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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Bob Dylan

Passagem de testemunho de poetas «beat» para poetas de rock:
Robbie Robertson, Michael McLure, Bob Dylan, Allen Ginsberg, em São Francisco, Ca., 1965.
(In: ESTRO IN WATTS - poesia da idade do rock - 1955-1980João de Menezes-Ferreira)



Nascido em Duluth, no Minnesota, em 1941, no seio de uma família de proveniência russa e judaica, Bob Dylanpseudónimo de Robert Allen Zimmerman, começou a escrever poemas com dez anos de idade. Aprendeu a tocar piano e guitarra sozinho. Em 1959, foi estudar para a Universidade do Minnesota (EUA). No ano seguinte, decidiu deixar a faculdade e partir para Nova Iorque, cada vez mais interessado nas origens do rock and roll e em intérpretes e criadores como Woody Guthrie, sua grande referência musical. “Já tinha passado por muitas coisas e visto muitas outras. Mas agora o destino ia revelar-se. Senti que [Guthrie] estava a olhar diretamente para mim e para mais ninguém”, escreve Dylan no 1.º volume das suas Crónicas.
Helena Bento, Expresso, 2016-10-13




O FANHOSO DO MINNESOTA

Mais do que uma característica vocal, a «fanhosez» (real ou por mim imaginada?) de Bob Dylan é uma qualidade estilística alimentada por uma recusa, um a contra-pelo de quem sabe, muito conscientemente, conter-se na efusão do sentimento e, até, «desmentir» no cantar a palavra que canta. Não que ele desminta a palavra a nível do conceito e da «mensagem». O que acontece é que Dylan a rejeita como lugar-comum cantabile, como repositório-comum de sentimentos pré-catalogados e como «air de bravoure». Diríamos que Dylan não maiusculiza nada. As massas verbais que, sem ornatos, debita dão conta de muita coisa bela, grande, divertida ou terrível, mas a força comunicante do trovador está, principalmente, no partido que ele tira da monotonia, repetição e progressão «fanhosas» de um texto maravilhosamente aliado à música. Este é um caminho de voluntária pobreza. Um mínimo de suportes e de efeitos, para um máximo de comunicação verbal. «Sentir? Sinta quem ouve!», apetece dizer, parafraseando Fernando Pessoa, a propósito do discurso de Bob Dylan.
Isso a que eu chamo de «fanhosez», que musicalmente deve ter uma explicação, muito em particular no campo da balada, ganha em Dylan as características de um estilo. Para muitos, tal estilo não passa de maneirismo. Mas Dylan sabe, com e depois de Wood Guthrie, de Pete Seeger e de Brassens, que a palavra só move mundos quando é entendida na sua integridade. E Dylan é, também, um excelente poeta, isto é, alguém capaz de entender que «o lirismo é o desenvolvimento de um protesto». Do «fanhoso» do Minnesota não se poderá dizer, como Flaubert de um cantor de ópera sua criatura: «Havia algo nele de cabeleireiro e toureiro».
Ponham nele os ouvidos certos baladeiros portugueses e espanhóis que fazem das palavras vazadouros dos mais simplesmente sentimentos.

Crónica de Alexandre O’Neill, A Capital, 1974-01-01


*


BOB DYLAN DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

por Luís Quintais, 2013-03-27, https://luisquintaisweb.wordpress.com/2013/03/27/bob-dylan-dirigi-se-aos-seus-contemporaneos/

     Uma imagem perseguia-me em tempos já remotos. Se me perguntassem o que fazia, onde estava, o que pretendia, dizia sempre, não estarei lá, aí, nesse lugar onde me querem abandonar, como se abandona um cão velho numa estrada perdida. Ou então dizia, não, não me chamem poeta, não é uma atribuição que me pertença, nunca poderia sê-lo. Agora que já passou muito tempo desde a minha última fuga de Hibbing, prefiro que me recordem como o expedicionário musical que sempre fui. Ou tão-só como o rapaz do trapézio, o que é sempre bonito, quando penso que sou hoje um septuagenário que sorri à morte. Como sempre, tenho a dizer-vos que a face do perpetrador se anuncia a cada passo e que se esconde habilmente. Para onde quer que nos viremos, ela surge-nos, espreita-nos, como um abismo que nos espreita. O que vai acontecer?, perguntar-me-ão. Terá de haver uma explosão de algum tipo. A densa chuva irá cair, inevitavelmente. Recordem-se do último verso dessa canção, quando digo: «projectéis de veneno invadem as águas». O que queria eu dizer?  Apenas isto: que somos tomados de assalto por mentiras, continuamente. Cercados por mentiras proferidas pelas inúmeras cabeças falantes que estão em todo o lado. Abram os jornais, liguem a televisão, circulem pela web. Olhem para essa gente que nos invade o tempo e o espaço. Vejam como nos roubam, como nos esvaziam o crânio, nos roubam a alma, esses filhos da puta sem remissão! Não sei o que pensam os mais novos de tudo isso, mas seria bom que parassem um minuto, que se permitissem a si mesmos um minuto. Hoje, nem de Hibbing poderia fugir, nem sequer faria sentido. Para onde quer que se vá, a merda é sempre a mesma. Para que servem então as canções, as minhas, as dos outros, os inúmeros poemas escritos, ditos, reditos? Para que se permitam um minuto, o vosso minuto. Nenhum de nós tem já morada ou origem. A minha vida continua a ser a rua que eu piso, e a música, e a velha guitarra aqui a meu lado enquanto escrevo este texto, são meros utensílios de uma procura, de um impulso que me foi fiel e ao qual fui fiel. Recebi condecorações por isso. A última das quais, das mãos do Presidente Obama. Mas não lhes atribuo grande importância. Parece-me uma trivialização do que disse, escrevi, cantei. No seu pior, todas as condecorações são armadilhas. Caí em algumas. Lamento-o. De resto, o mundo é irreformável. Como mudar o mundo se todos se afadigam na defesa dos seus interesses? Como? O que me foi e é caro na ideia de revolução prende-se com uma hipótese de fuga num mundo irrespirável e talvez inapelável e sem fuga. Mudar a vida, diria o Rimbaud da minha juventude nova-iorquina. A poesia? Nunca ninguém a leu. Não é de agora. Foi sempre assim. A poesia ofende e ninguém gosta de ser ofendido. Ofender é também inspirar, mas quem é que quer inspirar ou ser inspirado? É um perigo. Um perigo para todos e para cada um. Quem se faz inspirado passará a habitar os seus próprios sonhos. E quem quer isso? Pior coisa só mesmo viver na rua. Tudo começa no sonho e na rua, mas paga-se caro. Muito caro. Não há dinheiro que pague tal dívida. Afinal, serei apenas, quem sabe, um cão velho que por aqui anda há muito, mas que espera pelo novo ainda, e ele não chega, em nenhuma manhã chegará certamente. Em verdade vos digo que não me sinto velho, não, mas continuo a ouvir os mesmos discos que ouvia no início, os blues do Delta: Son House, Robert Johnson, Skip James. Ah, e por vezes, regresso ainda a Woody Guthrie.


[Originalmente publicado em Relâmpago, 29-30, «Poesia e revolução», pp. 127-8. Aqui e ali, o texto é tributário do magnífico livro Bob Dylan: the Essential Interviews, editado por Jonathan Cott e publicado pela Wenner Books de Nova Iorque no ano de 2006]





Pensemos brevemente na atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan. É um equívoco? É um escândalo? Faço uma declaração de interesses: Bob Dylan foi um dos meus ídolos, num tempo em que os costumes conviviam mal com atitudes de heterodoxia como as que Dylan protagonizava.
À parte isso, convém lembrar duas coisas. Uma: o Nobel foi atribuído à poesia de Bob Dylan, não à sua música; e a poesia de Dylan, certamente indissociável das canções que criou, é, como poesia, autónoma em relação a ela. Outra: a Academia Sueca é muitas vezes acusada de conservadorismo e de procedimentos de institucionalização, não raro associados a inconfessáveis conveniências políticas. Pois bem, por uma vez, a Academia surpreendeu pela positiva, não pela omissão (Jorge Luis Borges é a mais gritante, mas não é a única). E lançou-nos um desafio: tratemos de ler ou reler a poesia de Bob Dylan enquanto poesia e talvez tenhamos algumas surpresas. E sobretudo não fiquemos chocados, pelo facto de essa poesia ser difundida em concertos (como foi), pela rádio, pela televisão e pela internet. Pergunta final, talvez antes de outra reflexão mais alargada: a cultura do século XX seria a mesma sem Bob Dylan? Like a rolling stone, os critérios vão mudando, as instituições acolhem essa mudança e os juízos são relativos e historicamente datados.
Carlos Reis, Facebook2016-10-13



     Sete meses após ter sido distinguido com o Nobel da Literatura, Bob Dylan entregou  o seu discurso de aceitação à Academia, em que convoca algumas das referências de vida, na música e nas letras.




