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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

PRA A HABANA! / CANTAR DE EMIGRAÇÃO



ROSALIA DE CASTRO


PRA A HABANA!

V

Este vaise i aquel vaise,
E todos, todos se van,
Galicia, sin homes quedas
que te poidan traballar.
Tés, en cambio, orfos e orfas
E campos de soledad.
E nais que non teñen fillos
E fillos que non tén pais.
E tés corazóns que sufren
Longas ausencias mortás,
Viudas de vivos e mortos
Que ninguén consolará.



Rosalía de Castro










CANTAR DE EMIGRAÇÃO

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca órfãos e órfãs
tens campos de solidão
tens mães que não têm filhos
filhos que não têm pai

Coração que tens e sofre
longas ausências mortais
viúvas de vivos mortos
que ninguém consolará



Repete 1ª quadra
Tradução: José Niza
Interpretação: Adriano Correia de Oliveira 

Album: Cantaremos, 1970



Ficha de abordagem sobre o tema “Cantar de emigração”




1. Caracteriza a canção:
a) Quanto ao ritmo.
b) Quanto à melodia.

2. Estabelece uma relação entre a mensagem e a melodia.

3. Identifica a figura de estilo presente no verso: “Galiza ficas sem homens”. Salienta a sua expressividade.

4. Indica o verso que melhor exprime a problemática essencial da peça em estudo. Justifica.

5. Estabelece um paralelismo entre o tema desta canção e a obra Frei Luís de Sousa.

A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino SecundárioJosé Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 173.



Textos de apoio

A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Cantar de Emigração” (de Rosália de Castro. Interpretada por Adriano Correia de Oliveira)

Ritmo – Quaternário ao estilo de balada.

Melodia – predomínio de dedilhado da viola, tendo como resposta cristalina a flauta transversal em jogo dialógico – pergunta resposta. Numa segunda fase, a flauta estabelece um jogo com a voz num adágio suave mas pesaroso em agradável melopeia. Torna-se a malha de uma canção que evoca o sofrimento de quem se encontra isolado na solidão.

Harmonia – A combinação de sons entre a viola a voz e a flauta evoca o ambiente pastoril.

Análise Semântica ‑ Esta composição musical deixa antever de uma forma suave e cantante o êxodo de muitos portugueses que, vivendo em Portugal em condições de extremas dificuldades financeiras, abandonam o país e rumam em direção a um outro com todas as condicionantes previsíveis e imprevisíveis que ofereça melhores condições de vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos penosa, mais promissora.

Na primeira quadra a poetisa galega Rosália de Castro alerta para o perigo de todos os homens abandonarem as terras – Galiza. Aproveitando os seus versos, também Adriano, com a sua voz melodiosa, pressentia o despovoamento das zonas agrícolas do lado de cá da fronteira. Esse desequilíbrio social iria provocar consequências no tecido social das regiões abandonadas. Deixaria de haver a força dos trabalhadores para cortar o trigo, o pão de que a população necessitava.

A quadra seguinte ouve-se uma flauta em contra-canto com a voz, num jogo de perfeita harmonia suavizando as palavras dolorosas: “órfãos, órfãs, solidão, mães sem filhos, filhos sem mães”. O que resta da emigração condensa-se no simbolismo na expressão metafórica: campos de solidão. Esta espelha o consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada com deficiências a nível dos tecidos: económico, social, político e cultural.

Este canto de intervenção pretende sensibilizar as pessoas pelo sentimento evocado na apóstrofe “coração”, para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento resultante das longas ausências mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas angustiadas pelas ausências dos maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na guerra colonial. “Quando os homens não vão para África combater pela pátria, vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração é outro elemento da radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos anos sessenta.”.

A repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um país sem condições quer económicas quer políticas. Resta deste poema musicado, a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação nostálgica do impossível. (“O Imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco”, Gilbert Durand. In: Cavalaria espiritual e conquista do mundo. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986, p.15). O poema gera uma reação nostálgica de uma “esperança desesperada”, sendo este o significado da habitual expressão “saudade” tão característica dos portugueses.

