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sábado, 23 de abril de 2016

Literaturas Comparadas: A Lírica de David, Mickael e Tony




Ricardo Araújo Pereira, “Literaturas Comparadas: A Lírica de David, Mickael e Tony”, in Mixórdia de Temáticas, programa emitido pela Rádio Comercial em 2012-04-10

[…] creio ser possível identificar certas constantes, motivos e argumentos recorrentes que reemergem sistematicamente, e acabam por definir o modo como falamos de poesia. O problema que me suscita os exemplos iniciais decorre da percepção de uma identidade comum àquele discurso e a uma certa tradição do discurso crítico-literário. Uma tradição fortemente marcada pelo tom descritivista, ao qual não será porventura alheia a “heresia da paráfrase”, mas cuja negação do poder de actualização do poético vai muito para além disso: o gesto crítico volve-se num exercício taxonómico, numa pulsão classificativa que se enreda sobre si mesma e se ocupa do jogo infinito de fazer e desfazer a sua própria trama, à imagem de Penélope.
Creio que, em tempos recentes, ninguém conseguiu captar tão bem o fundo irónico desta tendência quanto Ricardo Araújo Pereira, na rábula “Literaturas Comparadas”, integrada no espaço radiofónico Mixórdia de Temáticas. Ricardo Araújo Pereira propõe-se fazer uma análise comparativa de três autores de música popular portuguesa, e fá-lo nos termos mais familiares ao discurso crítico (onde pode incluir-se o académico) dos nossos dias. Com o devido indulto que exigem os coloquialismos e impropérios, vale a pena citar o diálogo, já que nele ficam evidenciados de modo lapidar alguns destes “tiques” mais persistentes na produção crítico-interpretativa, hoje:
- Bom, em primeiro lugar, é importante distinguir estes três trovadores: Tony é um cantor romântico, Micael propõe romance também, mas em ritmos latinos, com especial atenção às sonoridades do caribe, e David opera uma mistura única entre o pop, a dance music, o hip-hop e as grandes baladas R&B - estou a citar o site oficial do poeta.

- Mas olha, Ricardo, eles podem ser enquadrados nessas categorias ou extravasam os seus limites? É que a minha sensação é que eles extravasam esses limites...
- Ó Vasco, vejo que tens formação em literatura. De facto, extravasam e de que maneira. Talvez as pessoas se surpreendam se souberem que Tony Carreira, por exemplo, além de incurável romântico, sabe ser também um atrevido maroto. É um dos aspectos mais interessantes da lírica toniniana, aliás, e está presente, por exemplo, no poema “Eu quero Nanana”:
(...)
Repara, Vasco, como o poeta, marotamente, substitui aquilo que se adivinha ser obsceno pela expressão “nanana”. Agora: fá-lo por pudor, ou porque tem dificuldade em usar a língua portuguesa para se exprimir? É a dúvida que acrescenta mistério ao poema.
- Mistério ao poema. Mas, por outro lado, David Carreira é mais moderno... Como é que se faz sentir na poesia essa modernidade do David?
- Olha, Vasco, através da introdução subtil de vocábulos em inglês: David Carreira usa termos em estrangeiro, logo, é moderno.
(...)
Não sei se reparaste que, um poeta menos moderno, limitar-se-ia a festejar. David vai mais longe, e festeja in the club, yeah. Designadamente, no dance floor.
- Notável, notável. E quanto ao Micael? Ao que julgo saber, a poesia do Micael distingue-se por uma certa, como hei-de dizer, idealização da mulher?
- É, sim, sim, sobretudo na medida em que a mulher, enquanto ideal de pureza, consegue, ainda assim, abanar o pandeiro, portanto, o nalguedo, a pandeireta, vá. Mas é uma pandeireta idealizada, ela também. Repara no poema “Mexe bem demais”:
(...)
Vê, Vasco, como a mulher ideal de Micael Carreira tem calor latino, que é dos melhores calores que se pode ter, e, não satisfeita com o facto de ter tudo aquilo com que o poeta sonha, ela ainda mexe bem demais. Podia limitar-se a estar sossegada, ou a mexer relativamente bem. Mas não: ela mexe bem demais. Ora bom, nisto de mexer, pergunto eu, haverá demasiado bem? A partir de que momento é que mexer bem se torna mexer bem demais? São questões extremamente interessantes, Vasco.
- Que vão ter de ficar para outra vez, Ricardo, porque já excedemos o nosso tempo.
- Já, olha, é sempre a mesma coisa, nunca há tempo para a poesia. Mas enfim...

O registo irónico não retira à caricatura o poder de penetração num certo modo bastante disseminado de falar sobre poesia: um misto de formalismo com um sentimentalismo deliquescente, concentrado quase exclusivamente em explicar o como, mas pouco ou nada preocupado com o porquê, e menos ainda o para quê da poesia, numa justificação fática do poético, quase sempre aliada a uma reivindicação sem profundidade nem fundamento da sua necessidade: “nunca há tempo para a poesia. Mas enfim...”.
Tudo isto configura um quadro de sintomas que se integram naquilo que Slavoj Žižek, em For they know not what they do. Enjoyment as a political factor, caracteriza como os efeitos da crise desencadeada pela perda do elo entre a referência e a coisa, entre o discurso e as suas consequências. Esse “elo perdido”, afirma, que o estruturalismo vincou com determinação ao afirmar o princípio da “prioridade da sincronia sobre a diacronia”, reemerge no discurso contemporâneo como um “sujeito” espectral, a apontar o vazio que precede e sucede à linguagem, numa ordem circular e auto-referencial, que apenas declara a impossibilidade de comunicação entre o discurso e um lugar que lhe seja exterior. O poético, lido como lugar sem fora, no entendimento que lhe é dado nos problemas que convoquei inicialmente, corresponde a esta tipificação:
All of a sudden, by means of a miraculous leap, we find ourselves within a closed synchronous order which does not allow of any external support since it turns in its own vicious circle. This lack of support because of which language ultimately refers only to itself – in other words: this void that language encircles in its self-referring – is the subject as “missing link”. The “autonomy of the signifier” is strictly correlative to the “subjectivization” of the signifying chain: “subjects” are not the “effective” presence of “flesh-and-blood” agents that make use of language as part of their social life-practice, filling out the abstract language schemes with actual content; “subject” is, on the contrary, the very abyss that forever separates language from the substantial life-process. (Žižek 2008: 201)

Talvez seja este o (pesado) legado dos projectos formalistas e estruturalistas para a forma como lemos poesia: acreditando que estamos a celebrar a autonomia do significante, não deixamos de contribuir para o ciclo vicioso da reificação de um “sujeito” idealisticamente concebido, que se manifesta na cisão, no próprio abismo entre a ordem do simbólico e a estrutura real dos processos da vida quotidiana. A violência da tensão resultante deste duplo impulso revela-se, na caricatura de Ricardo Araújo Pereira, pela acomodação do princípio auto-referencial da leitura comparatista com as interferências de uma linguagem exterior ao código convencionado, colocando em destaque a extrema dificuldade que enfrenta a crítica de poesia no que toca a estabelecer canais de comunicação com o contexto, enquanto realidade actuante.


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