“Blowin’ In The Wind” (1963)

How many roads must a man walk down
Before you call him a man?
How many seas must a white dove sail
Before she sleeps in the sand?
Yes, and how many times must the cannon balls fly
Before they’re forever banned?
The answer, my friend, is blowin’ in the wind
The answer is blowin’ in the wind.
Yes, and how many years can a mountain exist
Before it is washed to the sea?
Yes, and how many years can some people exist
Before they’re allowed to be free?
Yes, and how many times can a man turn his head
And pretend that he just doesn’t see?
The answer, my friend, is blowin’ in the wind
The answer is blowin’ in the wind.
Yes, and how many times must a man look up
Before he can see the sky?
Yes, and how many ears must one man have
Before he can hear people cry?
Yes, and how many deaths will it take ‘til he knows
That too many people have died?
The answer, my friend, is blowin’ in the wind
The answer is blowin’ in the wind.


“The Times They Are A-Changin’” (1964)

Come gather ‘round people
Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You’ll be drenched to the bone
If your time to you
Is worth savin’
Then you better start swimmin’
Or you’ll sink like a stone
For the times they are a-changin’.
Come writers and critics
Who prophesize with your pen
And keep your eyes wide
The chance won’t come again
And don’t speak too soon
For the wheel’s still in spin
And there’s no tellin’ who
That it’s namin’
For the loser now
Will be later to win
For the times they are a-changin’.
Come senators, congressmen
Please heed the call
Don’t stand in the doorway
Don’t block up the hall
For he that gets hurt
Will be he who has stalled
There’s a battle outside
And it is ragin’
It’ll soon shake your windows
And rattle your walls
For the times they are a-changin’.
Come mothers and fathers
Throughout the land
And don’t criticize
What you can’t understand
Your sons and your daughters
Are beyond your command
Your old road is
Rapidly agin’
Please get out of the new one
If you can’t lend your hand
For the times they are a-changin’.
The line it is drawn
The curse it is cast
The slow one now
Will later be fast
As the present now
Will later be past
The order is
Rapidly fadin’
And the first one now
Will later be last
For the times they are a-changin’.


“Subterranean Homesick Blues” (1965)

Johny’s in the basement
Mixing up the medicine
I’m on the pavement
Thinking about the government
The man in a trench coat
Badge out, laid off
Says he’s got a bad cough
Wants to get it paid off
Look out kid
It’s somethin’ you did
God knows when
But you’re doin’ it again
You better duck down the alley way
Lookin’ for a new friend
A man in a coon-skin cap
In a pig pen
Wants eleven dollar bills
You only got ten.
Maggie comes fleet foot
Face full of black soot
Talkin’ that the heat put
Plants in the bed but
The phone’s tapped anyway
Maggie says that many say
They must bust in early May
Orders from the DA
Look out kid
Don’t matter what you did
Walk on your tip toes
Don’t tie no bows
Better stay away from those
That carry around a fire hose
Keep a clean nose
Wash the plain clothes
You don’t need a weather man
To know which way the wind blows.
Get sick, get well
Hang around an ink well
Ring bell, hard to tell
If anything’s gonna sell
Try hard, get barred
Get back, write Braille
Get jailed, jump bail Join the army, if you fail
Look out kid
You’re gonna get hit
But losers, cheaters
Six-time users
Hang around the theaters
Girl by the whirlpool is
Lookin’ for a new fool
Don’t follow leaders
Watch the parkin’ meters.
Ah get born, keep warm
Short pants, romance, learn to dance
Get dressed, get blessed
Try to be a success
Please her, please him, buy gifts
Don’t steal, don’t lift
Twenty years of schoolin’
And they put you on the day shift
Look out kid
They keep it all hid
Better jump down a manhole
Light yourself a candle
Don’t wear sandals
Try to avoid the scandals
Don’t wanna be a bum
You better chew gum
The pump don’t work
‘Cause the vandals took the handles.


“Mr. Tambourine Man” (1965)

Hey! Mr Tambourine Man, play a song for me
I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you.
Though I know that evenin’s empire has returned into sand
Vanished from my hand
Left me blindly here to stand but still not sleeping
My weariness amazes me, I’m branded on my feet
I have no one to meet
And the ancient empty street’s too dead for dreaming.
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you.
Take me on a trip upon your magic swirlin’ ship
My senses have been stripped, my hands can’t feel to grip
My toes too numb to step, wait only for my boot heels
To be wanderin’
I’m ready to go anywhere, I’m ready for to fade
Into my own parade, cast your dancing spell my way
I promise to go under it.
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you.
Though you might hear laughin’, spinnin’ swingin’ madly across the sun
It’s not aimed at anyone, it’s just escapin’ on the run
And but for the sky there are no fences facin’
And if you hear vague traces of skippin’ reels of rhyme
To your tambourine in time, it’s just a ragged clown behind
I wouldn’t pay it any mind, it’s just a shadow you’re
Seein’ that he’s chasing.
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you.
Then take me disappearin’ through the smoke rings of my mind
Down the foggy ruins of time, far past the frozen leaves
The haunted, frightened trees, out to the windy beach
Far from the twisted reach of crazy sorrow
Yes, to dance beneath the diamond sky with one hand waving free
Silhouetted by the sea, circled by the circus sands
With all memory and fate driven deep beneath the waves
Let me forget about today until tomorrow.
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
I’m not sleepy and there is no place I’m going to
Hey ! Mr Tambourine Man, play a song for me
In the jingle jangle morning I’ll come followin’ you.


“Like A Rolling Stone” (1965)

Once upon a time you dressed so fine
You threw the bums a dime in your prime, didn’t you ?
People’d call, say, “Beware doll, you’re bound to fall.”
You thought they were all kiddin’ you
You used to laugh about
Everybody that was hangin’ out
Now you don’t talk so loud
Now you don’t seem so proud
About having to be scrounging for your next meal.
How does it feel?
How does it feel
To be without a home
Like a complete unknown
Like a rolling stone ?
You’ve gone to the finest school all right, Miss Lonely
But you know you only used to get juiced in it
And nobody’s ever taught you how to live out on the street
And now you’re gonna have to get used to it
You said you’d never compromise
With the mystery tramp, but now you realize
He’s not selling any alibis
As you stare into the vacuum of his eyes
And say do you want to make a deal?
How does it feel?
How does it feel
To be on your own
With no direction home
A complete unknown
Like a rolling stone ?
You never turned around to see the frowns on the jugglers and the clowns
When they all come down and did tricks for you
You never understood that it ain’t no good
You shouldn’t let other people get your kicks for you
You used to ride on the chrome horse with your diplomat
Who carried on his shoulder a Siamese cat
Ain’t it hard when you discover that
He really wasn’t where it’s at
After he took from you everything he could steal.
How does it feel?
How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone ?
Princess on the steeple and all the pretty people
They’re all drinkin’, thinkin’ that they got it made
Exchanging all precious gifts
But you’d better take your diamond ring, you’d better pawn it babe
You used to be so amused
At Napoleon in rags and the language that he used
Go to him now, he calls you, you can’t refuse
When you ain’t got nothing, you got nothing to lose
You’re invisible now, you got no secrets to conceal.
How does it feel
How does it feel
To be on your own
With no direction home
Like a complete unknown
Like a rolling stone ?


“Just Like A Woman” (1966)

Nobody feels any pain
Tonight as I stand inside the rain
Ev’rybody knows
That Baby’s got new clothes
But lately I see her ribbons and her bows
Have fallen from her curls
She takes just like a woman, yes she does
She makes love just like a woman, yes she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl.
Queen Mary, she’s my friend
Yes, I believe I’ll go see her again
Nobody has to guess
That Baby can’t be blessed
Till she finally sees that she’s like all the rest
With her fog, her amphetamine and her pearls
She takes just like a woman, yes she does
She makes love just like a woman, yes she does
And she aches just like a woman
But she breaks just like a little girl.
It’s was raining from the first
And I was dying there of thirst
So I came in here
And your long-time curse hurts
But what’s worse
Is this pain in here
I can’t stay in here
Ain’t it clear that.
I just can’t fit
Yes, I believe it’s time for us to quit
When we meet again
Introduced as friends
Please don’t let on that you knew me when
I was hungry and it was your world
Ah, you fake just like a woman, yes you do
You make love just like a woman, yes you do
Then you ache just like a woman
But you break just like a little girl.