[Este poema musicado encontra-se também explorado durante a abordagem da obra de Adriano Correia de Oliveira que se apresenta a seguir]
  
A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino SecundárioJosé Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 126-127.





O Cantautor Adriano Correia de Oliveira (1942-1982)

Paralelamente à obra de José Afonso, surge o cantor Adriano Correia de Oliveira, cuja voz celebrizou o poema de Manuel Alegre “Trova do Vento que Passa” musicado por António de Portugal – considerada a primeira trova típica de Coimbra.Com evidente influência do fado, tornou-se o símbolo da inquietação patriótica que serviu de hino às lutas académicas: Pergunto ao vento que passa /notícias do meu país /e o vento cala a desgraça / e o vento nada me diz / (…) O poeta Manuel Alegre escreveu este tema num momento de superior inspiração. O silêncio da desgraça é simbolizado pelo vento que reprime, que abafa o sofrimento de alguém que vive um sentimento nostálgico. Contudo, o poeta assume-se como uma candeia, o porta-voz dos homens que, pelo seu simbolismo, no seio das agruras de um país, ilumina, irradia sons harmoniosos de esperança. Desse facto, resulta a tenaz resistência às adversidades tornando o poeta o herói de todos quantos contestam a situação política vivida na época da ditadura de Salazar: Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão /há sempre alguém que resiste /há sempre alguém que diz não! Quem disse: “não”! foi a voz eclética do cantor.

As mensagens, os poemas cantados por Adriano assumem uma autonomia tal que se tornam essenciais para a consciencialização dos cidadãos.

Não obstante, destaquemos uma vez mais a inequívoca importância das canções.

Para além de José Afonso, Adriano teve um papel fundamental no panorama musical português. A sua persistência, os seus demais valores, a sua coragem em defrontar as forças do regime, a sua aversão ao consumismo cultural fizeram dele uma personalidade incontornável no canto de intervenção. A propósito, refere-nos Manuel Alegre citado por Raposo (2000:20),

(…) A voz de Adriano era uma voz alegre e triste, solidária e solitária, havia nele ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta. E também saudade e fraternidade (…) voz de fado e de destino herança talvez do mouro e do celta que nos habitam, a voz de Adriano tinha também o masculino apelo do rebate e do combate.

Adriano intervém como intérprete, compositor e participante em iniciativas de carácter estudantil. A sua coragem extravasou toda a sua vida académica e prosseguiu com a interpretação de temas que desafiavam a força da repressão tais como: a falta de liberdade e a consequente prisão dos opositores ao regime, a denúncia da guerra colonial e injustiças resultantes de uma realidade adversa. A “Canção Terceira” argumenta:

(…) quando desembarcarmos no Rossio/Vão vestir-te com grades /que é um vestido para todas as idades /na pátria dos poetas em Rossio triste.

Esta necessidade de apelidar o país de pátria dos poetas constitui-se como um apelo à pátria de pessoas livres. Tal como se encontrava o país, o poeta considerava-o um triste destino, o destino da gente do meu país, “como alude na canção “Pátria”. O lamento persiste sobre todos aqueles que pereceram em luta com “uma Lisboa”, sinédoque de Portugal, tão longínqua de um canto alegre, promissor, “Eu canto um mês com lágrimas /…em que os mortos amados batem à porta do poema …”. Apesar da morte de um amigo que tanto desejava estar em Lisboa expresso na “Canção com Lágrimas”, o cantautor revela um sentimento de esperança relativamente ao país:

Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve /que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro /eu canto para ti Lisboa à tua espera.”

