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quarta-feira, 26 de março de 2014

PARA NÃO ESQUECER NEMÉSIO



            
            
                  

NEMÉSIO, O MAR E A ILHA.

             

O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises.

              

Por Diogo Pires Aurélio
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
          
            
A obra de Vitorino Nemésio, em especial a sua poesia, tem sido prejudicada por uma série de mal-entendidos, quer de natureza literária quer até de natureza biográfica. Começou com os críticos da Presença, que nunca se acostumaram àquele seu virtuosismo, alegadamente só de palavras, “coisas de soar”, como ele gostava de dizer, sem uma âncora na “estrutura psicológica” em que era suposto a poesia estar, antes de estar nos versos, e a resvalar para o gongórico. Nemésio fazia piruetas numa sintaxe retorcida e num léxico que lembrava o “pitoresquismo” – suspeita de que nunca se livrou e de que o próprio Jorge de Sena se fez eco –, tudo a flutuar numa leveza que contrastava com a seriedade e o dramatismo evidenciado nas obras mais representativas da folha coimbrã, a começar por José Régio. Os neorrealistas, por seu turno, torciam o nariz perante o hastear de maiúsculas – Senhor, Verbo, Unção, Ser – que, volta e meia, sobretudo a partir de O Pão e a Culpa, convocava o transcendente à superfície dos versos e punha as palavras, literalmente, em sentido, olhos no Além, alheadas da história e das suas contradições. Como se tudo isto não bastasse, Nemésio não era só o poeta e o romanista, era também um catedrático, designação que, nesse tempo, além da respeitabilidade do cargo, trazia implícita a bênção do regime, razão suficiente para que a inteligentzia, mesmo quando o reconhecia como avis rara, fizesse questão de manter as devidas distâncias. O belo epitáfio que Eugénio de Andrade lhe dedicou, num poema de Ostinato Rigore, explica perfeitamente esse novelo de equívocos que fizeram que o autor de O Bicho Harmonioso fosse toda a vida olhado como uma espécie de “cavaleiro das tristes figuras”, expressão que parodiava um título de Nemésio: “Conversão ao catolicismo, fretes ao estado/novo, prémios do SNI não ajudavam muito/a que te lessem ( ).”
O problema é que Vitorino Nemésio, conhecedor de tais suscetibilidades, passou sempre ao largo, dir-se-ia apostado em trocar-lhes as voltas, fazendo sem alardes o seu próprio caminho. Ainda os presencistas andavam entretidos a remoer a ideia de uma poesia da qual as palavras seriam apenas um pálido eco – “a poesia é anterior à expressão em que se traduz”, dizia Gaspar Simões – e já ele se havia apercebido de que na linguagem existe algo mais do que simples “forma”, como é visível nos célebres poemas de finais dos anos 50, em que se plasma uma reflexão cujas raízes remontavam a Heidegger e, por via deste, aos românticos alemães. Constava que tinha, a certa altura, trocado o lirismo do mar e das tias, dos baleeiros e das enxós do avô Votrino, e se convertera à contemplação metafísica do tempo e da morte, para já não falar do misticismo teológico da culpa e do pecado, mas eis que ele retorna, vestido agora de fervores autonomistas, ao aconchego das origens com a Sapateia Açoriana, mais ou menos pela mesma altura em que se sangrava em sensualidade e requebros de apaixonado hors saison, no Caderno de Caligraphia, em que