, a começar por José Régio. Os neorrealistas, por seu turno, torciam o nariz perante o hastear de maiúsculas – Senhor, Verbo, Unção, Ser – que, volta e meia, sobretudo a partir de O Pão e a Culpa, convocava o transcendente à superfície dos versos e punha as palavras, literalmente, em sentido, olhos no Além, alheadas da história e das suas contradições. Como se tudo isto não bastasse, Nemésio não era só o poeta e o romanista, era também um catedrático, designação que, nesse tempo, além da respeitabilidade do cargo, trazia implícita a bênção do regime, razão suficiente para que a inteligentzia, mesmo quando o reconhecia como avis rara, fizesse questão de manter as devidas distâncias. O belo epitáfio que Eugénio de Andrade lhe dedicou, num poema de Ostinato Rigore, explica perfeitamente esse novelo de equívocos que fizeram que o autor de O Bicho Harmonioso fosse toda a vida olhado como uma espécie de “cavaleiro das tristes figuras”, expressão que parodiava um título de Nemésio: “Conversão ao catolicismo, fretes ao estado/novo, prémios do SNI não ajudavam muito/a que te lessem ( ).”
O problema é que Vitorino Nemésio, conhecedor de tais suscetibilidades, passou sempre ao largo, dir-se-ia apostado em trocar-lhes as voltas, fazendo sem alardes o seu próprio caminho. Ainda os presencistas andavam entretidos a remoer a ideia de uma poesia da qual as palavras seriam apenas um pálido eco – “a poesia é anterior à expressão em que se traduz”, dizia Gaspar Simões – e já ele se havia apercebido de que na linguagem existe algo mais do que simples “forma”, como é visível nos célebres poemas de finais dos anos 50, em que se plasma uma reflexão cujas raízes remontavam a Heidegger e, por via deste, aos românticos alemães. Constava que tinha, a certa altura, trocado o lirismo do mar e das tias, dos baleeiros e das enxós do avô Votrino, e se convertera à contemplação metafísica do tempo e da morte, para já não falar do misticismo teológico da culpa e do pecado, mas eis que ele retorna, vestido agora de fervores autonomistas, ao aconchego das origens com a Sapateia Açoriana, mais ou menos pela mesma altura em que se sangrava em sensualidade e requebros de apaixonado hors saison, no Caderno de Caligraphia, em que há “palavras tiradas/como o leite às bezerras”, para a sua marquesinha, aquela “que vários seu corpo amaram/mas um só se enamorou”. Manifestamente, a sua arrumação foi sempre uma tarefa votada ao fracasso, de tal maneira ele se entretém a pôr e tirar máscaras, num exercício de heteronomia que nada tem de pessoano, pois remete sempre para um eu, mesmo se “comovido a oeste”, mas nem por isso é menos fértil a convocar figuras de sua invenção, que lhe dão rosto e o protegem contra a diluição no mar, esse mar que lhe cercou a infância e lhe foi a vida inteira um alter ego: “Somos só água que se some.”
A identificação com a água “que se some” é, em Nemésio, algo mais profundo do que o pressentimento, cristão ou simplesmente estoico, da inevitabilidade da vita brevis. A água não é aqui um equivalente do que é efémero e, por isso, vão. Pelo contrário, ela representa o elemento primordial, aquele de onde todos os outros hão de brotar, o caos informe que traz no ventre todas as formas possíveis. David Mourão-Ferreira, um dos críticos mais atentos e dos que melhor se apercebeu do papel do mar na poesia nemesiana, cita a este propósito os estudos de Mircea Eliade: “Uma das imagens da criação que melhor se manifesta é a ilha que subitamente se manifesta no meio das vagas. ( ) A imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogónico da manifestação formal, e a imersão equivale a uma dissolução das formas.
