Páginas

domingo, 20 de dezembro de 2015

AMAI-LA


Não obstante o reconhecimento do Fado como a expressão da sentimentalidade lusitana, da sua angústia coletiva, foi considerado, inicialmente, como marginal e ligado à prostituição, principalmente durante a Primeira República, com referências explícitas à fadista Severa. Nascido nos bairros mais pobres da Lisboa do século XIX, entre os escravos e criados, marinheiros e operários, marialvas e vadios, dentro e fora dos prostíbulos dos arredores da capital, o Fado foi ascendendo socialmente, deixando de se identificar com o lado marginal da sociedade e passando a frequentar os salões da burguesia e da aristocracia, até chegar à canção nacional, adotada pelo Estado Novo, a partir de 1937. Essa imagem imoral do Fado só terminaria nessa altura, em que também o fadista passou a ser encarado como artista e porta-voz do Fado, símbolo nacional. Esta situação tornou-se mais célere, graças à carreira em ascensão, inclusivamente a nível internacional, de Amália Rodrigues, a qual se converteria, por excelência, não só na mais famosa representante do Fado, como também na cantora nacional de Portugal.

Com Amália, as letras do Fado abandonam a dimensão de narrativa cantada e, progressivamente, os poemas passaram a existir enquanto criação estética, individualizada. Por seu turno, as músicas eram feitas para acompanharem determinados poemas. Exemplo disso foi o compositor francês Alain Oulman, que compôs inúmeros trechos musicais para musicar os poemas de Camões – v. g. Erros meus, má fortuna, amor ardente” – para serem cantados por Amália. No entanto, Amália também cantou muitos poemas feitos propositadamente para si, nomeadamente por Alberto Janes, tendo este abordado, nos seus versos, o tema da saudade, tão característico do idioma fadista, como se exemplifica:


Tenho a janela do meu peito

Aberta para o passado

Todo feito de fadistas e de fado!

Espreita a alma na janela,

Vai o Passado a passar,

Ao ver-se nela, a alma fica a chorar.

 

Ler mais em: O fado e a questão da identidade, Vilma Silvestre. Lisboa, Universidade Aberta, 2015, 2 volumes.

 


 



Em artigo publicado no 
Diário de Notícias de 7 de Outubro de 2009, assinalando os dez anos do falecimento da fadista portuguesa, o poeta e escritor Vasco Graça Moura escreve sobre «um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado», do «milagre» de Amália Rodrigues.      


POÉTICA DE AMÁLIA
(…) Em conversa com [o jornalista] Manuel Halpern, do Jornal de Letras, a propósito da poesia de Amália Rodrigues, falei da qualidade da escrita dela, que não tinha tido qualquer espécie de educação formal. Não me ocorreu então que, na sua segunda carta a Vitorino Nemésio, ela assumia a confirmação disso mesmo: «Ai, meu querido professor/Eu nunca fui sua aluna/Não tenho instrução nenhuma,/Como é que posso entender/O que o senhor quis dizer/Sem saber ler nem escrever?» E esse é um dos aspectos, talvez o menos referido e tratado, do milagre de Amália. Nos seus versos, ela soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.  
A chave para entender o fenómeno, na parte em que ele pode ser entendido, creio que está precisamente nessa aliança de gosto apurado, sentido da musicalidade e do ritmo, simplicidade verbal e naturalidade de expressão que Amália soube processar com requintada destreza entre a ingénua frescura da tradição e da poesia do povo (da toada beirã às criações dos letristas populares que cantava) e o trato aturado com a poesia mais elaborada dos escritores que foi incorporando no seu repertório. A influência das oficinas de David Mourão-Ferreira e a de Pedro Homem de Mello nalguns dos seus temas próprios parece-me evidente. Mas as coisas não ficam por aí e há outros aspectos que surpreendem, como, em Flores do Verde Pinho, esta habilíssima utilização de uma forma verbal arcaica: «Ai, flores do verde pinho,/dizei que novas sabedes/da minha alma, cujas sedes/ma perderam no caminho!»
E há momentos de grande eficácia técnica. Recordo os meus dois fados favoritos de que Amália escreveu a letra, Estranha Forma de Vida e Lágrima, o primeiro com a sua intensificação repetitiva pela retoma do primeiro verso de cada quintilha no remate dela, a acentuar a "estranheza" da vida daquele "coração independente", o segundo com a reiteração sincopada da primeira metade de cada verso, como se o próprio avançar do poema fosse depender desse "tactear", desse recomeçar da procura da maneira de dizer para chegar à máxima intensidade lírica, a exprimir a fragilidade com que o ser humano se expõe desamparadamente na paixão. O texto de Lágrima, obra-prima da Amália letrista, poderia ser quase integralmente reduzido a quatro quadras, mas a sua transfiguração dramática deve-se a essa espécie de leixa-pren, de retomar insistente e fraturante do teor de cada verso, reforçando uma dialéctica muito fadista que poderia esquematizar-se cruamente desta maneira: realidade/sonho, sofrimento de amor/disponibilidade para morrer.
Nos poemas não cantados (reporto-me à excelente edição de Versos, organizada em 1997 por Vítor Pavão dos Santos)mantêm-se muitas destas características, a que acresce em geral uma nota de humor e de auto-ironia muito pessoal (por exemplo: «Cá por dentro da cabeça/vazia como eu a tenho/por estranho que pareça/atendendo ao seu tamanho»…). Esse humor surge com frequência nas peças de matriz mais popular e também no pequeno bestiário da autora (gafanhotos, grilo, bicho-de-conta, mosquitos, cabra e vários outros animais aí incidentalmente referidos).
Noutros fados, como Lavava no Rio, Lavava Quando Se Gosta de Alguém, a repetição é utilizada com excelentes efeitos, no primeiro, a recordar a toada das cantigas de amigo e do romanceiro, no segundo, explorando contradições e perplexidades cujo sentido se reforça exactamente pela engenhosa recondução das questões ao mesmo pressuposto inicial («quando se gosta de alguém»). Já em Amor de Mel, Amor de Fel, a sequência qualificativa e modulada do amor sentido entre os seus pólos de contentamento e amargura joga com anáforas, com oposições, com hipérboles, com alusões à relação tonal de fado maior e fado menor e, por esta via, com a ambiguidade entre o sentido de fado (canção) e o de fado (fatum, destino).
Enfim, o que em Amália vive e sente está pensando e recordando, como ela escreve em Depois Disto… desisto, redondilhas que começam assim: «Tantas coisas que já li/Outras tantas que vivi/Fazem de mim o que sou/Ai, se eu tivesse esquecido/Tudo o que tenho vivido/E o coração decorou
Fonte
Artigo publicado no Diário de Notícias de 7 de outubro de 2009.