“Tangled Up In Blue” (1975)

Early one morning the sun was shining
I was laying in bed
Wond’ring if she’d changed it all
If her hair was still red
Her folks they said our lives together
Sure was gonna be rough
They never did like Mama’s homemade dress
Papa’s bankbook wasn’t big enough
And I was standing on the side of the road
Rain falling on my shoes
Heading out for the East Coast
Lord knows I’ve paid some dues getting through
Tangled up in blue.
She was married when we first met
Soon to be divorced
I helped her out of a jam I guess
But I used a little too much force
We drove that car as far as we could
Abandoned it out West
Split it up on a dark sad night
Both agreeing it was best
She turned around to look at me
As I was walking away
I heard her say over my shoulder
“We’ll meet again someday on the avenue”
Tangled up in blue.
I had a job in the great north woods
Working as a cook for a spell
But I never did like it all that much
And one day the ax just fell
So I drifted down to New Orleans
Where I happened to be employed
Working for a while on a fishing boat
Right outside of Delacroix
But all the while I was alone
The past was close behind
I seen a lot of women
But she never escaped my mind and I just grew
Tangled up in blue.
She was working in a topless place
And I stopped in for a beer
I just kept looking at her side of her face
In the spotlight so clear
And later on as the crowd thinned out
I was just about to do the same
She was standing there in back of my chair
Said to me “Don’t I know your name?”
I muttered something underneath my breath
She studied the lines on my face
I must admit I felt a little uneasy
When she bent down to tie the laces of my shoe
Tangled up in blue.
She lit a burner on the stove and offered me a pipe
“I thought you’d never say hello” she said
“You look like the silent type”
Then she opened up a book of poems
And handed it to me
Written by an Italian poet
From the fifteenth century
And every one of them words rang true
And glowed like burning coal
Pouring off of every page
Like it was written in my soul from me to you
Tangled up in blue
I lived with them on Montague Street
In a basement down the stairs
There was music in the café at night
And revolution in the air
Then he started into dealing with slaves
And something inside of him died
She had to sell everything she owned
And froze up inside
And when finally the bottom fell out
I became withdrawn
The only thing I knew how to do
Was to keep on keeping on like a bird that flew
Tangled up in blue.
So now I’m going back again
I got to get her somehow
All the people we used to know
They’re an illusion to me now
Some are mathematicians
Some are carpenter’s wives
Don’t know how it all got started
I don’t what they’re doing with their lives
But me I’m still on the road
Heading for another joint
We always did feel the same
We just saw it from a different point of view
Tangled up in Blue.


“Hurricane” (1976)

Pistols shots ring out in the barroom night
Enter Patty Valentine from the upper hall
She sees the bartender in a pool of blood
Cries out “My God they killed them all”
Here comes the story of the Hurricane
The man the authorities came to blame
For something that he never done
Put him in a prison cell but one time he could-a been
The champion of the world.
Three bodies lying there does Patty see
And another man named Bello moving around mysteriously
“I didn’t do it” he says and he throws up his hands
“I was only robbing the register I hope you understand
I saw them leaving” he says and he stops
“One of us had better call up the cops”
And so Patty calls the cops
And they arrive on the scene with their red lights flashing
In the hot New Jersey night.
Meanwhile far away in another part of town
Rubin Carter and a couple of friends are driving around
Number one contender for the middleweight crown
Had no idea what kinda shit was about to go down
When a cop pulled him over to the side of the road
Just like the time before and the time before that
In Patterson that’s just the way things go
If you’re black you might as well not shown up on the street
‘Less you wanna draw the heat.
Alfred Bello had a partner and he had a rap for the corps
Him and Arthur Dexter Bradley were just out prowling around
He said “I saw two men running out they looked like middleweights
They jumped into a white car with out-of-state plates”
And Miss Patty Valentine just nodded her head
Cop said “Wait a minute boys this one’s not dead”
So they took him to the infirmary
And though this man could hardly see
They told him that he could identify the guilty men.
Four in the morning and they haul Rubin in
Take him to the hospital and they bring him upstairs
The wounded man looks up through his one dying eye
Says “Wha’d you bring him in here for ? He ain’t the guy !”
Yes here comes the story of the Hurricane
The man the authorities came to blame
For something that he never done
Put in a prison cell but one time he could-a been
The champion of the world.
Four months later the ghettos are in flame
Rubin’s in South America fighting for his name
While Arthur Dexter Bradley’s still in the robbery game
And the cops are putting the screws to him looking for somebody to blame
“Remember that murder that happened in a bar ?”
“Remember you said you saw the getaway car?”
“You think you’d like to play ball with the law ?”
“Think it might-a been that fighter you saw running that night ?”
“Don’t forget that you are white”.
Arthur Dexter Bradley said “I’m really not sure”
Cops said “A boy like you could use a break
We got you for the motel job and we’re talking to your friend Bello
Now you don’t wanta have to go back to jail be a nice fellow
You’ll be doing society a favor
That sonofabitch is brave and getting braver
We want to put his ass in stir
We want to pin this triple murder on him
He ain’t no Gentleman Jim”.
Rubin could take a man out with just one punch
But he never did like to talk about it all that much
It’s my work he’d say and I do it for pay
And when it’s over I’d just as soon go on my way
Up to some paradise
Where the trout streams flow and the air is nice
And ride a horse along a trail
But then they took him to the jailhouse
Where they try to turn a man into a mouse.
All of Rubin’s cards were marked in advance
The trial was a pig-circus he never had a chance
The judge made Rubin’s witnesses drunkards from the slums
To the white folks who watched he was a revolutionary bum
And to the black folks he was just a crazy nigger
No one doubted that he pulled the trigger
And though they could not produce the gun
The DA said he was the one who did the deed
And the all-white jury agreed.
Rubin Carter was falsely tried
The crime was murder ‘one’ guess who testified
Bello and Bradley and they both baldly lied
And the newspapers they all went along for the ride
How can the life of such a man
Be in the palm of some fool’s hand ?
To see him obviously framed
Couldn’t help but make me feel ashamed to live in a land
Where justice is a game.
Now all the criminals in their coats and their ties
Are free to drink martinis and watch the sun rise
While Rubin sits like Buddha in a ten-foot cell
An innocent man in a living hell
That’s the story of the Hurricane
But it won’t be over till they clear his name
And give him back the time he’s done
Put him in a prison cell but one time he could-a been
The champion of the world.

“Shot Of Love” (1981)

I need a shot of love, I need a shot of love
Don’t need a shot of heroin to kill my disease
Don’t need a shot of turpentine, only bring me to my knees
Don’t need a shot of codeine to help me to repent
Don’t need a shot of whiskey, help me be president
I need a shot of love, I need a shot of love
Doctor, can you hear me? I need some Medicaid
I seen the kingdoms of the world and it’s makin’ me feel afraid
What I got ain’t painful, it’s just bound to kill me dead
Like the men that followed Jesus when they put a price upon His head
I need a shot of love, I need a shot of love
I don’t need no alibi when I’m spending time with you
I’ve heard all of them rumors and you have heard ‘em too
Don’t show me no picture show or give me no book to read
It don’t satisfy the hurt inside nor the habit that it feeds
I need a shot of love, I need a shot of love
Why would I want to take your life?
You’ve only murdered my father, raped his wife
Tattooed my babies with a poison pen
Mocked my God, humiliated my friends
I need a shot of love, I need a shot of love
Don’t wanna be with nobody tonight
Veronica not around nowhere, Mavis just ain’t right
There’s a man that hates me and he’s swift, smooth and near
Am I supposed to set back and wait until he’s here?
I need a shot of love, I need a shot of love
What makes the wind wanna blow tonight?
Don’t even feel like crossing the street and my car ain’t actin’ right
Called home, everybody seemed to have moved away
My conscience is beginning to bother me today
I need a shot of love, I need a shot of love
I need a shot of love, I need a shot of love
If you’re a doctor, I need a shot of love

“Ain’t Talkin’” (2006)