A leitura que David Mourão-Ferreira faz da dialética entre o mar e as ilhas fica-se unicamente por um registo Jungiano da psicanálise, em que a água funciona como figura do inconsciente, ao mesmo tempo que o rochedo firme da ilha representa a “síntese de consciência e vontade”, em que o eu se refugia dos perigos e medos inspirados pelo mar do inconsciente. Semelhante interpretação, que os críticos da Presença não enjeitariam, fica, no entanto, muito aquém de esgotar a função desempenhada por essa dialética na obra de Nemésio. Permite, é certo, apreender um duplo campo de identificação do poeta, ora com o mar ora com a ilha, que vai ao arrepio das leituras que o circunscrevem a esta última, entendida como espaço imaginário cujas fronteiras estariam delimitadas desde a infância e a adolescência. Ignora, contudo, a fecundidade do mar e a sua natureza intrinsecamente proteiforme, a qual faz que a ilha seja não tanto o diferente, o que lhe resiste, mas uma sua manifestação. Precisamente por isso, ilha e mar são ambos fonte inesgotável de formas de o poeta se dizer a si próprio, mediante uma pluralidade de metáforas todas elas com origem no magma oceânico. Na ilha, o eu projeta-se como idêntico a si mesmo, imagem socialmente reconhecida, figura estável e de contornos bem delimitados, a salvo da diluição, que pode ir dar à loucura, ou sabe Deus onde. Porém, o mar permanece, inclusive no interior dessa mesma projeção, como se o poeta fosse apenas um búzio que soa em permanência dentro de si, impedindo-o de assentar arraiais na ilha e condenando-o, qual Sísifo, à infindável procura de uma imagem e de uma palavra que representem a impossível fixidez da identidade em que ele se imagina. Porque o mar de Nemésio não é o mar de Sophia. Nesta, a pureza e a exatidão das palavras remetem para um horizonte geométrico, perfeito mas platónico, um mar suspenso no “arco azul do tempo”, que a vista alcança com a mesma nitidez da luz, enquanto em Nemésio há “um mar de sangue enorme, arroxeado”, um “mestre de angústia” e um “Mestre de limpeza – o sujo de todos os vestígios/Que vai, com o peito exposto e de cristal cortado, /Desafiando os prodígios/E atirando às vezes por desprezo à terra um afogado!”. O mar de Nemésio não é tão-pouco o Mar Português, de Fernando Pessoa, ao qual Deus deu o perigo e o abismo, “mas nele é que espelhou o céu”. Tais abstrações dizem pouco a alguém, como Nemésio, para quem o mar é acima de tudo um símbolo do desejo, encapelado e húmido – “a primeira mulher que amei foi uma cisterna” –, infinito e impossível de moldar em definitivo, que ora é “navio duro” que se vai “à vaga verde” ora se desfaz na boca sonhada, onde “há uma violenta humidade/De que os filhos antigamente não podiam falar a seus pais/Mas que agora vemos ambos corajosamente húmida /E não podendo mais com um beijo que cresce e rebenta/Como esta última lágrima em que te dissolvo sem querer”. Daí, por um lado, a riqueza de imagens em que o poeta se metamorfoseia, sem, contudo, alguma vez se “outrar” realmente; daí também, por outro lado, a remissão para o concreto dessas imagens, a carga sensorial que se pressente nos objetos nomeados e que repercute as Correspondências, de Baudelaire – “numa tenebrosa e profunda unidade/( )/os perfumes, as cores e os sons se correspondem” –, como Nemésio, de resto, assume, no prefácio que redigiu, a pedido do editor, para a antologia publicada em 1961.
Como proceder a esta aproximação do concreto, tão evidente na belíssima “Arte Poética” de O Bicho Harmonioso – “o flanco das coisas só sangrando me comove” – e que Vasco Graça Moura evoca, num poema já antigo e muito comentado, onde fala em “tocar no fundo o coração das coisas/doce e silente coração que as coisas/para o Nemésio tinham e pró Caeiro não”? Na imagética do mar, já o dissemos, o que se encontra é o informe originário, a meio caminho entre a abstração das puras formas e a possibilidade de devir coisa. O desafio que se coloca ao poeta é, por conseguinte, o de encontrar as palavras que evoquem o mar, sem o remeterem à categoria de espelho do céu, despida do lodo e da salsugem que no-lo tornam sensível, nem o reduzirem a um simples objeto, incorporado no linguajar comum, onde já se perderam todos os vestígios da sua simbologia originária. O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises. Escusado será dizer que essa intuição se joga nas palavras e que as palavras estão carregadas de sentidos, que a história e a cultura lá depositaram. Não é possível nomear as coisas que existem, à maneira de Adão no Paraíso. Quanto muito, é possível criar coisas novas, nomeando-as. É esse o trabalho do poeta, de cada vez que evoca a sua própria imagem, ou a do mundo, e através dessa evocação as furta à condição de restos fossilizados do que já havia e já era conhecido, para as levantar em pura novidade e criação: “A voz que se ergue no ermo/Dá uma torre às coisas/Obriga-as devagar ao unido da coroa e do firmal.”