A denúncia, a frontalidade sem restrições são apresentadas com a voz imbuída de coragem sob a forma de poema “em Porque” de Florbela Espanca. Apresentado numa estrutura antitética na qual os outros por oposição a um tu são considerados “hipócritas, cobardes e fracos”. Sofia de Mello Breyner de uma forma sub-reptícia pretendeu qualificar todos aqueles que se serviam do velho Regime desses defeitos, contrapondo as virtudes das vítimas inocentes que eram objeto de medidas persecutórias. É na voz de Adriano que este poema adquire uma maior projeção, um novo dinamismo:
Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros são os túmulos caiados /Onde germina calada a podridão /Porque os outros se calam mas tu não/ Porque os outros se compram e se vendem /E os seus gestos dão sempre dividendos…/Porque os outros vão à sombra dos abrigos /E tu vais de mãos dadas com os perigos/Porque os outros calculam mas tu não.”

O sofrimento do povo português persiste e é denunciado de forma metafórica, todavia, não menos objetiva. No tema de Manuel da Fonseca “Tejo que lavas as águas” o rio assume-se como a fonte regeneradora dos vícios de uma sociedade conspurcada de injustiças, de exploração dos mais poderosos sobre os miseráveis, os mais necessitados, uns nos palácios, outros nos bairros de lata:

Tejo que lavas as águas …/lava bancos e empresas/dos comedores de dinheiro/que dos salários de tristeza/arrecadam lucro inteiro/lava palácios vivendas/casebres bairros de lata/leva negócios e rendas /que a uns farta e a outros mata.

O poeta solicita ao Tejo que lave a cidade – entenda-se país - dos vícios, dos favores, do poder dos ricos e finalmente das grades, de tudo o que impeça a liberdade dos resistentes. E prossegue:

Lava avenidas de vícios /vielas de amores venais /lava albergues e hospícios /cadeias e hospitais /afoga empenhos favores/vãs glórias ocas palmas /leva o poder dos senhores/que compram corpos e almas /leva nas águas as grades …

Por seu turno, a liberdade é uma bandeira que Adriano nunca deixou de brandir, de desejar, desde o tempo da capa negra que se assemelhava a uma rosa negra, símbolo do desejo de liberdade, das lutas travadas com as forças da opressão. Tal é notório na composição “Capa negra rosa negra” ‑ capa negra, rosa negra sem roseira…/vira costas à saudade /bandeira da liberdade.”

Confessa-se, de seguida, livre cantador como as aves, que não pode viver na repressão.

O tema popular “Lira” confere a Adriano o estatuto de um verdadeiro poeta que na impossibilidade de sobrevivência da lira, símbolo da liberdade musical e poética, solicita, por analogia ao mito de Orfeu, a sua própria morte. Uma questão se impõe: como poderá o poeta exercer a sua missão se acaso não puder usufruir da sua própria liberdade?

Perante a morte da lira, ícone do encantamento quer da linguagem poética quer da linguagem musical, o poeta deixou de ter importância, de ter valor numa atitude de desafio, de coragem. Propõe-se morrer com o objetivo de se tornar mártir, apelando, deste modo, para a nobreza do ato poético. Pretende o poeta apelar à consciência e sucessiva mobilização das demais pessoas para o seu sofrimento:

Morte que mataste lira /mata-me a mim que sou teu /Morte que mataste lira /mata-me a mim que sou teu /mata-me com os mesmos ferros /com que a lira morreu …/o que mais sofre sou eu.”

O Tema do Ultramar foi motivado pelo forte descontentamento, não só dos homens mobilizados para combate como dos seus familiares e uma grande maioria dos portugueses da época. Vários foram os motivos evocativos da referida guerra, caso da canção “Pedro Soldado” que indica o caminho de tantos jovens que interromperam as suas aspirações para, segundo os preceitos da ditadura, defender “os interesses da nossa pátria”. Assim partiram com o nome bordado num saco cheio de ilusões, como refere a composição de Adriano:

Triste vai Pedro soldado numa rota de barcos que vai para a guerra,/ Já lá vai Pedro soldado/Num barco da nossa armada /…e leva o nome bordado num saco cheio de nada.