As I walked out tonight in the mystic garden
The wounded flowers were dangling from the vine
I was passing by yon cool crystal fountain
Someone hit me from behind
Ain’t talking, just walking
Through this weary world of woe
Heart burning, still yearning
No one on earth would ever know
They say prayer has the power to heal
So pray for me, mother
In the human heart an evil spirit can dwell
I am trying to love my neighbor and do good unto others
But oh, mother, things ain’t going well
Ain’t talking, just walking
I’ll burn that bridge before you can cross
Heart burning, still yearning
There’ll be no mercy for you once you’ve lost
Now I’m all worn down by weeping
My eyes are filled with tears, my lips are dry
If I catch my opponents ever sleeping
I’ll just slaughter them where they lie
Ain’t talking, just walking
Through the world mysterious and vague
Heart burning, still yearning
Walking through the cities of the plague.
Well, the whole world is filled with speculation
The whole wide world which people say is round
They will tear your mind away from contemplation
They will jump on your misfortune when you’re down
Ain’t talking, just walking
Eating hog eyed grease in a hog eyed town.
Heart burning, still yearning
Some day you’ll be glad to have me around.
They will crush you with wealth and power
Every waking moment you could crack
I’ll make the most of one last extra hour
I’ll revenge my father’s death then I’ll step back
Ain’t talking, just walking
Hand me down my walking cane.
Heart burning, still yearning
Got to get you out of my miserable brain.
All my loyal and my much-loved companions
They approve of me and share my code
I practice a faith that’s been long abandoned
Ain’t no altars on this long and lonesome road
Ain’t talking, just walking
My mule is sick, my horse is blind.
Heart burning, still yearning
Thinking about that girl I left behind.
Well, it’s bright in the heavens and the wheels are flying
Fame and honor never seem to fade
The fire gone out but the light is never dying
Who says I can’t get heavenly aid?
Ain’t talking, just walking
Carrying a dead man’s shield
Heart burning, still yearning
Walking with an ache in my heel
The suffering is unending
Every nook and cranny has its tears
I’m not playing, I’m not pretending
I’m not nursing any superfluous fears
Ain’t talking, just walking
Walking ever since the other night.
Heart burning, still yearning
Walking until I’m clean out of sight.
As I walked out in the mystic garden
On a hot summer day, a hot summer lawn
Excuse me, ma’am, I beg your pardon
There’s no one here, the gardener is gone
Ain’t talking, just walking
Up the road, around the bend.
Heart burning, still yearning
In the last outback at the world’s end.
http://observador.pt/2016/10/13/nao-pensem-duas-vezes-esta-tudo-bem-10-poemas-classicos-de-bob-dylan/










“Dylan está acima do Nobel”


O ensaísta António Feijó, professor de literatura inglesa e americana e vice-reitor da Universidade de Lisboa, vê na obra de Bob Dylan um dos exemplos maiores da criação artística das últimas décadas. Por sua vez Sérgio Godinho fala de uma distinção justa.


“Devo confessar que acho que o Dylan está acima do Nobel”, diz o vice-reitor da Universidade de Lisboa e especialista em literatura inglesa e americana, António Feijó, que vê na sua produção artística “uma das obras maiores das últimas décadas”.
Recordando que “há uma ligação entre poesia e música que é de sempre”, argumenta que o mais importante no caso de Dylan “nem é saber se ele é ou não um autor literário, que evidentemente é”, mas reconhecer que “a música popular nos últimos 50 ou 60 anos inclui “alguns nomes que vão ficar acima de quase todos os seus contemporâneos”, sem excluir escritores, artistas plásticos e outros criadores. Uma lista na qual Feijó inscreve, além de Dylan, John Lennon.
E uma vantagem fundamental de Dylan e Lennon face a poetas que se ficaram pela palavra impressa é que, argumenta, na poesia publicada, “o leitor tem de intuir a voz que fala”, uma tarefa que nem todos os leitores terão a capacidade e/ou a disponibilidade para desempenhar, ao passo que Dylan não só “pega num corpo de textos e música e aumenta tudo aquilo em direcções inesperadas”, como o faz com “uma autoridade” que se sente desde as suas primeiras gravações, e alcançando uma “expressão directa”, formulação de Teixeira de Pascoaes a que Feijó recorre para notar que o ouvinte “recebe aquela interpelação de um modo tão directo que não a pode evitar”.
Sublinhando ainda a longevidade da carreira do novo Nobel da Literatura, e afirmando que este tinha já atingido “a plena maturidade quando editou o seu segundo álbum [The Freewheelin' Bob Dylan, de 1963], aos 21 ou 22 anos, António Feijó já não concorda com os que admiram quase exclusivamente o músico dos sixties, defendendo a grandeza do Dylan dos últimos 15 ou 20 anos, autor de “uma obra-prima absoluta como Not dark yet, do álbum Time Out of Mind (1997), do qual o ensaísta destaca ainda a canção Blind Willie McTell. Mas o que faz com que Not dark yet “valha a obra completa de muita gente”, nota Feijó, “não é apenas o que está no papel, mas é também o Dylan ao piano, o Mark Knopfler com uma guitarra acústica, e o modo como aquilo é dito: é isso que põe Bob Dylan numa categoria à parte”.
Além de o admirar como escritor e compositor, Feijó acha ainda que Dylan “é um intérprete tão grande como Sinatra”. E embora tenda a concordar com o jornalista de música e crítico cultural Greil Marcus – “quando lhe perguntaram, há uns anos, se Dylan devia ganhar o Nobel, respondeu que faria mais jeito a um escritor, sugerindo que ele não precisava do prémio para nada” –, Feijó fica ainda assim “contente por ver esta pessoa de 75 anos, com uma obra tão gigantesca atrás de si, a receber a consagração final que merece”.










"Um prémio justo"

O cantor e compositor Sérgio Godinho foi surpreendido pela distinção, mas fala de "uma enorme satisfação" quando se refere ao Nobel entregue a Dylan. "É ao mesmo tempo o reconhecimento de uma arte e de um ofício que também é o meu, e essencialmente é uma distinção merecida porque o Dylan tem uma importância fulcral na música e na cultura americanas."
O que o distingue, diz ele, é a sua capacidade para se reinventar ao longo dos anos. "Ele começa pelas raízes folk puras – o seu ídolo é o Woody Guthrie – e quando faz o seu primeiro disco canta à sua maneira, com uma energia desvairada, uma série de canções de recolha e só duas da sua autoria. Só depois ele começa a operar com fulgurância com uma criatividade torrencial, entrando na canção social e política, mas fazendo hiatos, indo para outros terrenos, exprimindo uma série de emoções e de situações, cortejando o surrealismo ou a beat generation."
Quando pensa numa canção emblemática ocorre-lhe Like a rolling stone, "porque exprime a transformação dele e também a introdução dos instrumentos eléctricos, naquilo que na altura foi uma opção muito criticada." Na sua opinião é natural que surja agora alguma polémica à volta da atribuição - "a polémica pode ser positiva", diz - mas "a Academia reconhecer um género que nunca tinha sido premiado é um acontecimento que enalteço", reflecte. "É uma arte que junta duas artes: a palavra e a música, sendo o Dylan premiado pelo aspecto literário, embora não nos possamos abstrair que as canções congregam duas formas de expressão. É um prémio justo.”
De uma geração mais nova, o músico Samuel Úria, em declarações à Lusa, partilha com Godinho a “importância inacreditável” da atribuição do Nobel da Literatura a Dylan. "É como se tivesse ganho um familiar próximo”, afirmou. “É o maior escritor de canções, a maior figura da música popular, está num mundo à parte, tem uma importância increditável”, disse o músico de 37 anos que, tal como Godinho, diz reconhecer influência indirecta de Dylan nas músicas que escreve. “Conheço os poemas, as letras, a biografia, é uma coisa muito de fã, de facto” assume. “Ele consegue com uma grande mestria e originalidade sintetizar uma poesia eficaz e muito rica que sirva o formato da canção”.

“Começou no topo”


“É um prémio que faz todo o sentido para a gente da literatura e não creio que possa ser uma surpresa ou um escândalo, nem que tenha sido dado por critérios políticos”, diz João Menezes Ferreira, autor do livro Estro in Watts - A Poesia da Idade do Rock, antologia de 563 letras do universo pop/rock entre 1955 e 1980 dedicada à palavra cantada.
Bod Dylan, que tem nove letras na sua antologia, é também um escritor mais convencional – “e os livros de memórias dele são do ponto de vista literário bastantes relevantes” – mas “é obviamente a sua importância para a história da música e da literatura musical, das líricas ligadas com a música, que merece destaque”. Bob Dylan, ao contrário de Patti Smith ou de Leonard Cohen, torna-se escritor enquanto letrista. Ao contrário destes dois exemplos, não era um poeta consagrado antes de começar a escrever música. “Torna-se escritor por mérito enquanto escritor de canções.”












Aliás, a tese do seu livro publicado em 2013 “é que Bob Dylan é sob qualquer critério um grande poeta”. Dylan, diz, “é obviamente um escritor símbolo, neste caso de uma geração, e mais propriamente da geração jovem, que não tinha heróis com discurso. Por coincidência, os seus poemas dos anos 60 são os melhores, literariamente: começou no topo!”. Menezes Ferreira diz que era “absolutamente esfuziante” até à década de 70, tornando-se depois “mais plano”, mas ao autor também sempre lhe interessaram mais os anos de juventude e é aí que a sua antologia se centra.
As suas letras preferidas de Dylan são A Hard rain's gonna fall (1963), Ballad of a thin man (1965) e Sad eyed lady of the lowlands (1966). “Enquanto símbolo iconoclasta, a sua popularidade pela música rock vingou poetas geracionais anteriores, que não conseguiram sair da marginalidade, como a beat generation.”