O mar de Nemésio não é o mar de Sophia nem o Mar Português, de Fernando Pessoa
VITORINO NEMÉSIO,
ENTRE A ETERNIDADE
E O ESQUECIMENTO.
Deixou-nos obras maiores como Mau Tempo no Canal, O Verbo e a Morte, OCanto da Véspera, mas hoje são poucos os que reclamam a sua herança. Contra a corrente do tempo, o Centro Nacional de Cultura e o Centro Cultural de Belém prestam hoje homenagem a um autor ao qual urge regressar.
Por Joana Emídio Marques,
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
"Com medo de o perder, nomeio o mundo", escreveu Vitorino Nemésio (1901-1978), romancista, ensaísta, biógrafo, historiador, professor, comunicador mas sobretudo poeta. Esta frase reflete a essência da sua obra, em que as palavras servem para captar a permanente transfiguração do mundo. É porque tudo está na constante fronteira da metamorfose que é preciso a palavra para que algo dessa fugacidade possa permanecer. No dia em que comemora a poesia, o CCB em parceria com o CNC recordam este autor para que ele não seja engolido na voracidade do tempo.
Talvez por intuir dramaticamente a fatuidade de tudo, Nemésio tornou-se um virtuoso da única coisa que pode contrariar o esquecimento: a palavra. Virtuoso não só da palavra escrita como da palavra falada, daí que muitos o lembrem sobretudo como o rosto e a voz do programa televisivo Se Bem Me Lembro, no qual ele falava encantatoriamente sobre tudo, fazendo ligações surpreendentes entre os principais autores da cultura portuguesa, dando pormenores sobre as suas vidas, lançando um olhar crítico sobre as suas obras mas sobretudo fazendo retratos de tal forma impressivos que era como se ele próprio os estivesse a ver (mesmo que neste retrato houvesse algum exagero isso era apenas uma forma de Nemésio lhes insuflar vida).
Um dia, inquirido sobre as razões do sucesso do seu programa televisivo, Vitorino Nemésio respondeu que era pelo facto de ter a coragem de ter lapsos em público, de falar ao correr do pensamento, ao contrário de algumas pessoas que até nas gengivas tinham virgulas. António Valdemar, amigo, confidente e autor de um livro sobre Nemésio (Sem Limite de Idade)conta esta história que diz refletir "a desordem iluminada e dispersa de um homem genial que se revelava tanto na palavra escrita como na palavra dita".
O poeta e tradutor Vasco Graça Moura, um dos poucos autores da atualidade cuja obra reclama claramente a herança nemesiana, escreveu recentemente num ensaio (Discursos Vários poéticos, Verbo, 2013) "Nemésio leu os autores de quem falava com uma grande empatia humana e transmitia aos seus ouvintes uma síntese fecunda dessas leituras em que o professor de literatura dava as mãos ao contador de histórias e ao comunicador, quase sempre para lhe transmitir uma perspetiva pessoal e original sobre os autores, as obras e o mundo, convocando para tal uma prodigiosa cultura e um incomparável sentido da simplicidade inteligente".
"O Bicho Harmonioso"
Nascido na ilha Terceira, nos Açores, em 1901, Vitorino Nemésio publica o primeiro livro aos 15 anos, O Canto Matinal. Desta obra veio a dizer mais tarde que "era um livrito não propriamente precoce senão precipitado () dessas coisas que se estampam no ímpeto da adolescência, sem critério".