Outro dos temas musicais é a” Menina dos olhos tristes” de Reinaldo Ferreira que, à semelhança das nossas cantigas de amigo, lamenta-se, chorando, a ausência de um soldado, ente querido, que jamais regressará do Ultramar. A mensagem recebida pela Lua, sempre companheira, confidente em momentos de profundo sofrimento, informa que ele, afinal, virá defunto, num caixão eufemisticamente referido como caixa de pinho:

“Menina dos olhos tristes/O que tanto a faz chorar /O soldadinho não volta /do outro lado do mar / Anda tão triste um amigo /uma carta o fez chorar/O soldadinho não volta /do outro lado do mar/O soldadinho já volta /está mesmo quase a chegar/vem numa caixa de pinho/do outro lado do mar/desta vez o soldadinho nunca mais se fez ao mar/.

Este tema, sinédoque de um problema sociológico que perpassou transversalmente toda a sociedade portuguesa entre 1961 e 1974, infligiu milhares de vítimas mortais e feridos com marcas físicas e traumáticas que perduram até nossos dias, aliás como já foi referido no capítulo referente ao tema.

O argumento é repetido na canção: “As balas”. Adriano e Manuel da Fonseca estabelecem uma dicotomia entre a vida e a morte. Em todos os três primeiros versos de cada quadra, à exceção da última, os poetas tecem um elogio à vida por oposição ao último verso de cada quadra onde alertam para o sofrimento das balas que derramam sangue. De destacar a última quadra que reforçam as razões e as consequências da utilização das balas:

“Dá o Outono, as uvas e o vinho, /Dos olivais, azeite nos é dado. /Dá a cama e a mesa o verde pinho, /As balas deram sangue derramado. (…) Essas balas deram sangue derramado, /Só roubo e fome e o sangue derramado. /Só ruína e peste e o sangue derramado, /Só crime e morte e o sangue derramado.”

A “Canção do Soldado” satiriza, recorrendo a uma metáfora cabalística – das sete balas, sete flores de limão p’ra lutar até morrer. Desta afirmação subjaz a violência atroz de uma luta fratricida. O conceito de guerra é satirizado por uma pretensão absurda de lutar até vencer como se a guerra se vencesse, única e exclusivamente, através das armas. Para contestar essa ideia, os poetas, numa atitude pacifista, entregam o estandarte como renúncia à guerra:

Sete balas só na mão/ Já começa amanhecer. /Sete flores de limão/P’ra lutar até vencer. / Sete flores de limão/P´ra lutar até morrer. /Já o rouxinol cantou/Tomai o nosso estandarte. / No seu sangue misturado/Já não há desigualdade. /No seu sangue misturado/Já não há desigualdade.
Sete balas só na mão/ Já começamos a amanhecer. /Sete flores de limão/Para lutar até vencer.

Um outro grande tema de Adriano, e simultaneamente de carácter relevante para a nossa identidade como povo, é a Emigração. O papel de Adriano foi fundamental para que as pessoas se interrogassem sobre as causas do êxodo de muitos portugueses. Para tal, interpretou um poema da galega Rosália de Castro: “Cantar de Emigração”. Neste poema, a poetisa referindo-se à sua região da Galiza tece um panorama, que na perspetiva de Adriano Correia de Oliveira, se repete em Portugal. Na impossibilidade de o poder referir livremente por razões políticas, Adriano recorre a este tema musical com o objetivo de confirmar mais um estigma da sociedade portuguesa para além do referente à guerra do ultramar – a saga da emigração. É estabelecido um paralelismo entre as regiões da Galiza e a do Norte de Portugal pelas suas afinidades socioculturais e geográficas.

Esta composição musical deixa antever, de uma forma suave e cantante, o êxodo de muitos patriotas que, vivendo em Portugal em condições de extremas dificuldades económicas, abandonam o país e rumam em direção a um outro, com todas as condicionantes previsíveis e imprevisíveis, que ofereça melhores condições de vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos penosa, mais promissora.

