Páginas

quarta-feira, 17 de junho de 2015

A música do ser (Sophia Andresen)





BACH SEGÓVIA GUITARRA

A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada

Sophia de Mello Breyner Andresen




QUESTIONÁRIO:

Refira dois dos traços que contribuem para a humanização da música nas cinco primeiras estrofes do poema, apresentando transcrições que comprovem a sua resposta.

A humanização da música decorre de vários aspetos, nomeadamente do facto de esta:
– estar associada a vivências subjetivas do ser humano − «Povoa este deserto» (v. 2);
– ser indissociável da identidade do ser humano − «A música do ser / Interior ao silêncio / Cria seu próprio tempo / Que me dá morada» (vv. 8-11);
– possuir uma voz que é companheira do «eu» poético − «Palavras silabadas / Vêm uma a uma / Na voz da guitarra» (vv. 5-7); «Por companheira tenho / A voz da guitarra» (vv. 15-16).


Explicite a importância da música na construção da identidade do «eu», de acordo com o conteúdo das duas últimas estrofes.

A música é fundamental na construção da identidade do «eu», na medida em que:
– tem o poder de conferir unidade ao «eu» poético – «O canto me reúne» (v. 18); «E agora de mim / Não me separa nada» (vv. 21-22);
– potencia o reencontro com um tempo primordial e puro – «De muito longe venho / Pelo canto chamada» (vv. 19-20); «Num silêncio de areia / Que não foi pisada» (vv. 26-27).


Exame Nacional de Português, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho).
 IAVE, 2015, 1ª fase. Prova 639 e critériosde classificação.






SOPHIA E O FIO DE SÍLABAS

A poesia de Sophia sabe que as coisas do mundo não podem ecoar linearmente nas palavras ‑ porque a palavra isolada não conseguiria libertar-se da arbitrariedade que, ao mesmo tempo que a associa a um referente, não anula a existência entre eles de uma separação por onde o caos sempre ameaça emergir.
Em contrapartida, as sílabas ordenadas são já a voz do mundo, pois este precisa da poesia para falar e, por isso, produz discurso não palavras, mas versos: "O meu viver escuta / A frase que de coisa em coisa silabada / Grava no espaço e no tempo a sua escrita" (Sophia de Mello Breyner Andresen, Geografia, Obra Poética III, p. 89). Como é dito no poema "Bach Segóvia Guitarra", "Palavras silabadas / Vêm uma a uma", e só a silabação traduz "A música do ser" (Idem, p. 33). Digamos, então, que as sílabas são a matéria que permite encontrar "(...) a ordem intacta do mundo / A palavra não ouvida" (Idem, p. 67), e que esta é sempre relacional e rítmica.
Em absoluta concordância com esta perspetiva, o poeta é "um escutador", e "fazer versos é estar atento", "[d]eixar que o poema se diga por si" (Idem, "Arte Poética IV", Dual, Obra Poética III, pp. 166-7), ou seja, ouvir as frases por inteiro, evitar que o ritmo se quebre, deixar que uma sílaba conduza a outra para que as palavras justas possam surgir (juntas): as relações entre os sons tecem o fio discursivo que assegura a verdade do sentido porque o submetem a uma certa geometria, a uma ordem construtiva. Assim, apesar de procurada e humanamente "feita", a ordem do poema é também, e sem contradição, "escutada" como se fosse recebida dos deuses, dado resultar inteiramente livre.