O poeta deixa os Açores em 1921 e vai terminar o liceu a Coimbra, onde mais tarde se licenciará em Filologia Românica. Antes de se mudar para Lisboa em 1930, já tinha experimentado o cosmopolitismo da ilha Terceira nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, já viajara por Espanha onde conheceu o poeta e filósofo Miguel de Unamuno, já era um leitor de poetas como Rilke, Holderlin, Paul Valery, de filósofos como Heidegger. Estas experiências faziam de Nemésio um pensador e um autor profundamente moderno num País muito desfasado em relação à realidade da restante Europa onde movimentos como o dadaísmo, o surrealismo e o cubismo floresciam em todas as frentes da criação artística. No entanto, Nemésio nunca se fixa em nenhum destes movimentos não obstante haver, na sua obra, marcas do espírito do seu tempo. Escreve Vasco Graça Moura(idem) que "não há nenhuma presença direta" destes movimentos na obra do poeta, mas apenas "reflexos, vestígios, sinais do seu tempo na descontração, na variedade e na versatilidade com que utiliza os seus materiais e também nalgumas perspetivas, contiguidades, associações e sobreposições das imagens e das metáforas que só são possíveis por ele ter vivido as coordenadas desse tempo ( ) integrando esses ecos e manipulando-os para chegar à sua própria ordenação do mundo".
Há em todas as faces da obra de Nemésio uma forte dimensão autobiográfica, que, como explica Graça Moura, se manifesta na forma como ele poetisa a partir de circunstâncias da sua vida, das suas referências, dos seus familiares, "dos seus gostos e desgostos, prazeres e desprazeres () incluindo a sua aproximação das incandescências do transcendente". Um mundo interior angustiado que o aproxima dos Presencistas, pois nunca perde um certa alegria de viver e de um sentido final da redenção, por isso brinca e joga com as palavras, mais prontas a uma reconciliação com a vida não obstante os seus sobressaltos.
Um Mundo Imemorialmente seu.
A 9 de dezembro de 1971, o escritor e poeta açoriano proferia a sua última lição na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tinha então 70 anos e chegara ao limite de idade para exercer a docência. Dessa derradeira aula ficam as palavras: "Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionando, como a formiga, do verão propício ao inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no inverno e cantei sempre."
António Valdemar, que esteve presente nessa derradeira lição, recorda que o escritor, "dono de um ecletismo profundíssimo e uma capacidade de transfigurar o quotidiano", fez desse momento "uma espécie de viagem biográfica. Foi Nemésio dito por ele próprio. Deambulando pelo seu percurso académico, cultural, pela Europa, pelo Brasil, recuando à diáspora açoriana, ou divagando pelas suas experiências como um jornalista, filólogo, cronista, professor".
É esta dimensão de comunicador e pedagogo não apenas de um conjunto de alunos mas de um País inteiro, que fez dele simultaneamente depositário e divulgador da sua cultura, do seu imaginário. Mega Ferreira sublinha que este homem "tinha uma noção humorística da vida, que só lhe era possível porque ele se entregava a tudo sabendo que cada momento era total e circunstancial". Também António Valdemar recorda o carácter extrovertido de Nemésio: "Era um relâmpago plural, tinha uma irradiação humana que se espalhava por todo o lado."
Se Mau Tempo no Canal, considerada urna das obras-primas da literatura portuguesa do século XX, ainda permanece na memória de várias gerações, "o mesmo não está a acontecer com a sua obra poética", diz Valdemar, que lembra a responsabilidade da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (que detém os direitos de publicação de Nemésio) e que "nada tem feito" para divulgar este autor que Mário Cesariny ou Herberto Helder tinham como "uma referência fundamental".
Nemésio viria a morrer em 1978 e é David Mourão-Ferreira quem melhor sintetiza a prodigalidade e vastidão da obra nemesiana com a frase: "Foi alguém que verdadeiramente nasceu com um talento multiforme, o qual teria dado à vontade, para mais dez autores todos eles de primeira água."
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/26/nemesio.aspx]