Na primeira quadra, a poetisa alerta para o perigo de todos os homens abandonarem a terra – os desvalorizados espaços rurais, deixando de haver a força humana para cortar o trigo, o pão de que as populações necessitam. Para Vieira (2000:25)

(…) os campos despovoam-se ainda mais e cava-se um grande fosso estrutural entre o litoral e o interior do país. A agricultura estagna, com uma taxa de um por cento ao longo da década …a população ativa nos campos decresce, entre 1960 e 1970 de 44% para 32% do total. Este é o momento em que Portugal, contrariando a vontade mais íntima de Salazar, perde a identidade rústica assumindo um perfil de país industrial.

Na quadra seguinte ecoam as palavras dolorosas: órfãos, órfãs, solidão, mães sem filhos, filhos sem mães. O que resta da emigração condensa-se no simbolismo da expressão metafórica ‑ campos de solidão. Esta espelha o consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada com deficiências a nível dos tecidos económico, social, político e cultural.
Este canto de intervenção pretende despertar nas pessoas o sentimento evocado na apóstrofe: “coração” para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento resultante das longas ausências mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas angustiadas pelas ausências dos maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na guerra colonial. A este propósito, Vieira (2000:25) explica:

(…) quando os homens não vão para África combater pela pátria, vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração é outro elemento da radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos anos sessenta.

A repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um país sem condições quer económicas quer políticas. De acrescentar neste poema musicado, a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação nostálgica do impossível como refere Durand (1986:15). O poema gera uma reação nostálgica de uma esperança desesperada, sendo este o significado da habitual expressão “saudade” tão característica dos portugueses.(1) A resignação, o sofrimento de “longas ausências até mortais que transparecem da composição, ao estilo de balada, evoca as autóctones cantigas de amigo:

Este parte, aquele parte /e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens /que possam cortar teu pão
Tens em troca /órfãos e órfãs
Tens campos de solidão /tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai
Coração /que tens e sofre
Longas ausências mortais /viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará

Por sua vez, na canção de Rosália “Emigração” interpretada por Adriano, assistimos a uma réplica de situação real. Na verdade, a poetisa apresenta a sua mãe em discurso direto. Esta suplica a Deus a proteção para a filha. A cantora prossegue, enfatizando a infelicidade de um outro homem ter nascido e não dispor das mínimas condições para se realizar tanto profissional como economicamente.

Finalmente, a compreensão da poetisa por quem abandona a sua terra “coitado”. Ela considera que terá razões plausíveis para trocar a sua vida de aparente bem-estar na sua terra, por uma situação desconhecida, diferente, contudo, mais promissora em termos financeiros. Salientamos o epíteto de “coitado”, de alguém que não se conforma com um possível destino que lhe estaria “predestinado”. Deste modo, aventura-se numa luta, num esforço que lhe poderá suscitar uma vida melhor quer a nível económico, quer social, quer político.”(2) Esse sofrimento nostálgico, de separação relativamente à família e ao país está vincado, uma vez mais, no tema cantado por Adriano ”Quando no Silêncio das noites de luar”(3)

Quando no silêncio das noites de luar, /Ia uma estrela pelos céus a correr, /
Dizia minha mãe de mãos erguidas. /Dizia minha mãe de mãos erguidas.
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, /Deixa a terra onde infeliz nasceu, /
E fortuna busca noutras praias, digo. /E fortuna busca noutras praias, digo
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, / Deixa a terra onde infeliz nasceu,
E fortuna busca noutras praias, digo. / E fortuna busca noutras praias, digo.
Não o culpo coitado não o culpo, / Nem lhe rogo pragas nem castigos,
Nem de que é dono de escolher, me esqueço. Nem de que é dono de escolher, me esqueço
Porque quem deixa o seu torrão natal, / E fora dos seus caminhos põe os pés,
Quando troca o certo pelo incerto. /Quando troca o certo pelo incerto.
Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter.”

Para finalizar, Manuel Alegre, citado por Barroso (2000:169), conclui sobre a importância dos dois cantautores no canto de intervenção, destacando o valor da interpretação musical na divulgação dos textos poéticos,

Importa salientar a importância que tiveram as trovas do Adriano e as baladas do Zeca como estímulo e fatores de mobilização da luta estudantil. Importa ainda sublinhar que essa junção da poesia e da música constituiu na altura o verdadeiro vanguardismo estético português (…) Pela voz de Adriano Correia de Oliveira os poemas chegavam ao povo e ao país inteiro, a tal ponto que alguns desses poemas deixaram de ter autor para passarem a fazer parte da nossa memória comum e do nosso canto coletivo. Eu já não sinto como meus alguns poemas que Adriano cantou”.
  