Apostar nos 'nobelizáveis'


Francisco Vale, da Relógio D’Água, que editou em Portugal as Canções de Bob Dylan (numa tradução de Pedro Serrano e Angelina Barbosa), admira o músico norte-americano, elogiando a dimensão poética das letras das suas canções, mas também o modo como estas formam “uma espécie de narrativa, com personagens marcantes”. Ao que não atribui excessiva importância é ao próprio Nobel da Literatura, “um prémio confinado aos horizontes da Academia Sueca”. Vale argumenta que “se colocarmos num prato da balança os ‘nobelizados’ que ultrapassaram a usura do tempo e se mantêm hoje como autores importantes, e no outro os que nunca receberam o Nobel, como Proust, Nabokov, Virginia Woolf ou Jorge Luis Borges, acho que a balança se inclinaria a favor destes últimos”.
O que não o impede de reconhecer que “o Nobel é o principal prémio literário e chamou a atenção para muitos autores”. Mas já o surpreenderam um pouco as reacções mais negativas à escolha de Bob Dylan. “Há poetas e pessoas da música que acham que o prémio foi bem atribuído, outras que fizeram declarações paternalistas, como o Bruno Vieira de Almeida, que diz que o Dylan não merecia que lhe fizessem isto, e depois há os editores e autores que tinham outras expectativas, como a Alice Vieira” [num muito citado post no Facebook, a escritora exorta os galardoados anteriores a devolver o prémio], resume Francisco Vale, para quem já devíamos estar habituados às surpresas da Academia Sueca, que até teria feito escolhas mais desconcertantes “quando escolheu Churchill ou, agora, os textos jornalísticos de Svetlana Alexievich”.
O que lhe parece “uma estupidez” é “condicionar o catálogo, como alguns editores fazem, para incluir autores nobelizáveis”, porque para um autor ganhar o Nobel, ironiza, “além de ser mais ou menos conhecido, é preciso que tenha opiniões políticas, esteja preocupado com o futuro da humanidade, declare que apoia os oprimidos e as minorias e, se possível, deve ser perseguido no seu país ou, pelo menos, dizer que o é”. E mesmo assim, claro, não há garantias, de modo que lhe parece mais sensato publicar os autores de quem gosta, que às vezes até podem acabar por ganhar o prémio, como, no caso da Relógio D’Água, aconteceu já com Harold Pinter (2005), Alice Munro (2013), Patrick Modiano (2014) e, agora, Bob Dylan.
Mais grave ainda são os autores que “adaptam as suas obras para ver se recebem o prémio”, diz Francisco Vale, que garante conhecer alguns: “há escritores que no início da carreira tinham um humor corrosivo, e que depois condicionaram a sua escrita para caber nos moldes do Nobel”.

“Choca-me bastante”

Maria Alzira Seixo, professora de literatura da Faculdade de Letras de Lisboa, é uma das vozes que discorda da escolha de Bob Dylan. “Choca-me bastante.”, diz. “A poesia de Bob Dylan tem muita qualidade na sua relação com a música, a obra mescla o som da composição literária com o da musical, e quando [estes elementos] são separados, empobrecem-na”, argumenta a ensaísta, para quem “a Academia Sueca não seguiu o espírito de Alfred Nobel ao escolher uma obra compósita”.
“Acho interessante que este prémio vá ao encontro da Literatura Comparada – que encara vários tipo de expressão artística –, é uma via possível, mas só o apoiaria se não houvesse escritores, centrados no literário, que o merecessem, como Ngugi wa Thiong’o, António Lobo Antunes ou Philip Roth”, acrescenta Maria Alzira Sexio, que considera “escandaloso que a riquíssima literatura brasileira ainda não tenha sido contemplada.”



Bob Dylan e os limites da literatura


Por Gonçalo Mira, 2016-10-15.
https://medium.com/@goncalomira/bob-dylan-e-os-limites-da-literatura-5084f8450991#.nx8v58rzq





Pela primeira vez na história, desde que há redes sociais, quase toda a gente tinha uma opinião a dar sobre o vencedor do Prémio Nobel da Literatura. A discussão sobre a escolha de Bob Dylan não ficou circunscrita às pessoas do meio literário (e leitores mais atentos a estas coisas), foi alargada a gente do meio musical e a ouvintes refinados e a um sem fim de gente. Foi, também, o Nobel mais controverso de que me lembro. É verdade que houve já muitos a gerar discórdia — há sempre alguém que merecia mais do que o vencedor — mas desta vez estava em causa toda a legitimidade do prémio, a elegibilidade de Dylan e o conceito de Literatura.

Discutir se Dylan merece o prémio parece-me inócuo: há dezenas de autores vivos merecedores, centenas de autores que nunca o receberam e podiam ter recebido. Discutir se Dylan foi a escolha certa dentro da categoria letrista, é o mesmo que discutir se DeLillo merece mais que Roth: é uma questão de opinião, com suficientes especialistas dispostos a convencerem-nos para um ou outro lado. Que devia ter ganho Leonard Cohen ou Chico Buarque, que as letras de Dylan não são assim tão incríveis, que são banais, que são uma merda, tudo isso são opiniões. O único dado verdadeiramente interessante da discussão foi o da própria elegibilidade de Dylan: até que ponto é que ele pode receber um prémio de literatura.
A primeira definição do vocábulo “literatura” no Dicionário Priberam de Língua Portuguesa diz o seguinte: “Forma de expressão escrita que se considera ter mérito estético ou estilístico; arte literária.” Por sua vez, aInfopédia, da Porto Editora, dá como primeira definição de “literatura” o seguinte: “arte de compor obras em que a linguagem é usada esteticamente, procurando produzir emoções no receptor.” Esta última é mais lata, referindo-se apenas à “arte de compor obras”, enquanto que a primeira especifica que o termo se refere a “expressão escrita”. Em qualquer uma das duas, contudo, parece-me que a obra de Bob Dylan encaixa.
Sim, é verdade que a forma final da sua obra são canções, discos que ouvimos, onde as suas palavras vêm acompanhadas de música e as ouvimos em vez de as lermos. A génese, contudo, está na palavra escrita, é dos poemas que escreve que nasce a obra de Bob Dylan. Aliás, a música não é a única expressão artística que tem a palavra como ponto de partida para um objecto final diferente: acontece o mesmo com o cinema ou a banda desenhada, por exemplo.
Acredito convictamente que haverá um autor de BD a vencer o Nobel da Literatura num futuro próximo. Quanto aos argumentistas, tenho mais dúvidas, mas apenas porque o cinema é um trabalho com muito menos cunho pessoal, que tem por norma muito mais pessoas envolvidas. Ainda assim, não me espantaria que o Nobel fosse atribuído a um argumentista genial, cujos argumentos para filmes sejam absolutamente “seus”, com um forte cunho autoral, eventualmente alguém que seja ao mesmo tempo realizador e argumentista.
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Quando alguém argumenta que, se Dylan pode vencer o Nobel, também Quim Barreiros pode, não está a revelar mais do que provincianismo bacoco. É o mesmo que dizer que se Doris Lessing pode vencer, então Margarida Rebelo Pinto também pode; se Gabriel García Márquez pode, então José Rodrigues dos Santos também. A irritação gerada em algumas pessoas por um músico ter vencido o Nobel cegou grande parte dos argumentos, um pouco como aconteceu a Inês Pedrosa, quando se insurgiu contra o Nobel a Alice Munro — uma mera contista — havendo tantas escritoras portuguesas melhores do que a canadiana. É o tipo de argumento que merece pouco ou nenhum crédito.
Um amigo meu escreveu no Facebook que ficava a aguardar o Prémio Camões para Fausto Bordalo Dias. É difícil destrinçar, entre o muito que foi escrito e dito, o que é que é humor apenas, o que é que é crítica disfarçada de piada, o que é que é somente chalaça incendiária. No caso de Fausto, acredito que tal prémio seria absolutamente justo e merecido. A sua obra ocupa um patamar maior na poesia portuguesa contemporânea e há muito poucos — se é que algum — poetas que superem este músico e letrista na pujança da escrita, na reinvenção da palavra escrita enquanto objecto poético.
Talvez olhar para Portugal, porque as reacções iradas que fui lendo ao Nobel de Dylan são maioritariamente de portugueses, ajudasse algumas dessas pessoas a perceberem o preconceito. Acredito que houvesse poucas dessas pessoas que não considerassem as letras de Fausto, José Mário Branco, Zeca Afonso ou Sérgio Godinho alguma da melhor poesia que se fez em Portugal desde o último terço do século XX até aos dias de hoje. Quem disser que os poemas escritos por estes quatro cantautores não sobrevivem sem música é alguém que gosta pouco de poesia. Claro que há sempre alguns desses poemas que reagem melhor ao serem despidos da música, como há outros que até podem brilhar mais quando são apenas lidos, mas a sua qualidade literária parece-me inegável. Tal como a da poesia de Bob Dylan, Leonard Cohen, Joni Mitchell, etc.
Cohen — aquele que mais vezes vi referido enquanto melhor escolha, se era para dar a um músico — afirmou mesmo que o Nobel a Bob Dylan foi “como dar uma medalha ao monte Evereste por ser a montanha mais alta.” Leonard Cohen, aliás, foi galardoado em 2011 com o Prémio Literário Príncipe das Astúrias, que em anos anteriores tinha sido atribuído a autores como Margaret Atwood, Amos Oz ou Günter Grass. E antes que venham dizer-me que Leonard Cohen também escreveu romances, permitam-me citar a justificação dada na altura do anúncio do vencedor: “Considered one of the most influential authors of our time, his poems and songs have beautifully explored the major issues of humanity in great depth. The passing of time, sentimental relationships, the mystical traditions of the East and the West and life sung as an unending ballad make up a body of work associated with certain moments of decisive change at the end of the 20th and beginning of the 21st century.” Onde é que estava a indignação quando Leonard Cohen ganhou um prémio literário pela sua música?
Nesse mesmo ano, Bob Dylan foi anunciado como finalista do Prémio Literário Neustadt, um prémio muitas vezes referido como bom indicador para o Nobel, por ter na sua lista de vencedores vários autores que viriam a ganhar depois o Nobel, como Gabriel García Márquez, Czeslaw Milosz, Tomas Tranströmer e Octavio Paz. Aqueles que clamam que a Academia Sueca, responsável pela atribuição do Nobel, revolucionou o conceito de prémio literário e de literatura em geral com a escolha de Bob Dylan, estiveram certamente a dormir em 2011, quando Cohen venceu um prémio e Dylan foi finalista de outro. Ambos, diga-se, dois dos prémios literários mais importantes do mundo.
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Num fascinante artigo do New York Times, podemos dar um pequeno relance ao imenso arquivo de Bob Dylan. Há uma imensidão de pequenos cadernos e folhas de hotéis, repletos de versões dos poemas, com emendas e correcções abundantes, numa busca constante pela melhor forma possível. Tem exactamente o mesmo aspecto que os arquivos de poetas que conhecemos. Nem sequer (pelo menos nas várias imagens mostradas nesse artigo) há indicações musicais. Quem olhasse para as imagens sem saber de quem eram, em nenhum momento desconfiaria tratar-se de um músico em vez de um poeta. Não que isto sirva para justificar nada, atenção: a forma ou o método utilizado por Dylan não é necessário para tornar a sua obra maior. Apresento-o apenas como mais um dado curioso, que pode reforçar o seu estatuto enquanto poeta tout-court.