*



A VOZ - SINAL DO SER

«Esta voz nenhuma disciplina a domina... ela é a voz do mundo: CANTO. Ela é o poema do Ser no sentido em que ela está para além de nós mesmos, no sentido em que o homem é este poema que o Ser começou...» (Daniel Charles, Les Temps de la Voix. Paris, Ed. Universitaires J. P. Delarge 1978).
Assim quando Daniel Charles diz: «Todos os homens têm uma voz, isto é, escutam o Ser», é legítimo considerar que não se trata aqui da escuta feita através do órgão auditivo mas sim da escuta que se realiza através do instrumento CORPO, que ele é simultaneamente aquilo que escuta e que é escutado e que a VOZ é a materialização dessa mesma escuta.
Teremos assim como hipótese possível que a voz é uma representação daquilo que tem de mais essencial o produto da vibração do corpo total, sico e psíquico posto em condições de disponibilidade e ativação que lhe permitem captar a vibração exterior com a qual o seu íntimo se encontra em sintonia, o que não exclui o processo inverso. Daí que, ao falar-se de voz se refira uma emissão sonora produzida por um ser global, recetor e transmissor, estando implicadas neste fenómeno vibratório todas as capacidades do ser que pensa, age, goza e ainda não perdeu o sentido de humor que o impele a comunicar com os outros.
A complexidade deste fenómeno natural é, simultaneamente, a realidade que nos obriga a avaliar quanto de animal - porque de corporal e intuitivo - quanto de psíquico e mental ele implica o que por si só chega para estabelecer as normas do relacionamento entre aquele que procura encontrar a sua autêntica voz e aquele que crê poder lançar algumas pistas nessa procura. […]
«… a verdadeira música do Ser não existe ainda porque nós estamos em vias de a compor» (Daniel Charles).

A voz – sinal do ser”, ensaio de Maria João Serrão com citações de Daniel Charles. In: Conservatório Nacional-150 Anos de Ensino de Teatro, edição do Centro de Documentação e Investigação Teatral da Escola Superior de Teatro e 
Cinema de Lisboa, 1987, pp.103-108; in: Revista da A.P.E.M. - Associação Portuguesa de Educação Musical , Boletim nº. 53, Abril/Junho 1987, pp.10-12.









OPINIÃO

As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores
Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas.


O poema de Sophia de Mello Breyner Andresen que era objecto de duas perguntas que formavam um item da Prova Escrita de Português do 12.º Ano chama-se “Bach Segóvia Guitarra” e começa assim: “A música do ser/ Povoa este deserto/ Com sua guitarra/ Ou com harpas de areia// Palavras silabadas/ Vêm uma a uma/ Na voz da guitarra// A música do ser/ Interior ao silêncio/ Cria seu próprio tempo/ Que me dá morada”.
Como trabalho de interpretação solicitava-se aos alunos que referissem “dois traços que contribuem para a humanização da música” (alínea 4) e que explicitassem “a importância da música na construção da identidade do ‘eu’” (alínea 5).
Até um leitor sem treino na leitura da poesia de Sophia tem boas razões para se interrogar onde foram os autores da prova encontrar sentidos explícitos ou implícitos que autorizem a interpretação formulada como “humanização da música”. Sabendo nós que as coisas da literatura servem, não apenas na escola, para ministrar lições de humanismo, intuímos que os examinadores leram no “ser de “a música do ser” nada mais nada menos do que o ser humano. Confirmamos que a nossa intuição estava correcta quando lemos o “cenário de resposta” que é apresentado nos “critérios de classificação”: “A humanização da música decorre (…) do facto de esta estar associada a vivências subjectivas do ser humano” e, além disso, de “ser indissociável da identidade do ser humano”. Assim, onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.
A “música do ser” evoca um tópico fundamental na poesia de Sophia. Trata-se de uma ideia de poesia como escuta das coisas essenciais, primordiais. A “música do ser” advém da procura da “ordem intacta do mundo”, da perfeição, da totalidade, da pureza e da harmonia. E esse mundo é mais povoado por deuses do que por homens. Daí o fascínio de Sophia pela Grécia clássica; O “ser”, aqui, nada tem a ver com o “ser humano”, é a veemência e a verdade das coisas, de onde Sophia sempre quis extrair um “poema imanente”. Podemos ler no final de um poema chamado “Sua Beleza” (de O Nome das Coisas): “Prometo um mundo mais inteiro e mais real/ Como pátria do ser”. E lemos também na sua “Arte Poética II”: “A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser (...) A poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens”. Trazer para aqui qualquer questão relacionada com a “humanização” e “vivências subjectivas do ser humano” é deturpar o poema de maneira grosseira e reduzi-lo a lugares-comuns que não dizem nada sobre ele, mas dizem muito sobre a ideia que os examinadores têm da poesia. Ler o poema a partir de chaves como a das “vivências subjectivas” e de identidades leva o poema de Sophia para territórios de onde a autora se afastou radicalmente. A sua poesia é a busca de uma palavra impessoal e implica a despersonalização. Ela é completamente estranha a essa forma de subjectividade, de expressão e de identidade que os examinadores pressupõem. Por isso é que o mito da Musa é tão importante na sua obra. A poesia como invenção das Musas significa que o poeta é fiel a uma inspiração musical, a uma palavra que tem uma relação com o ser enquanto verdade. “A música do ser” é algo consubstancial à própria poesia porque o poema é canto, e a música é a arte das Musas. Fazer de tudo isto matéria de “vivências subjectivas” e querer que os alunos identifiquem aqui a construção de uma identidade é como falar em bugalhos quando o poeta fala em alhos. Que inanidades terão os alunos que papaguear para estarem conformes ao “cenário de resposta” e coincidirem com os critérios de classificação? E quem não responder de maneira acertada é porque não está à altura das exigências interpretativas dos examinadores ou porque foi confrontado com uma missão impossível?
E, sobre isto, o que diz a “Associação de Professores de Português”? Que “as duas questões apresentadas, também coerentemente elaboradas, obrigavam a que o examinando assimilasse toda a linguagem metafórica aí existente, exigindo, de novo, grande concentração”. Estes poetas dão cabo da cabeça dos alunos com tantas metáforas. Ainda bem que os examinadores têm à sua disposição um bom dicionário de metáforas que facultaram amigavelmente à Associação de Professores de Português.
António Guerreiro (crítico literário), 19/06/2015 - 05:38
http://www.publico.pt/portugal/noticia/as-aventuras-de-sophia-na-patria-dos-examinadores-1699440?page=-1