   
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(1) A consciencialização conseguida através das canções de intervenção foi reconhecidamente eficaz como destaca Sá Viana, Ministro da Defesa citado por Raposo (2000:21) “os efeitos demolidores no moral das tropas que certas canções produziam.”
(2) Adriano confessa in Raposo (2000:21) que a canção antes do 25 de Abril, desempenhou um papel importante, um papel complementar da outra luta, a luta política junto das massas populares e da classe operária. Ela foi o estímulo, o grito de alerta, a denúncia da ausência de liberdade, da exploração na terra e na fábrica, de guerra e da emigração. Pela minha parte insisti muitas vezes em fazer canções que pudessem tocar de certo modo, as pessoas naquilo que elas pudessem compreender mais facilmente”.
(3) Poema de Curros Henriquez, musicado por José Niza .
  
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 66-74.


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CANTAR DE EMIGRAÇÃO

Análise de Ludmila Arruda

 

Esta canção faz parte de um poema composto pela escritora galega Rosalía de Castro (1837 - 1885), que faz referência à emigração ocorrida em Santiago de Compostela em tomo de 1880. Inicialmente em galego, Adriano Correia de Oliveira interpretou e lançou a canção em 1970, no álbum Cantaremos. Adriano, juntamente com Zeca Afonso, é um dos grandes nomes da Canção de Intervenção, e também sempre gravou letras de sucesso. "Adriano foi responsável pela divulgação de muita da melhor poesia portuguesa" (RAPOSO, 2014, p. 30), e nas palavras de Manuel Alegre, ele possuía uma voz "alegre e triste, solidária e solitária, havia ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta" (ALEGRE apud RAPOSO, 2014, p. 26).

 

A canção "Cantar de Emigração" em português está totalmente fiel à letra em galego, também fazendo alusão à emigração em massa ocorrida especialmente a partir de 1960 em Portugal para outras terras da Europa, especialmente França. O poema retrata os desafios que a emigração traz ao país, que além de perder homens trabalhadores, perdiam também suas famílias, que ficavam desamparadas, sem a figura paterna para dar o suporte à esposa e aos filhos. Esta canção foi lembrada pelo professor Pedro Calafate como uma das canções que marcaram o período da Guerra Colonial, período de uma das maiores emigrações ocorridas em Portugal - e o professor recorda que o período atual também tem sofrido com as mesmas questões. Em galego, o poema contém cinco partes, e o trecho utilizado na interpretação de Adriano Correia de Oliveira foi apenas a quinta e última parte do poema original, como segue:

 

Pra Habana (v)87

 

Cantar da Emigração

 

Este vaise i aquel vaise,

E todos, todos se van,

Galicia, sin homes quedas

Que te poidan traballar

 

Este parte, aquele parte,

E todos, todos se vão

Galiza ficas sem homens,

Que possam cortar teu pão

 

Tésen cambio, orfos e arfas

E campos de soledad.

E nais que non tenen fillos

E fillos que non tén pais

 

Tens em troca, órfãos e órfãs

Tens campos de solidão

Tens mães que não têm filhos

Filhos que não têm pai

 

E tés corazóns que sufren

Longas ausências mortás

Viudas de vivos e mortos

Que ninguén consolará.

 

Coração, que tens e sofre

Longas ausências mortais

Viúvas de vivos mortos

Que ninguém consolará

 

 

A versão em português cantada pelo Adriano Correia de Oliveira tem o acompanhamento de uma flauta transversal e uma viola, que são bem marcados durante toda a canção, e especialmente a flauta, nessa canção, dá uma impressão de passar o sofrimento das pessoas que se encontram sós, como descritos nas estrofes. A relação entre a viola e a flauta está bem sincronizada, e ambos os instrumentos são tocados algumas vezes sem o acompanhamento um do outro, havendo uma intercalação, dando a ideia de diálogo entre eles.