há “palavras tiradas/como o leite às bezerras”, para a sua marquesinha, aquela “que vários seu corpo amaram/mas um só se enamorou”. Manifestamente, a sua arrumação foi sempre uma tarefa votada ao fracasso, de tal maneira ele se entretém a pôr e tirar máscaras, num exercício de heteronomia que nada tem de pessoano, pois remete sempre para um eu, mesmo se “comovido a oeste”, mas nem por isso é menos fértil a convocar figuras de sua invenção, que lhe dão rosto e o protegem contra a diluição no mar, esse mar que lhe cercou a infância e lhe foi a vida inteira um alter ego: “Somos só água que se some.”
A identificação com a água “que se some” é, em Nemésio, algo mais profundo do que o pressentimento, cristão ou simplesmente estoico, da inevitabilidade da vita brevis. A água não é aqui um equivalente do que é efémero e, por isso, vão. Pelo contrário, ela representa o elemento primordial, aquele de onde todos os outros hão de brotar, o caos informe que traz no ventre todas as formas possíveis. David Mourão-Ferreira, um dos críticos mais atentos e dos que melhor se apercebeu do papel do mar na poesia nemesiana, cita a este propósito os estudos de Mircea Eliade: “Uma das imagens da criação que melhor se manifesta é a ilha que subitamente se manifesta no meio das vagas. ( ) A imersão na água simboliza a regressão ao pré-formal, a reintegração no modo indiferenciado da preexistência. A emersão repete o gesto cosmogónico da manifestação formal, e a imersão equivale a uma dissolução das formas.
A leitura que David Mourão-Ferreira faz da dialética entre o mar e as ilhas fica-se unicamente por um registo Jungiano da psicanálise, em que a água funciona como figura do inconsciente, ao mesmo tempo que o rochedo firme da ilha representa a “síntese de consciência e vontade”, em que o eu se refugia dos perigos e medos inspirados pelo mar do inconsciente. Semelhante interpretação, que os críticos da Presença não enjeitariam, fica, no entanto, muito aquém de esgotar a função desempenhada por essa dialética na obra de Nemésio. Permite, é certo, apreender um duplo campo de identificação do poeta, ora com o mar ora com a ilha, que vai ao arrepio das leituras que o circunscrevem a esta última, entendida como espaço imaginário cujas fronteiras estariam delimitadas desde a infância e a adolescência. Ignora, contudo, a fecundidade do mar e a sua natureza intrinsecamente proteiforme, a qual faz que a ilha seja não tanto o diferente, o que lhe resiste, mas uma sua manifestação. Precisamente por isso, ilha e mar são ambos fonte inesgotável de formas de o poeta se dizer a si próprio, mediante uma pluralidade de metáforas todas elas com origem no magma oceânico. Na ilha, o eu projeta-se como idêntico a si mesmo, imagem socialmente reconhecida, figura estável e de contornos bem delimitados, a salvo da diluição, que pode ir dar à loucura, ou sabe Deus onde. Porém, o mar permanece, inclusive no interior dessa mesma projeção, como se o poeta fosse apenas um búzio que soa em permanência dentro de si, impedindo-o de assentar arraiais na ilha e condenando-o, qual Sísifo, à infindável procura de uma imagem e de uma palavra que representem a impossível fixidez da identidade em que ele se imagina. Porque o mar de Nemésio não é o mar de Sophia. Nesta, a pureza e a exatidão das palavras remetem para um horizonte geométrico, perfeito mas platónico, um mar suspenso no “arco azul do tempo”, que a vista alcança com a mesma nitidez da luz, enquanto em Nemésio há “um mar de sangue enorme, arroxeado”, um “mestre de angústia” e um “Mestre de limpeza – o sujo de todos os vestígios/Que vai, com o peito exposto e de cristal cortado, /Desafiando os prodígios/E atirando às vezes por desprezo à terra um afogado!”