Na próxima terça-feira, dia 27, pelas
19h30, vai decorrer na livraria Solmar uma sessão de apresentação de um livro que
tem por tema aquele que, histórica e factualmente, é o primeiro livro de Daniel de Sá – Em Nome do Povo. Amem. O
livro a apresentar tem como título Prós sem Contra traduzindo, de
alguma forma, com cambiantes várias, o pensamento expresso nos textos de três
autores diferentes que dão a sua opinião sobre o livro - Luiz Fagundes Duarte,
Sidónio Bettencourt e quem assina estas linhas.
Em relação ao livro do Daniel – Em Nome do Povo. Amem – as considerações
de maior interesse com que se pode abordar este livro podem reduzir-se a três.
Em primeiro lugar, não é, não
pretendeu ser nunca, um livro de poesia, mas de antipoesia. O seu subtítulo
di-lo expressamente – Antipoemas e outras palavras. E
coerentemente com isto, em todo o livro, Daniel só usará por duas vezes a
palavra poesia, mas sempre no sentido de a menorizar. Numa das vezes, para
contrapô-la à prosa nos seguintes termos: “Porque a prosa é a arquitectura e a
poesia é o ornato”. E carregará na minimização apodando-a do “belo superficial
das coisas essenciais”. Doutra vez, para ironizar com os chavões desse simples
ornato que é a poesia. Dirá num parêntese, que isolará o termo do restante
texto, como para não o contaminar:
(Na poesia, quando há
olhos
E alma,
Há quase sempre abrolhos
E calma).
É de salientar que esta consideração pejorativa
desse artifício verbal, deste convencional e estereotipado jogo de consonâncias
e rimas será precisamente um dos aspectos fulcrais realçado pela corrente da
Antipoesia, nomeadamente do seu principal corifeu – o chileno Nicanor Parra.
Ainda com a mesma coerência, o livro
não se compõe de poemas, mas de “Textos” que Daniel cataloga com a aridez pouco
poética do número, contabilizando-os tabelionicamente de I a XXV.
A segunda observação a fazer deriva da
anterior. Esta detinha-se na forma que assumia nos seus cultores a poesia tradicional.
A poesia, segundo Parra tinha de libertar-se dos formalismos useiros e vezeiros
da poética tradicional, porque ela já não correspondia às exigências de um
mundo, em que a relação com a natureza, como objecto de contemplação, mais ou
menos lírico, e a relação com a sociedade se transformara de um mundo de
certeza e certezas e de ordem, num mundo de inquietação, dúvida e angústia . E
esse mundo, nesta nova desarmonia, reclamava não o lirismo subjectivista, mas o
pessimismo, o cepticismo e a crítica sarcástica. Em resumo, a alteração formal
pretendia responder às novas exigências de uma alteração de fundo. Este
fenómeno de rotura e mudança radical, no caso do Em Nome do Povo. Amem, não
será ao nível da relação com a natureza, mas com a história e os acontecimentos
dos tempos de então que Daniel vivia no seu quotidiano e revivia nos seus
“textos”. A rotura será o abalo social e político do “25 de Abril” que exigia
também outras formas de abordagem da sociedade e dos acontecimentos. Com este
livro, Daniel traduz as etapas de uma ruptura social e política que assumiu,
inicialmente, a magia de todas as mudanças radicais num contexto adverso e
contraditório. Penso que poucos autores, em Portugal, terão traduzido como
Daniel com vestes de antipoesia, ou mesmo de poesia, as vicissitudes, as contingências,
a ambivalência, os avanços e recuos do chamado “PREC” e de todas as transformações
ansiadas e sonhadas no 25 de Abril.
Todo o livro capta em cheio este
sinuoso contexto e percurso sequente ao 25 de Abril de 74.
Apenas um exemplo a ilustrar o que fica
dito:
“Achou-se que era velho
demais um velho Estado Novo
E descobriu-se que um estado é a voz do povo.
E houve a sublime certeza
De que é o povo quem manda,
Sem clero nem nobreza.
Mas é com estes ainda que tudo anda”.
Finalmente, o terceiro aspecto.
Trata-se de um livro que o Daniel retirou da sua bibliografia. Não creio que o tenha
renegado, mas sem dúvida que o enjeitou.
Que alcance e significado se deve retirar
desse facto? Em primeiro lugar, enquadrá-lo nos numerosíssimos exemplos de
rejeições das suas Juvenílias ou
primeiras obras por muitos autores. Desde Virgílio, que tentou queimar a Eneida por duas vezes, até autores que,
em alguns casos, já depois de publicada a obra, tentarão fazê-la desaparecer, como
Nathaniel Hawthorne, celebrado autor do século XIX com a sua Letra Escarlate, ou ainda como Vitorino
Nemésio que “enjeitou” a sua obra de estreia. Em segundo lugar, que, na sua
maturidade, e depois da sua evolução até à plena posse de todos os seus recursos
de conteúdo e expressão, muitos autores tendem a condenar ao limbo obras de
estreia que a seus olhos apenas sobressaem pelas insuficiências ou
imperfeições.
Dionísio Sousa, 22.10.2015 (23h41).
“Daniel de Sá - o único grande nome da antipoesia na literatura açoriana”,
Correio dos Açores, Ano 96, n.º
30766, 2015-10-24