Na discussão mais prolongada que tive sobre o assunto Dylan Nobel, com um editor, o argumento principal por ele utilizado era a tipologia, a forma. Na sua óptica, Pedro Chagas Freitas é literatura, mas as letras de Bob Dylan ou Leonard Cohen não, são apenas música. Ainda segundo ele, se Dylan pode vencer, até também alguém que use técnicas de graffiti para escrever frases nas paredes pode vencer.
O teatro foi rapidamente afastado da discussão porque, disse outra pessoa, a literatura dramática “não tem de ser encenada”, nem é escrita com esse propósito. Mas quantas pessoas lêem teatro, quando comparadas com as pessoas que vêem teatro? Não são os dramaturgos que venceram o Nobel constantemente encenados por todo o mundo, e as suas peças muito mais vistas do que lidas? Este mesmo editor que descredibilizou as letras de canções, garantiu-me não haver qualquer problema com o prémio ser atribuído a um autor de BD, porque “a BD é um género literário”. Curiosamente, um fã de BD no Twitter disse-me o contrário: “BD não é literatura.” É sempre interessante ver os especialistas em acordo.
Se a BD é um género narrativo, como disse o editor (erradamente, porque a BD não tem de ser narrativa), e pode ser apreendida pela sua qualidade literária, apesar das imagens, então parece-me inegável que as letras de canções, quando são boas (um critério subjectivo, que é o mesmo que distingue livros bons de maus), também têm de poder ser tidas como literatura. As de Bob Dylan e Leonard Cohen, por exemplo, são muitas vezes narrativas, mais narrativas que algumas bandas-desenhadas que já li.
Depois, falou de publicidade, que alguém que escreva publicidade também seria eligível. E eu acredito que sim, mas teria de ser alguém com um trabalho absolutamente excepcional, que pudesse extrapolar-se para o nível da literatura. Do mesmo modo que a obra de Dylan e Cohen é tão excepcional que se extrapola para os domínios da literatura (e, como disse anteriormente, isso aconteceu pelo menos 5 anos antes deste Nobel). O pior argumento que este editor me deu, e uso-o aqui apenas porque me dá jeito mostrar o tipo de ideias que baralhou na sua raiva anti-Nobel-ao-Dylan, foi que um escritor não pode receber um Óscar quando adaptam um livro seu. Bom, se houve alguém que escreveu um guião a partir de um livro, claro que o escritor não recebe um prémio por isso. A obra de Dylan é sua, não é uma adaptação de nada.
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Os limites do que é a literatura tornaram-se, subitamente, um tema maior, mas não deixa de ser curioso que as pessoas mais revoltadas (aquelas que iam além das piadas que camuflam as verdadeiras opiniões) eram as pessoas do meio literário: escritores, editores, críticos. De repente, a literatura voltava a ser sagrada, intocável. Existe em formato livro ou nada feito, foi concebida para ser lida ou nada feito. A mim faz-me muito pouco sentido dizer que os romances Harlequin, os Dan Brown e José Rodrigues dos Santos, as E. L. James e as Margarida Rebelo Pinto são mais literatura do que Bob Dylan. Têm mais valor literário? Ficariam melhor numa aula de literatura na Faculdade de Letras?

Veja-se a série de televisão The Wire. É menos literária que algum destes maus exemplos que citei? Não! Tal como não são menos literários os filmes escritos por Charlie Kaufman. A ideia de literatura enquanto produção escrita não implica o formato livro, nem sequer o produto final para ser lido em vez de visto ou ouvido. Quem alinhar pela opinião contrária, terá de defender o que disse, que os romances Harlequin são mais literatura do que Bob Dylan. Se alguém está disposto a defender isso, não tenho como argumentar. São opiniões distintas do que é a literatura. Eu, enquanto pessoa que não tem particular apreço por definir barreiras, mantenho a minha opinião. O facto de a Academia Sueca, o Prémio Neustadt e o Prémio Príncipe das Astúrias estarem do meu lado é agradável: estou mais habituado a que as minhas posições progressistas sejam contrariadas pelas grandes instituições.

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Christopher Ricks on why Bob Dylan is "the greatest living user of the English language"






Christopher Ricks is a British literary critic and scholar who currently teaches at Boston University. (Photo: http://arneisquartet.com/christopher-ricks-lecture/)

On Oct. 13, 2016, Bob Dylan was awarded the Nobel Prize for Literature. He is the first musician to receive the honour, and the announcement came as a surprise to many, but Dylan's lyrics have been celebrated by literary scholars for decades. In 2005, Eleanor Wachtel spoke with Christopher Ricks, a professor at Boston University and the author of Dylan's Vision of Sin. In the interview, Ricks explains why he regards Dylan as "the greatest living user of the English language," and compares him to such authors as Tennyson, Milton, Wordsworth, Eliot, and — as he puts it — "that Dylanesque writer, William Shakespeare."
Christopher Ricks has written groundbreaking work on Milton, Keats, Seamus Heaney and Philip Larkin. He was described by W.H. Auden described Christopher Ricks as "the kind of critic every poet dreams of finding." Ricks first wrote about Bob Dylan more than 40 years ago, in 1972.
What makes Bob Dylan a genius
Dylan has a purpose. There's an extraordinarily powerful sense of mission in him. The generosity of him, in what he gives in the creation of these songs and the performance of these songs, the range and variety of what he has undertaken, the extraordinary balance and reconciliation of opposite or discordant qualities — that's what Coleridge says imagination is: a more than usual state of order, with more than usual excitement. And he goes through a whole series of things that would be very, very hard to bring together in the ordinary way. It's genius to be able to put these things together in balance and reconcile them.
On hearing Dylan for the first time
As many people had before and have since, I heard an extraordinary new version, an enduring version, of what Eliot captures in The Waste Land or what Pope, in the 18th century, had captured in The Dunciad: a whole vision of a civilization falling apart. It's surrealist art. Like a lot of the greatest art, it loves combining exact draftsmanship with the amazing or the impossible to visualize. It begins always with something that is simply the case. As so often with good surrealism, you have something that is in touch with a very faithful, down-to-earth and well-observed [reality], and then sees it under an extraordinary aspect.
Why "The Lonesome Death of Hattie Carroll" is a perfect song
I think it's the relation of its delicacy of feeling to the terrible brutality and indelicacy of what happened. It never mentions that Hattie Carroll is black, it just knows you will know that and it hopes you will think about the implications of your knowing that. The way in which it's come up with a cadence that's given to him purely coincidentally by the names — Hattie Carroll's first and her second name both have unstressed final syllables. The man who killed her, William Zantzinger, has that same pattern. It's a newspaper item that gives him a cadence and a rhythm. There's an extraordinary playing of one thing against another, of black against white, of young against old, of man against woman, of rich against poor, and — simply technically — of one kind of way ending a line against another ending a line. The amplitude of the song, the scale and depth of the song are really extraordinary.
Christopher Rick's comments have been edited and condensed.
http://www.cbc.ca/radio/writersandcompany/christopher-ricks-on-why-bob-dylan-is-the-greatest-living-user-of-the-english-language-1.3803292