. O mar de Nemésio não é tão-pouco o Mar Português, de Fernando Pessoa, ao qual Deus deu o perigo e o abismo, “mas nele é que espelhou o céu”. Tais abstrações dizem pouco a alguém, como Nemésio, para quem o mar é acima de tudo um símbolo do desejo, encapelado e húmido – “a primeira mulher que amei foi uma cisterna” –, infinito e impossível de moldar em definitivo, que ora é “navio duro” que se vai “à vaga verde” ora se desfaz na boca sonhada, onde “há uma violenta humidade/De que os filhos antigamente não podiam falar a seus pais/Mas que agora vemos ambos corajosamente húmida /E não podendo mais com um beijo que cresce e rebenta/Como esta última lágrima em que te dissolvo sem querer”. Daí, por um lado, a riqueza de imagens em que o poeta se metamorfoseia, sem, contudo, alguma vez se “outrar” realmente; daí também, por outro lado, a remissão para o concreto dessas imagens, a carga sensorial que se pressente nos objetos nomeados e que repercute as Correspondências, de Baudelaire – “numa tenebrosa e profunda unidade/( )/os perfumes, as cores e os sons se correspondem” –, como Nemésio, de resto, assume, no prefácio que redigiu, a pedido do editor, para a antologia publicada em 1961.
Como proceder a esta aproximação do concreto, tão evidente na belíssima “Arte Poética” de O Bicho Harmonioso – “o flanco das coisas só sangrando me comove” – e que Vasco Graça Moura evoca, num poema já antigo e muito comentado, onde fala em “tocar no fundo o coração das coisas/doce e silente coração que as coisas/para o Nemésio tinham e pró Caeiro não”? Na imagética do mar, já o dissemos, o que se encontra é o informe originário, a meio caminho entre a abstração das puras formas e a possibilidade de devir coisa. O desafio que se coloca ao poeta é, por conseguinte, o de encontrar as palavras que evoquem o mar, sem o remeterem à categoria de espelho do céu, despida do lodo e da salsugem que no-lo tornam sensível, nem o reduzirem a um simples objeto, incorporado no linguajar comum, onde já se perderam todos os vestígios da sua simbologia originária. O talento de Nemésio reside em intuir um mar que se desdobra em ilha e de uma ilha que se desdobra na multiplicidade de vivências que lhe ficaram definitivamente agarradas, a começar pela memória do pai, esse duplo da ilha, que Nemésio de lá traz e há de levar às costas pela vida fora, como se fosse um outro Eneias a sair de Troia com Anquises. Escusado será dizer que essa intuição se joga nas palavras e que as palavras estão carregadas de sentidos, que a história e a cultura lá depositaram. Não é possível nomear as coisas que existem, à maneira de Adão no Paraíso. Quanto muito, é possível criar coisas novas, nomeando-as. É esse o trabalho do poeta, de cada vez que evoca a sua própria imagem, ou a do mundo, e através dessa evocação as furta à condição de restos fossilizados do que já havia e já era conhecido, para as levantar em pura novidade e criação: “A voz que se ergue no ermo/Dá uma torre às coisas/Obriga-as devagar ao unido da coroa e do firmal.”
           