OPINIÃO

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema


Para quem tenha lido o que António Guerreiro escreveu no PÚBLICO, “As aventuras de Sophia na pátria dos examinadores”, na edição de 19 de Junho, sexta-feira, espanta que a lucidez desse artigo colida com a inanidade das declarações de Edviges Ferreira, presidente da Associação de Professores de Português, segundo a qual o poema de Sophia exigia “grande concentração”. Que significará, na semântica de Edviges, “grande concentração”?
De facto, quer para quem faz os exames, quer para quem, com responsabilidades oficiais – caso da presidente da APP – sabe que, em contexto de exame nacional de Português, o texto poético tem de ser avaliado, os poetas podem mesmo, como diz Guerreiro, dar “cabo da cabeça [dos examinadores] com tantas metáforas”. Creio que, para além do que António Guerreiro objectivamente afirma (“onde no poema se lê “ser” os examinadores lêem imediatamente e sem hesitações “ser humano”. Para eles “ser”, substantivado, não pode ser senão isso. Que pensarão eles que é Ser e Tempo, a principal obra de Heidegger? Um tratado de antropologia? Mas mesmo que desconheçam tudo acerca do ser enquanto objecto da filosofia pelo menos desde Parménides, que nunca tenham ouvido falar de essência e de ente e que não saibam o que é a ontologia, não podem, sem erro e violência, interpretar um poema de Sophia de maneira a torná-lo completamente estranho, e até antagónico, aos princípios da poética nele implícita e construir uma parte da prova com base nessa interpretação, pedindo aos alunos um exercício que só pode ser considerado correcto se deturpar completamente o poema.”), há espaço para nos questionarmos sobre o que pode um professor de Português fazer, ao longo do ano lectivo, quanto à leccionação do texto lírico. E o que pode fazer é, por razões várias, mas que merecem debate, manifestamente pouco.
O problema reside, a meu ver, numa questão de didáctica e de pedagogia do texto literário. É impossível facultar aos alunos, com leitura metódica efectiva, todos os poemas seja de que poeta for. As razões são de ordem prática: ao elaborar-se um programa escolar selecionam-se textos segundo um critério de qualidade e, assim sendo, que outro poema de Sophia mereceria ser analisado em Exame? Por acaso “Arte Poética II” não deveria ser texto obrigatório a constar nos manuais de Português do 10.º ano? Poema sobre a poesia, aí se explica por que razão a poesia é uma “arte do ser” e, como bem viu Guerreiro, o ser da poesia nada tem que ver, em Sophia, com o que os cenários de resposta do Exame Nacional propõem. Logo, a questão é grave: segundo os critérios, os alunos terão de dar uma resposta errada para terem certo este item do exame. Se os examinadores lessem o artigo de António Guerreiro chegariam a uma conclusão simples: qualquer que seja a resposta dada pelos alunos terá de ter cotação máxima no conteúdo, uma vez que a própria proposta de cenário é um erro crasso por parte dos que conceberam as questões e os respectivos cenários. E a questão, que lateralmente Guerreiro convoca, é mesmo a de dar, para o Exame Nacional desta disciplina, noções de poética dos autores que constam do programa. Noções de poética, isto é, as coordenadas gerais de determinada obra de dado autor, em função do contexto de produção e da comunidade interliterária a que esse autor pertence. A esta luz pode o professor escolher textos que não estão nos manuais – pode e deve fazer das aulas exercícios de leitura contrastiva/comparativa, facultando aos alunos alguma crítica literária, sem cuja leitura os alunos não conseguem apropriar-se do registo científico que, à saída do Ensino Secundário, deveriam dominar.