“A revolução não foi feita pela Academia sueca mas por Dylan”

Robert F. Thomas é professor de Literatura Clássica em Harvard e criou um seminário onde ensina Bob Dylan integrando-o na tradição de Virgílio ou Ovídio. A argumentação para convencer os seus pares teve de ser tão boa ou melhor do que a da Academia sueca ao nomear o músico Nobel da Literatura.


O Dylan do início de The Times They Are A-Changin’ (1964) ou Bringing It All Back Home (1965) é diferente do de meados de 70 com Blood on the Tracks (1975), mas é outro o que surgiu depois de 2001. São esses os três períodos em que Robert F. Thomas divide o seminário FOTO: FIONA ADAMS/REDFERNS



"O fenómeno Bob Dylan requer uma palavra nova para o designar, e a melhor que agora temos é literatura." Robert F. Thomas está no seu pequeno gabinete no segundo piso de Boylston Hall, Harvard. Da janela estreita não se avistam as árvores em vários tons de verde e vermelho que cobrem o jardim do campus, onde ao sol de meio da tarde de Outono as sombras dos ramos se confundem com os vultos dos alunos que passam de headphones nos ouvidos, mochila às costas ou lêem nas cadeiras espalhadas pelo relvado coberto de folhas. À sala de Robert F. Thomas chega pouca luz. Há uma secretária, uma estante, duas cadeiras e poucas imagens nas paredes, quase todas da mesma pessoa: Bob Dylan, o agora 113º Nobel da Literatura em várias fases da sua carreira. O rapaz de guitarra e cigarro na boca de meados da década de 60, o rosto meio andrógino na capa do álbum Hard Rain, de 1976, uma pintura que recria parte da face marcada do artista no início do século XXI.


“Há melhores guitarristas, há melhores intérpretes, até melhores poetas se nos limitarmos à poesia, mas não ha ninguém melhor do que Bob Dylan a fazer a síntese de tudo isto”, afirma este neozelandês nascido em Inglaterra, professor catedrático de Literatura Clássica, especialista em Virgílio e nas civilizações da Grécia e Roma antigas, que em 2004 começou a ensinar Dylan em na Universidade de Harvard, incluindo-o na tradição do autor de Eneida, mas também na de Homero ou Ovídio. "Dylan é um poeta e a canção faz parte da sua poesia", acrescenta, afirmando ainda que a decisão de dar o Nobel da Literatura ao criador de Lonesome Day Blues é o sinal de que a Academia Sueca "compreendeu o fenómeno Dylan" e está disposta a abrir a discussão sobre o que é literatura.
“A literatura é só o romance, o poema épico ou lírico, a peça de teatro?”, questiona. Continua: “Veja-se então a peça de teatro; o dramaturgo produz palavras que é suposto serem ditas por um actor, num contexto que não apenas o do papel. Quem critica o facto de Dylan ser Nobel da Literatura manifesta uma inabilidade para compreender o que Dylan faz”, afirma o professor de Harvard que passa a concretizar: “A prosa de Dylan é maravilhosa. O primeiro volume da sua autobiografia [Crónicas, Ulisseia, 2005] é um exemplo disso. E depois há as palavras nas páginas para as quais ele cria melodias que interagem com essas palavras de modo assombroso. E a sua voz tem uma participação importante em tudo isso. Ele é um bardo na tradição clássica. São as palavras, a música e a voz. E se não se chama a isso literatura, ou se não é permitido chamar a isso literatura, o que se vai então chamar?” 

A identidade clássica

A justificação oficial do júri Nobel não difere da opinião escrita por Robert F. Thomas, antes do dia 13 de Outubro — o dia do anúncio —, no ensaio The Streets of Rome: The Classical Dylan (Harvard, 2007). Para a academia Sueca, Dylan é o Nobel de 2016 “por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana”. Para Robert Thomas é, no entanto, mais do que isso. “Dylan tem vestido a essência americana de meados do século XIX e início do século XX”, referindo-se dessa forma à tradição folk em que o músico se insere e foi capaz de actualizar, “ressuscitando” com as suas canções esse universo e imaginário que constituem a identidade de um povo. Mas foi mais longe no tempo, recuando a uma antiguidade que está na génese também da cultura ocidental. “E foi genial nisso”, sintetiza. 



FOTO: MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES





As aulas do seminário de Robert F. Thomas sobre Dylan querem assim mostrar a identidade clássica do poeta, compositor e intérprete e nisso são também um desafio ao convencional. Doze rapazes e raparigas — o limite máximo de cada curso — juntam-se para ouvir música e falar dela enquanto bebem um café ou comem uma fatia de pizza. Tudo é informal de modo a que o ambiente gere uma discussão “descomplexada” à volta da letra de uma canção. O papel de Thomas é o de um mediador discreto, aquele que fornece o guião do seminário que arrancou no dia 8 de Setembro com a exibição do filme I’m Not There, de Todd Haynes (2007), segue a cronologia da carreira do músico e que determinou, por exemplo, que no dia 27 de Outubro o tema fosse “canções de amor e ódio” a partir dos álbuns Blood on the TracksThe Bootleg Series Vol. 1-3 Biograph. “A arte de Bob Dylan questiona as definições da literatura. Hoje ninguém tem dúvidas em dizer que Safo é literatura, mas Safo era uma cantora, só que não temos acesso à sua música. Então, se lhe retirarmos a música ela é literatura. Mas no seu contexto temporal, além de ser literária, era também musical”. O cepticismo face à ideia de um Dylan literário, seja por quem discorda da decisão da Academia Sueca, como da parte dos seus pares em Harvard quando demoraram a entender a sua proposta de pôr Dylan como tema de estudo numa das universidades mais cotadas do mundo, explica-se, segundo o professor, pela dificuldade em olhar Dylan como mais do que um autor de canções de protesto dos anos 60. “Podem-se ouvir todas as canções de Dylan e elas continuam a soar modernas. Houve pessoas no meu departamento que apoiaram a ideia e ela avançou. Mas há sempre quem não olhe Dylan como um fenómeno único.” 
Único porque? Robert F. Thomas abre o computador portátil e procura a cópia da proposta que apresentou ao comité de Harvard em 2004. Óculos na ponta do nariz, lê num sotaque ainda muito britânico que se propôs leccionar Dylan “enquanto fenómeno musical, literário e cultural duradouro e contínuo no contexto da cultura popular e literária nos últimos 55 anos” integrado numa tradição literária e musical antiga que lhe serve de base o que, segundo o documento que apresentou, se manifesta nas letras mais recentes, indo até Homero, Virgílio e incluindo todo o cânone literário ocidental. No seu seminário, traça ainda a evolução das canções e letras de Dylan, desde o folk, blues, rock e gospel, indo às raízes da música de protesto “até à transição do acústico para o electrónico, tanto em estúdio como em actuações ao vivo”, e através das “muitas evoluções e reinvenções que têm caracterizado e continuam a caracterizar” a carreira de Dylan “na música, na literatura e na pintura”. Thomas lê a argumentação e retoma uma postura menos formal quando reafirma: “Estamos perante um artista único, o tal que desafia fronteiras de géneros.”

Antes e depois de 11 de Setembro

O curso abriu em 2004. Foi o primeiro sobre Dylan numa universidade americana. “Entretanto sei que abriram mais uns quantos”, nota, e suspeita que a partir de agora sejam mais ainda. Diz isto com a satisfação de quem vê legitimidada uma ideia que foi vista como uma provocação. Isso não o incomoda. “É sempre a questão: o que é a literatura? Que se pense nisso.”