           
 O mar de Nemésio não é o mar de Sophia nem o Mar Português, de Fernando Pessoa
            
         
Vitorino Nemésio  
           
         
            

VITORINO NEMÉSIO, 

ENTRE A ETERNIDADE 

E O ESQUECIMENTO.
           
Deixou-nos obras maiores como Mau Tempo no Canal, Verbo e a Morte, OCanto da Véspera, mas hoje são poucos os que reclamam a sua herança. Contra a corrente do tempo, o Centro Nacional de Cultura e o Centro Cultural de Belém prestam hoje homenagem a um autor ao qual urge regressar.
        
Por Joana Emídio Marques, 
Q - Quociente de Inteligência, 22 de março de 2014
         
       
"Com medo de o perder, nomeio o mundo", escreveu Vitorino Nemésio (1901-1978), romancista, ensaísta, biógrafo, historiador, professor, comunicador mas sobretudo poeta. Esta frase reflete a essência da sua obra, em que as palavras servem para captar a permanente transfiguração do mundo. É porque tudo está na constante fronteira da metamorfose que é preciso a palavra para que algo dessa fugacidade possa permanecer. No dia em que comemora a poesia, o CCB em parceria com o CNC recordam este autor para que ele não seja engolido na voracidade do tempo.
Talvez por intuir dramaticamente a fatuidade de tudoNemésio tornou-se um virtuoso da única coisa que pode contrariar o esquecimento: a palavra. Virtuoso não só da palavra escrita como da palavra falada, daí que muitos o lembrem sobretudo como o rosto e a voz do programa televisivo Se Bem Me Lembro, no qual ele falava encantatoriamente sobre tudo, fazendo ligações surpreendentes entre os principais autores da cultura portuguesadando pormenores sobre as suas vidas, lançando um olhar crítico sobre as suas obras mas sobretudo fazendo retratos de tal forma impressivos que era como se ele próprio os estivesse a ver (mesmo que neste retrato houvesse algum exagero isso era apenas uma forma de Nemésio lhes insuflar vida).
Um dia, inquirido sobre as razões do sucesso do seu programa televisivo, Vitorino Nemésio respondeu que era pelo facto de ter a coragem de ter lapsos em público, de falar ao correr do pensamento, ao contrário de algumas pessoas que até nas gengivas tinham virgulas. António Valdemar, amigo, confidente e autor de um livro sobre Nemésio (Sem Limite de Idade)conta esta história que diz refletir "a desordem iluminada e dispersa de um homem genial que se revelava tanto na palavra escrita como na palavra dita".
O poeta e tradutor Vasco Graça Moura, um dos poucos autores da atualidade cuja obra reclama claramente a herança nemesianaescreveu recentemente num ensaio (Discursos Vários poéticos, Verbo, 2013) "Nemésio leu os autores de quem falava com uma grande empatia humana e transmitia aos seus ouvintes uma síntese fecunda dessas leituras em que o professor de literatura dava as mãos ao contador de histórias e ao comunicadorquase sempre para lhe transmitir uma perspetiva pessoal e original sobre os autores, as obras e o mundo, convocando para tal uma prodigiosa cultura e um incomparável sentido da simplicidade inteligente".

"O Bicho Harmonioso"
Nascido na ilha Terceira, nos Açores, em 1901Vitorino Nemésio publica o primeiro livro aos 15 anosO Canto MatinalDesta obra veio a dizer mais tarde que "era um livrito não propriamente precoce senão precipitado () dessas coisas que se estampam no ímpeto da adolescência, sem critério".
O poeta deixa os Açores em 1921 e vai terminar o liceu a Coimbra, onde mais tarde se licenciará em Filologia Românica. Antes de se mudar para Lisboa em 1930, já tinha experimentado o cosmopolitismo da ilha Terceira nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundialjá viajara por Espanha onde conheceu o poeta e filósofo Miguel de Unamuno, já era um leitor de poetas como Rilke, Holderlin, Paul Valery, de filósofos como Heidegger. Estas experiências faziam de Nemésio um pensador e um autor profundamente moderno num País muito desfasado em relação à realidade da restante Europa onde movimentos como o dadaísmo, o surrealismo e o cubismo floresciam em todas as frentes da criação artística. No entanto, Nemésio nunca se fixa em nenhum destes movimentos não obstante haverna sua obramarcas do espírito do seu tempo. Escreve Vasco Graça Moura(idemque "não há nenhuma presença direta" destes movimentos na obra do poetamas apenas "reflexosvestígiossinais do seu tempo na descontração, na variedade e na versatilidade com que utiliza os seus materiais e também nalgumas perspetivas, contiguidadesassociações e sobreposições das imagens e das metáforas que só são possíveis por ele ter vivido as coordenadas desse tempo ( ) integrando esses ecos e manipulando-os para chegar à sua própria ordenação do mundo".
Há em todas as faces da obra de Nemésio uma forte dimensão autobiográfica, que, como explica Graça Mourase manifesta na forma como ele poetisa a partir de circunstâncias da sua vida, das suas referências, dos seus familiares, "dos seus gostos e desgostos, prazeres e desprazeres () incluindo a sua aproximação das incandescências do transcendente". Um mundo interior angustiado que o aproxima dos Presencistas, pois nunca perde um certa alegria de viver e de um sentido final da redenção, por isso brinca e joga com as palavras, mais prontas a uma reconciliação com a vida não obstante os seus sobressaltos.