Em função de uma “pedagogia da admiração” (assim defende Helena Buescu) essas coordenadas de leitura conduziriam, seja em face de que poema for, a um comentário centrado na linguagem do texto em presença, e não em lugares-comuns e leituras superficiais, que é justamente o que os cenários de resposta são. A leitura do texto poético exige, de facto, “grande concentração”, como sabiamente diz Edviges, mas essa concentração deriva de um saber literário que, na relação pedagógica, se transfere do professor para o aluno, consolidando – através da escrita – a capacidade da leitura inferencial. Isso exige questionários que não corrompam os textos literários, algo que, no limite, implicaria que os fazedores dos exames soubessem que a ideia de ser em Sophia não autoriza as perguntas propostas.
Já em 2012, António Guerreiro afirmava o seguinte: “Trata-se sempre de perguntas que não convidam o aluno a ler e a interpretar, mas a repetir leituras e interpretações que lhe foram fornecidas. [...] Algum examinando que se desloque ligeiramente em relação ao "cenário de resposta" pode provocar cataclismos em cadeia: em primeiro lugar, afasta-se dos "critérios específicos de classificação [...]" o que significa fugir do horizonte dos "descritores do nível de desempenho no domínio específico da língua”“. Assim se desautorizam os professores quanto à sua liberdade para corrigir, em função da análise que os estudantes fazem, a expressão escrita e a capacidade inferencial de quem vai a Exame. E assim o acto de ensinar se tem vindo a transformar em corrupção do que, idealmente, o ensino deveria ser – nomeadamente o ensino do Português –, a saber: acto crítico, de verdadeiro rigor, não porque se queira fazer um exame infalível numa disciplina que, porque lida com a linguagem, não pode ser idêntica às matemáticas ou químicas, mas de rigor porque não se pode propor como cenário de resposta correcto o que o poema, neste caso de Sophia, jamais diz. Isso é falta de rigor, Senhores Examinadores. Por muito que mascarem com níveis de desempenho o absurdo dos cenários de resposta que propõem, esses cenários é que são propostas de correcção verdadeiramente subjectivas, feitas, afinal de contas, por quem nunca se deu ao trabalho de ler, para saber o “como diz” da poesia, Ser e Tempo, de Heidegger… E aqui, pergunte-se, como podem os professores de Português aceitar semelhantes dislates e idiotices por parte do IAVE?

Analisar a poesia em exame nacional ou como deturpar um poema”, António Carlos Cortez (Professor e crítico literário), Público, 15/07/2015.




Poderá também gostar de ler:

. “Professores denunciam falhas graves na correcção do exame de Português”, Clara Viana e Graça Barbosa Ribeiro. Público, 15/07/2015.

Perfil poético e estilístico de Sophia de Mello Breyner Andresen - apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen, por José Carreiro. Folha de Poesia, 2020-07-17


1 comentário:

  1. Plenamente de acordo com este crítico! Veremos os resultados da prova... Claro que os alunos não entenderem o poema, nem na perspetiva da "humanização da música", nem na perspetiva da mùsica do ser" entendida como a essência da poesia! Que respostas terão eles a capacidade de responder? Mas "maldades destas acontecem frequentemente....
    Aplaudo a pertinência deste artigo!

    ResponderEliminar