Nove anos mais novo do que Bob Dylan, Robert F. Thomas começou a ouvir músicas do rapaz do Minnesota no início da adolescência, quando ainda vivia na Nova Zelândia. Tinha 12, 13 anos, “as coisas chegavam lá com algum atraso”, comenta, enquanto refere Blowing in the Wind e todo o simbolismo que a música teve numa época marcada pela luta pelos direitos humanos. E foi ouvindo sempre, como “um grande prazer” até 2001. Justamente no dia 11 de Setembro desse ano era apresentado o 31º álbum do músico, Love and Theft. Robert F. Thomas ouviu, mas só quatro anos mais tarde, em 2005, quando soube que Dylan fora aluno de Latim no liceu de Hibbing, a sua cidade no norte do Minnesota, olhou numa perspectiva académica para as letras das canções que sabia de cor. Sobretudo as mais recentes. “Foi então evidente que Virgilio estava em Lonesome day Blues”, refere apontando esse como o momento de viragem no modo como passou a lidar com a arte de Dylan. Cita parte da letra da canção: "I’m gonna spare the defeated, I’m gonna speak to the crowd / I’m gonna spare the defeated, boys, I’m going to speak to the crowd / I am goin’ to teach peace to the conquered / I’m gonna tame the proud…”, confrontando-a com alguns versos da Eneida na tradução para inglês de Allan Mandelbaum (1973): "But yours will be the rulership of nations, / remember Roman, these will be your arts: / to teach the ways of peace to those you conquer, / to spare defeated peoples, tame the proud…”
O Dylan do início dos anos 60, de álbuns como The Times They Are A-Changin’ (1964) ou Bringing It All Back Home (1965) é diferente do de meados de 70 com Blood on the Tracks (1975), mas é outro o que surgiu depois de 2001. São justamente esses os três períodos em que Robert F. Thomas divide o seminário, e depois da explosão inicial é nos últimos 15 anos que Dylan, segundo Thomas, faz a sua síntese ou recriação dos clássicos. “Ele sempre foi um grande leitor e eclético, capaz de ao ler um texto ver a poesia e transferir essa leitura, essa reinterpretação, para uma canção”, comenta antes de dar novos exemplos de intertextualidade em Dylan. Agora é a vez de Ovídio, outro canónico da literatura latina, e da sua Arte de Amar, escrito depois do poeta da Roma antiga ter sido condenado ao exílio pelo imperador Augusto por razões que nunca ficaram esclarecidas, presente em Thunder of The Mountain, do álbum Modern Times (2006). Diz Thomas: “É uma canção de arrependimento e de remorso, o cantor dirige-se a uma mulher, as coisas estão a correr mal, e o que no verso de Ovidio era dito a um imperador, torna-se verso para uma amante: 'I’ve been sittin’ down studyin’ the art of love / I think it will fit me like a glove'”. 
O poder, o fim do império, a passagem do tempo, a mortalidade, a salvação e a sabedoria são temas de um Dylan mais recente e, para Robert Thomas, a prova desse namoro com os clássicos. Ouvi-lo citar exemplos, cruzando as letras de canções do músico americano, com excertos de Virgílio, Ovídio, mas também de Homero ou ainda mais próximos no tempo, de Mark Twain ou do japonês Junichi Saga, autor do romance sobre o fim do império japonês Confessions of a Yakuza (1991, não editado em português) é um exercício que requer tanto de atenção quanto de sentido melódico. O modo como as rimas se cruzam e a linguagem é trabalhada de modo a ganhar, subverter ou roubar sentidos é um jogo que diverte o professor de Harvard, como se com ele estivesse a revelar toda a originalidade e a provar que Dylan é um poeta que se insere numa longa tradição e o acaso não tem nada a ver com o que faz. Só mais uns exemplos anotados por Robert F. Thomas.



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Bob Dylan, em Ain’t Talkin’: “Heart burnin’, still yearnin’ In the last outback, at the world’s In the last outback at the world’s end”
Ovídio, Black Sea Letters: “In the last outback, at the world’s In the last outback at the world’s end”
Bob Dylan, Lonesome Day Blues“My sister, she ran off and got married / Never was heard of any more"
Mark Twain, Huckleberry Finn “. . . and my sister Mary Ann run off and got married and never was heard of no more . . ."
Robert F. Thomas cita em inglês poetas da Antiguidade Clássica, traduzidos, fora do texto original. Foi assim que ele e Dylan os leram e é em inglês que eles ganham nova vida, novo sentido; no inglês de Dylan que os canta. É pela sua voz, antes da palavra escrita, que eles se dão a conhecer. Ou seja, no princípio da poesia de Dylan há uma voz em inglês, apesar de depois estes poemas estarem traduzidos em muitas línguas (em português por Pedro Serrano e Angelina Barbosa numa edição da Relógio d’Água em dois volumes Canções: 1962-2001.) “A tradução é sempre outra experiência literária”, afirma Thomas. A da poesia noutra língua que não a original, e a poesia que de ler no papel se conheceu cantada no original. “Sim, em inglês e com melodia”, precisa. Surge então a pergunta: consegue ler um poema de Dylan sem pensar na melodia? Abana a cabeça uma negação. “Não sou capaz de não ouvir a melodia. Ouço-a sempre. Há rimas que nos levam e não consigo desligar-me, nem da melodia nem da entoação.” Faz uma pausa. “O que está aqui em causa é a singularidade do conjunto”, continua, como quem diz depois que não é a só a poesia, nem a música, nem a voz, mas a possibilidade também de ler esses poetas que escreveram noutras línguas que não aquelas em que são lidos através do modo como Dylan se apropriou deles. E sublinha o verbo “apropriar” como parte da tradição literária mais nobre numa cadeia ou corrente imparável, como parte da intertextualidade. Chama-lhe “diálogo com outros textos” e está no ADN latino e grego. Faz nova pausa e fala em Suzanne, o poema de Leonard Cohen publicado em 1966 e cantado por quase toda a gente. Mas antes de ser canção foi poema, embora quase ninguém tenha memória dele sem a melodia. Cohen não seria o primeiro a gravá-lo, mas sim Juddy Collins ainda em 1966. 


Leonard Cohen não surge na conversa por acaso. Quando se anunciou que Dylan ganhara o Nobel muitos perguntaram “e porque não Cohen?” Robert F. Thomas fez essa pergunta a si mesmo quando soube da notícia e tem a resposta pronta. “Sim, Dylan não é o único. Faz-se muito a comparação entre ele e Cohen, mas acho que são diferentes. Cohen é um poeta antes de tudo e Dylan não é um poeta na sua essência. Suzanneexistiu enquanto poema sem música. Cohen tem 82 anos, é sete anos mais velho do que Dylan, mas o seu primeiro álbum é de 1967, já Dylan tinha uma carreira brilhante e tinha saído da estrada. Será que sem Dylan poderíamos ter tido Cohen? Não tenho a certeza”. Dylan aprendeu com poetas, terá aprendido também com Cohen”, salienta. “Na poesia de Cohen há intimidade como há na Dylan, partilham uma mesma complexidade, mas Dylan tem mais qualquer coisa e tem a tal tradição do cancioneiro e do imaginário americano, literário, musical…” E estende a pergunta mais uma vez sobre a legitimidade do Nobel: e os Beatles e Bruce Sprinsgteen? "Todos são de qualidade inegável, abrem caminhos, mas já se percebeu que a minha primeira escolha seria Dylan”, ri, e resume toda a polémica e interrogações provocadas pela atribuição do Nobel numa frase: “A revolução não foi feita pela Academia Sueca mas por Dylan. A academia reconheceu isso.”
Sem parar de nomear canções e versões, cantadas pelos Beatles ou Jimmy Hendrix e referindo que Dylan é em si mesmo uma personagem com muitas e em cada fase da vida compõe em função daquela que quer levar a palco ou que está em palco. “Ele é um performer. De Dylan pouco sabemos além das letras das suas músicas e do que ele vai dizendo em entrevistas sempre muito mediadas, em que surge muito cauteloso, reservado”. Por isso não estranha o silêncio do músico após o anúncio do Nobel. A conversa aconteceu dois antes de Bob Dylan dizer que se pudesse iria a Oslo no dia 10 de Dezembro para a cerimónia de entrega do prémio. “Se conseguir bilhete também vou”, diz Robert F. Thomas que nunca conheceu Dylan, mas sabe que Dylan conhece o seu seminário. “Uma vez almocei com o agente dele em Nova Iorque e costumamos trocar emails”, conta. E quando a conversa tinha de acabar porque havia uma aula, lembra um gesto de Dylan no concerto que deu em Las Vegas a 13 de Outubro, o dia do anúncio do Nobel. “Antes de tocar Simple Twist of Fate [do álbum Blood on the Tracks, 1975], ele pegou na guitarra eléctrica, algo que não fazia há tempo. Os mais atentos acharam que foi um sinal de reconhecimento. Foi o mais perto que ele esteve de falar do Nobel.” 



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