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terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Sexo e transformação


Inana/Ištar e Dumuzid/Tâmuz, em detalhe de cerâmica suméria

GILGÁMESH

[171] Um dia, um segundo dia no açude sentados ficaram;
          Chegou o rebanho, bebeu no açude,
[173] Chegam os animais, a água lhes alegra o coração,
          E também ele: Enkídu! Seu berço são os montes!*
[175] Com as gazelas ele come grama,
          Com o rebanho aperta-se na cacimba,
[177] Com os animais a água lhe alegra o coração.
          E viu-o Shámhat, ao homem primevo,*
          mancebo feroz do meio da estepe.*
[180] Este é ele, Shámhat! Oferece os seios!*
          Abre teu púbis e que ele toque teu sexo!
[182] Não tenhas medo, toma seu alento!
          Ele te verá e chegará junto de ti:
[184] A roupa estende, deixa-o deitar-se sobre ti,
          E faz com esse primitivo o que faz uma mulher:
[186] Seu desejo se excitará por ti,*
          Estranhá-lo-á seu rebanho, ao que cresceu com ele.
[188] Abandonou Shámhat os vestidos,
          Abriu seu púbis e ele tocou seu sexo,
[190] Não teve ela medo, tomou seu alento,
          A roupa estendeu, deixou-o deitar-se sobre si,
[192] Fez com esse primitivo o que faz uma mulher


Tannhäuser


SEXO E TRANSFORMAÇÃO
A ideia de que o acto sexual transforma profundamente quem o experiencia é tão antiga quanto os primeiros textos sumérios em tabuinhas de barro cozido (muito mais antigos do que a Ilíada grega). O episódio inicial da epopeia Gilgámesh fala-nos do bom selvagem Enkídu, que viveu toda a primeira fase da sua vida no meio dos animais, aceite por eles como um deles, pastando erva com as gazelas. Seduzido por uma cortesã, com quem Enkídu tem relações sexuais durante seis dias e seis noites (sem nunca perder a erecção: o texto é explícito em relação a este tour-de-force erótico), o recém habilitado atleta do sexo quer depois voltar para a sua vida anterior; mas os animais, pressentindo que ele já não é o mesmo, rejeitam o seu convívio. Nenhuma gazela aceita agora pastar erva com ele.
O comportamento destas puritanas gazelas da Suméria lembra o dos unicórnios no imaginário medieval, que só aceitam o convívio de virgens. Análoga, à sua maneira, é a situação descrita na ópera medievalizante “Tannhäuser” de Richard Wagner. O cantor-poeta epónimo, depois de ter tido a experiência de todos os deleites do sexo na residência de Vénus (o Venusberg), sente-se depois deslocado na Wartburg (castelo na Turíngia, onde Lutero traduziu a Bíblia), veneradora da virgindade.
Quando abre o pano no início desta ópera, Tannhäuser já se encontra no Venusberg: nós, espectadores, chegamos tarde demais para conhecermos o herói na sua fase pré-sexual. A fase em que o conhecemos é, digamos assim, pós-sexual: o excesso de sexo, a permissibilidade da sua abundância sem freio, já levou a que seja impossível sentir algum prazer; o cantor-poeta, farto de sexo, já só sonha com a vida de castidade que deixou para trás.
No entanto, regressado ao mundo dos castos, Tannhäuser tem de reconhecer que já não se sente bem naquele meio. O elogio do amor cortês, em que a dama é venerada como uma espécie de Virgem Maria, leva-o a ripostar com o elogio do prazer carnal, o que deixa em estado de indignação assassina a casta assistência. Indignação “assassina” não é exagero: os colegas-poetas, reagindo com mais violência do que as gazelas da Suméria (que se tinham apenas recusado a pastar com o devasso Enkídu), querem mesmo matar Tannhäuser por ele ter experimentado o sexo enquanto prazer. O castigo extremo não é cumprido, mas será com a morte por exaustão, no final do 3º acto, que Tannhäuser terá de pagar a mudança de personalidade que a experiência do sexo ocasionou.
O pós-sexo deixa-nos por vezes felizes, por vezes melancólicos (os “post-coital blues”); muitas vezes vulneráveis devido ao gasto de combustível emocional que o acto exige. Por isso nenhum futebolista sai directo do leito de amor para o relvado, tal como os antigos gladiadores não saíam do lupanar para a arena.
A vulnerabilidade causada pelo sexo pode ser fatal. Os cinéfilos nunca esquecerão os SA, exaustos das suas orgias homoeróticas, a serem chacinados pelos SS no filme “Os Malditos” de Luchino Visconti. Esta sequência do filme, impressionante, lembrará inevitavelmente aos helenistas-cinéfilos que o tema da vulnerabilidade causada pelo sexo é, afinal, bem grego: o caçador Adónis, apesar de perito no trato com animais selvagens, é morto por um javali por ter ido à caça saído do leito da deusa Afrodite. 
O mito de Adónis expressa ainda a ideia de que, por causa do sexo, o homem heterossexual torna-se menos homem: como se o contacto íntimo com a mulher o desvirilizasse.
Esta ideia está implícita na Odisseia homérica, quando o deus Hermes dá a Ulisses uma planta mágica para impedir que a deusa Circe, depois de desfrutar da proeza sexual do herói, lhe tire (nas palavras de Hermes) “coragem e virilidade quando estiveres nu”. A planta mágica garante, pois, que Ulisses possa passar pela experiência do sexo com Circe sem que essa experiência implique transformação. Ele permanece o mesmo, antes e depois. O acto não tem qualquer efeito sobre ele.
No imaginário de Hugo von Hofmannsthal, também o deus Baco sai ileso da ilha de Circe: a palavra exacta é “unverwandelt” (“intransformado”). Como deus que é, não precisa de qualquer planta mágica para resistir à transformação. No entanto, algo há em “Ariadne em Naxos” que se revela mais forte que o sexo e mais forte que a divindade: algo que transforma o deus, que o leva a declarar “sou agora outro relativamente à pessoa que eu era”. Essa experiência transformadora, mais forte ainda do que o sexo e à qual nem os deuses resistem, é obviamente... Não, é tão óbvio que nem vou dizer o que é.

Frederico Lourenço, O Lugar Supraceleste (Edições Cotovia)
(na imagem: “A Morte de Adónis” de Rubens)



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