 

Os versos são todos classificados como redondilha maior, e as rimas não seguem uma sequência lógica, mas há muitas repetições presentes no poema que ajudam a manter uma sonoridade regular. Se destacarmos apenas as rimas veremos "vão, pão, solidão e coração" (em vermelho), que aparecem no segundo verso das duas primeiras estrofes, no quarto verso da segunda estrofe, e ainda no primeiro verso da terceira estrofe. Já a sequência "pai, mortais" segue a mesma sonoridade encontrada no quarto verso da segunda estrofe e no segundo verso da terceira estrofe. O restante das palavras se repete, mantendo a sonoridade estabelecida pelo poema como podemos ver em alguns dos seguintes vocábulos, marcados no texto em azul: "parte'', "todos'', "órfãos e órfãs'', "filhos", "que não têm" "viúvas e vivos" "mortos - mortais". Mesmo algumas das palavras não sendo totalmente iguais, elas apresentam sons semelhantes.

 

Essa canção contém algumas figuras de linguagem que contribuem para destacar a grave questão da emigração, e assim chamar a atenção do ouvinte para a escolha das expressões que acentuam o problema. No segundo verso da primeira estrofe, ao dizer "todos, todos", além da a/iteração, causada pela repetição da palavra, há uma hipérbole, ao exagerar que "todos" os homens emigrariam. Galiza, nesse caso, seria uma comparação metonímica de Portugal, já que estaria enfrentando o mesmo problema que já foi enfrentado pela região galega. No último verso, o "pão" seria uma relação metonímica com "alimento", ou ainda "sustento" - já que aqueles homens que produzem o alimento e, consequentemente, o sustento para os outros não estarão mais presentes.

 

Na segunda quadra, há uma anáfora, ao repetir, no início de cada verso a palavra "tens", para enfatizar o que ficaria nas terras vazias, ainda, há a omissão da palavra "tens" no último verso, causando um zeugma, o que não prejudica no sentido, pois o verbo já tinha sido utilizado três vezes anteriormente. Ainda pode-se dizer que há uma assonância, ao conter muitas palavras com sons vocálicos parecidos - o "ã" ou "anasalado", mesmo entre aquelas que que não contribuem para a rima da canção: "órfãos", "órfãs", "campos", "solidão" "não", e "mães".

 

Na última estrofe, ocorre uma prosopopeia ao personificar o órgão "coração'', comumente utilizado para mostrar o sentimento da pessoa em relação a alguma situação, como podemos ver no verso "coração que [tens e] sofre longas ausências mortais". No terceiro verso, em "viúvas de vivos mortos" há urna aliteração, com a presença de mesmos sons consonantais que chamam a atenção para o verso - no caso "viúvas de vivos" - e anteriormente "mortais" com "mortos". Ainda, há um paradoxo, ao chamar "vivos" de "mortos'', pelo fato de os maridos não estarem presentes fisicamente.

 

Tantas repetições enfatizam a ameaça do problema da emigração, mostrando uma ação corriqueira, e avisa a necessidade de se fazer algo para amenizar o problema. O poema mostra a emigração forçada dos homens por questões da Guerra Colonial ou financeiras, o que geraria maior problema para o país. Veremos estrofe a estrofe, como a escolha das palavras, seja em galego ou em português, ajudam a desvendar desafios enfrentados pela população.

 

CENÁRIO

 

Essa época a agricultura ainda é a principal atividade econômica em Portugal, e a essa altura muitos estão deixando seus trabalhos no campo para tentar vida mais rentável em outro país, e assim tais trabalhos têm um risco de ficarem defasados com poucas vendas de produtos:

 

 

1.ª ESTROFE

 

Pouco a pouco os homens vão partindo até que - se as autoridades não se atentarem para esse problema- todos irão sair. (A palavra "todos" se repete, para confirmar essa ameaça).

