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sexta-feira, 27 de maio de 2016

Fala! Alexandre O'Neill



Ilustração de Marta Madureira, 2012.


F A L A !

Fala a sério e fala no gozo
fá-la p’la calada e fala claro
fala deveras saboroso
fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
fala com elegância muita e devagar.

Alexandre O'Neill, Abandono Vigiado. Lisboa, Guimarães Editores, 1960. Coleção “Poesia e Verdade”.

Audição do poema dito por Luís Gaspar (Estúdio Raposa, 2012-01-08).
Linhas de leitura:
- No poema “Fala!” de Alexandre O’Neill, o sujeito poético dirige, anaforicamente, sucessivos apelos ao destinatário, para que este atue através da palavra e faça da sua capacidade de falar uma ação tão natural como a capacidade de andar (“Fala como se falar fosse andar”).
- Identifica as palavras homófonas da primeira estrofe do poema “Fala!” de Alexandre O’Neill e procede à sua transcrição fonética.
- Repara na variedade de sentidos que envolvem o verbo “falar” nas seguintes expressões idiomáticas:
  • “fala claro”: falar de forma percetível sem deixar dúvidas sobre o que se diz (falar claro);
  • “fala barato e fala caro”: falar muito e despropositadamente (fala-barato) / falar com registo cuidado (falar caro);
  • “Fala ao ouvido fala ao coração”: falar baixinho com alguém para que mais ninguém ouça (falar ao ouvido) / falar tentando despertar sentimentos de boa vontade em alguém (falar ao coração);
  • “Fala fininho e fala grosso”: falar com medo ou muito respeito (falar fininho) / falar de forma agressiva (falar grosso).

(Adaptado de P8 Português – 8.º Ano, Ana Santiago e Sofia Paixão, Texto Editora, 2012)






A década de 60 pode ser considerada o momento mais produtivo da carreira literária do autor português. Neste período foram lançados livros de poesia, antologias de outros poetas e traduções. A partir da publicação de No reino da Dinamarca, a poesia de O’Neill assume um caráter político, recusando a ordem estabelecida por meio da provocação, da sátira, do escárnio, da blasfêmia e do divertimento poético. Suas poéticas são voltadas para a libertação do homem e da palavra.
[…] em Abandono vigiado, de 1960, uma contradição se faz evidenciar já no título, que constitui um paradoxo, e remete a um programa de escrita que é ao mesmo tempo abandonada e vigiada. Trata-se, aqui, da relação de Alexandre O’Neill com a poética surrealista e com uma poesia de outra ordem, voltada para a resistência política […].
[…]as atitudes do sujeito lírico são centradas na provocação e na blasfêmia, opondo-se ao amor e ao lirismo, assim como se nota o humor como meio de denúncia; a escrita é vista como uma forma de resistência. Essa postura poética não se centra apenas em uma perspectiva de crítica individual, mas, sim, na projeção de uma visão satírica de Portugal.

Graciele Batista Gonzaga, O pensar poético: Alexandre O’Neill em diálogo com João Cabral, Belo Horizonte, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2015

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