Um Mundo Imemorialmente seu.
A 9 de dezembro de 1971, o escritor e poeta açoriano proferia a sua última lição na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tinha então 70 anos e chegara ao limite de idade para exercer a docênciaDessa derradeira aula ficam as palavras"Toda a vida estudei de tudo e o mais que podia para o que desse e viesse. Não me preparava dia a dia para amanhã e depois ou racionandocomo a formiga, do verão propício ao inverno rigoroso. Mas talvez não fosse apenas leviano, como a cigarra, pois nunca tive de dançar no inverno e cantei sempre."
António Valdemar, que esteve presente nessa derradeira lição, recorda que o escritor, "dono de um ecletismo profundíssimo e uma capacidade de transfigurar o quotidiano", fez desse momento "uma espécie de viagem biográfica. Foi Nemésio dito por ele próprio. Deambulando pelo seu percurso académico, culturalpela Europa, pelo Brasilrecuando à diáspora açoriana, ou divagando pelas suas experiências como  um jornalista, filólogo, cronista, professor".
É esta dimensão de comunicador e pedagogo não apenas de um conjunto de alunos mas de um País inteiro, que fez dele simultaneamente depositário e divulgador da sua cultura, do seu imaginário. Mega Ferreira sublinha que este homem "tinha uma noção humorística da vida, que só lhe era possível porque ele se entregava a tudo sabendo que cada momento era total e circunstancial". Também António Valdemar recorda o carácter extrovertido de Nemésio: "Era um relâmpago plural, tinha uma irradiação humana que se espalhava por todo o lado."
Se Mau Tempo no Canalconsiderada urna das obras-primas da literatura portuguesa do século XX, ainda permanece na memória de várias gerações, "o mesmo não está a acontecer com a sua obra poética", diz Valdemar, que lembra a responsabilidade da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (que detém os direitos de publicação de Nemésio) e que "nada tem feito" para divulgar este autor que Mário Cesariny ou Herberto Helder tinham como "uma referência fundamental".
Nemésio viria a morrer em 1978 e é David Mourão-Ferreira quem melhor sintetiza a prodigalidade e vastidão da obra nemesiana com a frase: "Foi alguém que verdadeiramente nasceu com um talento multiforme, o qual teria dado à vontade, para mais dez autores todos eles de primeira água."
             
             
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/26/nemesio.aspx]

sexta-feira, 21 de março de 2014

MÍSERA ACUMULAÇÃO (José Carreiro)


          
Samuele Papiro

                                     
        
       


MÍSERA ACUMULAÇÃO 

Coabita neste lugar um paul de nomes
levados pelas mãos dos caprichos.
Olho com cinismo essas palavras de agora,
a cor indispensável da dimensão do desejo
que, perto do calor, se veja o brilho para dizer e gracejar.
Não creio, não confio, nem dou o aval a mesuras,
medidas ou interesses que me ponham em xeque.
Deixo o recinto de operações sem fechar um negócio
e sem poder contar que não seja com o fracasso,
os danos e os acidentes de um dique.
        
           

             

   

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/21/misera.acumulacao.aspx]

quinta-feira, 20 de março de 2014

CICCIOLINA, A SACERDOTISA DE EROS.

              

receção de Cicciolina em Portugal, Foto de Luís Vasconcelos
           
                  

       NOTÍCIA DE UM CASO TREMENDO
QUE ABALOU O PARLAMENTO     
                                         
Estava o Parlamento em tédio morno
Do Processo Penal a lei moendo
Quando carnal a deputada porno
Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo!

Leda à tribuna dos solenes sobe
A lasciva onorevole Cicciolina
E seus pares saudando ali descobre
O botão rosado da tettina.

Para que dos pais da Pátria o pudor vença,
Do castro bracarense o verbo chispa:
«Cesse a sessão em nome da decência
Antes que a Messalina mais se dispa.»

Mas - ó partidas que prega a estatuária! -
Que fazer no hemiciclo avesso ao nu
Daquela estátua que a nudez plenária
Ali ostenta sem pudor nenhum?

Eis que o demo-cristão então concebe
As vergonhas velar da escultura.
Honesta inspiração do céu recebe
E moção apresenta de censura:

«Poupado seja à nudez viciosa
O olhar parlamentar votado ao bem.
Da estátua tapem-se as partes vergonhosas.
Ponham-lhe cuequinhas e soutiens.»
         