 

A palavra " Galiza" faz parte do poema original, e não houve a mudança com a tradução. Galiza se refere a Portugal, que está sofrendo nessa altura o que a Galícia sofreu em tomo de oitenta anos antes.

 

Os trabalhadores homens que fazem serviço em agricultura são os responsáveis pelo movimento financeiro do país, e são eles que cultivando a alimentação, garantem a produção necessária para a população portuguesa. Sem a presença deles, a produção se tomará escassa, e logo, não haverá nenhum homem que possa fazer esse serviço da agricultura, e, assim, a movimentação financeira também deverá baixar. Sem eles, quem irá garantir o pão para o povo português?

 

"Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão"

 

 

2.ª ESTROFE

 

A segunda estrofe atenta para outro grande problema da emigração: o desfalque das famílias. Com os chefes de família procurando outro meio para o sustento ao viajar para fora do país, ele abdica de sua família, seu conforto e seus sonhos e parte para o incerto. O que o país tem em troca com a saída desses homens, é, além da falta de mão de obra, a quantidade de mulheres sós e filhos sem a presença do pai. Os campos que seriam para o cultivo da agricultura, agora, sem os homens, seriam "campos de solidão'', onde as mulheres chorariam a falta do marido e não haveria mais plantação.

 

 

3.ª ESTROFE

 

A terceira estrofe prolonga as consequências ditas na segunda estrofe, apelando para o lado emocional do "coração" das pessoas que sofrem a ausência do homem. A saudade se toma "mortal", pois o fato de o homem não estar presente fisicamente com a esposa, e sem saber por onde ele anda e o seu desfecho, muitas mulheres tomaram-se "viúvas" mesmo sem estar. Para elas, era como se os maridos já estivessem mortos, por causa da longa ausência, e o longo tempo sem notícias. Ninguém seria capaz de consolar uma dor como essa.

 

 

1.ª ESTROFE - REPETIÇÃO

 

O cantor volta a cantar a primeira estrofe, revelando ainda o grave problema de muitos partirem. Mais uma vez a repetição se atenta para uma ação que não para de ocorrer e eles precisam de medidas urgentes para conter a emigração. A única saída para uma melhora seria a mudança política e económica para que o país voltasse a prosperar, e atualmente não há esperança de isso ocorrer.

 

 

Este poema também revela uma característica marcante da música e literatura portuguesa de modo geral, a saudade. Uma definição já marcante do povo português (CRISTÓVÃO, 2007), o poema mostra aspetos que revelam essa sensibilidade, especialmente em toda a última estrofe: o sofrimento da mulher com a ausência do marido, e sua condição de "viúva de vivo", que nunca será aliviada. No poema o sofrimento das mulheres também tem relação com a inexistência de soluções que poderiam ter evitado a partida de muitos homens: a falta de uma boa vida, de trabalho, de alimento, e as consequências que essa dificuldade financeira vivida no país trouxe para a vida das pessoas. Essa nostalgia era um aspeto muito comum no decorrer dos anos sessenta e setenta: as mulheres eram as que mais sofriam com esse panorama uma vez que maridos e filhos poderiam ser chamados à Guerra Colonial, ou, em outros casos, a emigração forçada era a solução tomada para fugir não apenas dessa convocação para a guerra, mas também para fugir de uma vida instável que pairava sobre o país.

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

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Nota:

87 Retirado do website da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em:

http ://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n= 13 9&p=3 8&o=r




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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

                
“El tema de la emigración en la poesía de Rosalía de Castro y su proyección en dos poetas gallegos”, María del Carmen Porrúa. Actas do Congreso Internacional de estudios sobre Rosalía de Castro e o seu tempo (III). Santiago de Compostela: Consello da cultura Galega / Universidade de Santiago de Compostela, 403-411. Reedición en poesia-galega.org. Arquivo de poéticas contemporáneas na cultura. http://www.poesiagalega.org/arquivo/ficha/f/2342, 2012 [1986].





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/19/cantar-de-emigracao.aspx]

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