A biografia do Fado, embora dúbia, constitui motivo de orgulho para o povo português e, desde que começou a ser interpretado como porta-voz da nossa nação, vários têm sido os autores e compositores que honram esta canção nacional, graças às letras de Fado por eles criadas. As tradições podem eventualmente sofrer adaptações e reinvenções para as gerações mais jovens, as quais se encarregam de as transmitir como legado cultural.

Será que o Fado se reinventou entre as várias gerações de uma nação que vivenciou inúmeras vicissitudes sociopolíticas, nos últimos duzentos anos?

Pelo conhecimento que temos da história do Fado, é indubitável que este sofreu um enorme salto qualitativo, estimulado essencialmente pela união desta forma de expressão artística, genuinamente portuguesa, à poesia que os nossos poetas maiores produziam. Como porta-bandeira desta caminhada, encontramos Amália Rodrigues, cujas voz e performance souberam corporizar o espírito nacional, integrando os poetas eruditos. Amália sempre teve ao seu lado os grandes poetas nacionais; ainda na década de 50, interpretou o Fado “Primavera”, com o poema de David Mourão Ferreira. A partir da década de 60, partilhou essa vocação com Alain Oulman. O facto de Amália editar um álbum com poesia camoniana intitulado “Amália Canta Camões” gerou bastante controvérsia, sobretudo na imprensa escrita e até em debates televisivos, provavelmente porque era inusitada esta associação, e porque o público não acede facilmente às mudanças. Em Camões, um dos mais fortes símbolos de identidade da nossa pátria, a presença do fado como destino é mais evidente e constitui, inclusivamente, uma das temáticas da sua poesia lírica. Amália deu voz a um dos sonetos camonianos onde o Fado é o tema abordado: “Com que voz”, numa interpretação reveladora do sentimento que o Fado tradicionalmente expressa, como uma música triste, versando geralmente, uma temática taciturna, nostálgica e fatalista. Efetivamente, o fatum (Destino) era o tema em evidência, na sua aceção etimológica. Logo, a avaliar pelas letras dos fados, percebemos uma mensagem de sofrimento que perpassa essa alma dolorosa e plangente dos fadistas. A capacidade que Amália demonstrava na interpretação dos poemas era notável e conferia-lhe uma excecional densidade dramática, o que fez com que todos os tabus criados em seu redor se dissipassem, levando à criação de uma época ímpar na música ligeira portuguesa. Amália corporizava os sentimentos mais dolentes da alma portuguesa, numa vivência muito subjetiva, o que lhe conferiu o título de musa do Fado.

 

Ler mais em: “O fado e a questão da identidade”, Vilma Silvestre. In: Atas das I Jornadas de Estudos Portugueses [Em linha], Ana Piedade e Paulo Silva. Lisboa, Universidade Aberta, 2021. 185 p. (eUAb. Ciência e Cultura; 12). ISBN 978-972-674-890-8

 

(Última atualização: 2022-10-11)

Sem comentários:

Enviar um comentário