Natália Correia, “Inéditos (1979/91)” ‑ “Cantigas de Risadilha
O sol nas noites e o luar nos dias. Lisboa, Círculo de Leitores, 1993 (1ª ed.)
      

Cicciolina na Assembleia da República Portuguesa.

Vídeo disponível no Arquivo RTP, 1987-11-19




       MAMINHA ESQUERDA
OU A POLÍTICA DE PEITO ABERTO DE CICCIOLINA 

Hoje vou recordar outro episódio, também passado na nossa Assembleia da República.
Quem não se lembra da Cicciolina e alguns filmes porno que ela protagonizou? Os mais novos talvez não...
Pois então...
Registada com o nome Anna Ilona Staller, adotou o nome artístico de Cicciolina na década de 70 quando participa num programa de rádio que a tornou famosa: “Voulez vous coucher avec moi?” (Queres deitar-te comigo?).
Filiada no primeiro partido ambientalista italiano – Lista do Sol – adere ao Partido Radical em 1985, sendo eleita deputada ao parlamento italiano, sem por isso abandonar a carreira de artista porno.
É nessa dupla qualidade, de artista e de deputada, que Cicciolina visita Portugal em 17 de novembro de 1987, como artista atuando no Coliseu dos Recreios, e como política visitando a Assembleia da República, ambos em Lisboa.
Por ocasião de sua visita ao Parlamento a então deputada italiana, em plena escadaria, apresentou os atributos "político/peitorais" que, certamente, contribuíram para a sua eleição em Itália.
Deixou descair a alça do vestido, mostrou o seio e... imaginem as reações imediatas por parte dos nossos Senhores Deputados mais conservadores, os do partido da democracia cristã.
Os pobres nem se lembraram das estátuas existentes na Sala do Plenário, nem sequer de uma das imagens mais paradigmáticas da República Portuguesa.
Natália Correia, sempre atenta a estes episódios e com aquele humor cáustico que a caracterizava, escreveu o poema “Estava o Parlamento em tédio morno”.

Jorge Costa Reis, “O humor de Natália Correia”, .Blog, 2008-10-12
        
          
CICCIOLINA
           
          
Cicciolina esteve cá por duas ocasiões, que eu me lembre. À segunda, veio como convidada especial do Salão Erótico de Lisboa. Sempre generosa, mostrou as mamas aos românticos que quiseram matar saudades das gloriosas sarapitolas que bateram na década de 70; em entrevista, disse que os filmes pornográficos portugueses eram «bonitos e simples».
Não é todos os dias que vemos um estrangeiro valorizar o que se faz por cá. Os portugueses têm esta mania de achar que a pornografia americana é que é boa, a nossa não presta, é sempre muito chata, mal se conseguem ouvir os gemidos. Como se os nossos broches e minetes não fossem também merecedores de fazer parte do património cultural da Humanidade.
De qualquer modo, prefiro evitar encontros com a Cicciolina atual: aos 61 anos, ex-deputada mas ainda com vontade de intervir politicamente no mundo, recebe uma respeitável reforma de 3000 euros mensais. As mamas ativistas que outrora tentaram mudar o mundo estão hoje em dia irreconhecíveis, convertidas ao silicone burguês: ela mostra-as, mas já não sou capaz de acreditar nelas.
Da primeira vez que cá esteve, Portugal era um país diferente: a 19 de novembro de 1987, muitos achavam que Cavaco Silva era o melhor primeiro-ministro da História e poucos meses depois haveriam de oferecer-lhe uma maioria absoluta. Bem, talvez não seja assim um país tão diferente porque o homem é agora presidente da República. Mas hoje em dia os deputados já não usam fatos comprados na Maconde – sempre é uma evolução.
Cicciolina veio por iniciativa de um semanário entretanto extinto, o Tal & Qual, que lhe seguiu os passos todos como um caniche ganzado e capitalizou, em manchetes, vendas e gargalhadas, o enorme investimento que fez.
Penso que até os mais novos devem ter a noção de que a visita dela à Assembleia da República provocou um escândalo nacional quando Cicciolina se mostrou na bancada e, generosa como sempre, presenteou os austeros deputados com a visão dos seus bonitos e diplomáticos seios.
A esmagadora maioria dos representantes do povo abriu a boca e protestou como um grupo de beatas escandalizadas, mas estou convencido de que muitos, se tivessem tido oportunidade, não desdenhariam ter feito à Cicciolina aquilo que há muito tempo já andavam a fazer ao país. Perguntem a qualquer economista se foram as mamas da Cicciolina as responsáveis pela crise em que vivemos.
As mamocas nunca fizeram mal a ninguém, mas os deputados revoltaram-se e condenaram a afronta, como se a República alguma vez tivesse usado soutien. Valeu-nos a deputada e poetisa Natália Correia, que não só recebeu Cicciolina com a simpatia e cordialidade que a simpática e cordial rapariga merecia, como escreveu um delicioso poema a evocar a ocasião e a gozar o prato.
E como sempre me ensinaram que fica bem acabar um texto com uma citação, deixo-vos o relato desta talentosa e corajosa mulher:


            
SACERDOTISAS DO AMOR
Ao entrar, de madrugada, na rua onde vivia (zona de fecunda prostituição), Natália Correia abria a janela do carro e exortava: “Meninas, não se deixem humilhar, lembrem-se que são sacerdotisas do Amor!”
Logo era rodeada de estrídulas afetuosidades das prostitutas, dos prostitutos, dos travestis, dos chulos, dos vadios, dos guardas-noturnos, rendidos ao incitamento da “senhora poeta” a falar-lhes como ninguém lhes falava – os dignificava, os elevava.
Quase ao mesmo tempo, outro poeta de génio e de provocação, Jorge de Sena, perguntava através dos jornais, nessa altura bastante mais ousados: “Se se faz amor por tanta coisa, porque não fazê-lo por dinheiro?”, e reivindicava “o direito de todo o ser humano à liberdade de se relacionar intimamente com quem quiser ou puder”. “Se não fossem os profissionais do sexo, que seria dos velhos, dos disformes, dos tímidos?”
Quando a política (a religião, a justiça) entra na cama das pessoas, dá asneira. É o caso, agora, do Parlamento Europeu ao querer penalizar os clientes das prostitutas.
Entre nós, um depurado do PSD, Duarte Marques, insurgiu-se, no entanto, contra semelhante projeto e, sem papas na língua nem beatice nas ideias, declarou tal ser “um disparate”, até porque, pessoalmente, defendia “a legalização da prostituição”, “porque nunca se vai acabar com ela” – revelando-se mais progressista que muitos dos colegas à esquerda.
Desassombrado, Jorge de Sena rematava sobre estes temas: “Se a vocação dos portugueses é serem prostitutas, como mostra a história” – e ele não viu a nossa horizontalidade ante a troika – “por que razão as prostitutas não podem sê-lo com os seus apegados clientes?”
       
Fernando Dacosta, 2014-03-06
http://www.ionline.pt/iopiniao/sacerdotisas-amor
      
            
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  Comunicado da Informação Documentação Mulheres (IDM) sobre a receção de Cicciolina na Assembleia da República e a ausência de qualquer comunicado pelas organizações de mulheres representadas no Conselho Consultivo da Comissão da Condição Feminina (CCF). Informação, Documentação, Mulheres (IDM). - Lisboa : [s.n.], 01.12.1987

«Cicciolina. "Vivi sempre a mil, fiz sempre tudo com prazer e sem qualquer arrependimento"», in https://observador.pt/especiais/cicciolina-adorei-essa-lisboa-das-buganvilias/, Rui Miguel Tovar, 2017-11-25


 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/europa-galiza-e-portugal-continental-e-ilhas/Lit-Acoriana/Natalia_Correia, 2021 (3.ª edição).


► Lx 80 - Lisboa Entre Numa Nova Era, Joana Stichini Vilela, Pedro Fernandes. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016
   





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/03/20/cicciolina.aspx]