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domingo, 26 de fevereiro de 2017

Sérgio Godinho




2.º ANDAR DIREITO

Ele vinte anos, e ela dezoito
e há cinco dias sem trocarem palavra
lembrando as zangas que um só beijo curava
e esta história começa no instante
em que o homem empurra a porta pesada
e entra no quarto onde a mulher está deitada
a dormir de um sono ligeiro

E no quarto, às cegas,
o escuro abraça-o como que a um companheiro
que se conhece pelo tocar e pelo cheiro
e é o ruído que o chão faz que lhe traz
o gosto ao quarto depois de uma ruptura
faz-lhe sentir que entre os dois algo ainda dura
dos dias em que um beijo bastava

E agora, da cama
vem uma voz que diz sussurrando: És tu?
e a luz acende-se sobre um braço nu
e a mulher pergunta: a que vens agora?
é que não sei se reparaste na hora
deixa dormir quem quer dormir, vai-te embora
amanhã tenho de ir trabalhar.

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes, que o amor ainda acorda
deixa-o dormir o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E o homem, de pé
Parece um rapazinho a ver se compreende
e grita e diz que ele também não se vende
que quer a paz mas de outra maneira
e nem que essa noite fosse a derradeira
veio afirmar quer ela queira ou não queira
que os dois ainda têm muito a aprender

Se temos...! Diz ela
mas o problema não é só de aprender
é saber a partir daí que fazer
e o homem diz: que queres que responda?
Não estamos no mesmo comprimento de onda...
Tu a mandares-me esse sorriso à Gioconda
e eu com ar de filme americano

Somos tão novos, diz o homem
e agora é a vez de a mulher se impacientar
essa frase já começa a tresandar
é que não é só uma questão de idade
o amor não é o bilhete de identidade
é eu ou tu, seja quem for, ter vontade
de mudar e deixar mudar

Não fales, que o bebé ainda acorda
não grites, que o vizinho ainda acorda
e não me olhes, que o amor ainda acorda
deixa-o dormir o nosso amor, um bocadinho mais
deixa-o dormir, que viveu dias tão brutais

E assim se ouviu
pela noite fora os dois amantes falar
e o que não vi só tive de imaginar
é preciso explicar que sou o vizinho
e à noite vivo neste quarto sozinho
corpo cansado e cabeça em desalinho
e o prédio inteiro nos meus ouvidos

Veio a manhã e diziam
telefona ao teu patrão, diz que hoje não vais
que viveste uns dias assim tão brutais
e que precisas de convalescença
sei lá, inventa qualquer coisa, uma doença
mete um atestado ou pede licença
sem prazo nem vencimento, se preciso for
(espero que não seja preciso, porque não
sei como é que eles vão viver sem os
dois salários...)

Vá fala que o bebé está acordado
e vizinho deve estar já acordado
e o amor, pronto, também está acordado
mas tem cuidado, trata-o bem
muito bem, de mansinho
que ainda agora vai pisar outro caminho.

Sérgio Godinho (Letra e música), álbum Pano-cru, 1978.

Notas:
1. A parte entre parêntesis é uma locução feita pelo Hugo Lourenço.
2. Pode ler-se como um conto. Há dois personagens e um narrador que lá para o fim da história se há de assumir como personagem também. Em 2700 caracteres Sérgio Godinho conta a história corriqueira de um casal na fronteira entra a guerra e a paixão, de um amor jovem a tentar sobreviver a rotinas antigas. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).




FOTOS DO FOGO

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira

A guerra deu na TV
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso

Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
«às suas ordens, meu tenente!»
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato

Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas

estás são e salvo e logo
«viver é bom», proclamas

Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!
no fogo assim te estreias
Chega-te a mim […]

Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila

O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terramotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, oh, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?

Refrão
Chega-te a mim […]

Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nessa morada

Godinho, Sérgio (2007), 55 canções: partituras, letras, cifras, Lisboa: Assírio & Alvim, p. 113. In: Sérgio Godinho (1993), Tinta Permanente. EMI-Valentim de Carvalho.

Nota:
“Chega-te a mim/ mais perto da lareira/ vou-te contar/ a história verdadeira.” É o princípio do texto e há-de ser o seu refrão, repetido ao fim de cada episódio que vai sendo contado. Um homem, supõe-se que ex-soldado no Ultramar, revolve uma caixa de fotografias e memórias de guerra e conta, supõe-se que a um filho, a história verdadeira dos horrores que viu, viveu e cometeu. Uma short story em 1800 caracteres, cinematográfica como muitos dos melhores textos de Godinho. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).




EMBOSCADAS

Foste como quem me armasse uma emboscada
ao sentir-me desatento
dando aquilo em que me dei
foste como quem me urdisse uma cilada
vi-me com tão pouca coisa
depois do que tanto amei

Rasguei o teu sorriso
quatro vezes foi preciso
por não precisares de mim
e depois, quando dormias
fiz de conta que fugias
e que eu não ficava assim
nesta dor em que me vejo
do nos ver quase no fim

Foste como quem lançasse as armadilhas
que se lançam aos amantes
quando amar foi coisa em vão
foste como quem vestisse as mascarilhas
dos embustes que se tramam
ao cair da escuridão

Resgatei o teu carinho
quatro vezes fiz o ninho
num beiral do teu jardim
e depois, já em cuidado
vi no teu espelho do passado
a tua imagem de mim
e esta dor em que me vejo
de nos ver quase no fim

Foste como quem cumprisse uma vingança
que guardavas às escuras
esperando a sua vez
foste como quem me desse uma bonança
fraquejando à tempestade
de tão frágil que se fez

Resgatei o teu ciúme
quatro vezes deitei lume
ao teu corpo de marfim
e depois, como uma espada
pousei na terra queimada
o meu ramo de alecrim
e esta dor em que me vejo
de nos ver perto do fim.
Sérgio Godinho (Letra e música), Na Vida Real, 1986

Nota:
É um poema apenas, armadilhado de verbos no conjuntivo em que Godinho descobre uma musicalidade inesperada. Armasse, urdisse, lançasse, vestisse, cumprisse, desse. São 1100 caracteres que lustram um dos seus contributos maiores para a língua portuguesa: o de nos pôr a cantar palavras bicudas nas quais nunca suspeitáramos que a música pudesse habitar. Ouve-se no álbum Na Vida Real, de 1986, no mesmo alinhamento de “A Lisboa que Amanhece” ou “Pode Alguém Ser Quem Não É”. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).





PRIMEIRO DIA

A principio é simples, anda-se sozinho
Passa-se nas ruas bem devagarinho
Está-se bem no silêncio e no borborinho
Bebe-se as certezas num copo de vinho
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
Diz-se do passado, que está moribundo
Bebe-se o alento num copo sem fundo
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
Entra-se cansado e sai-se refeito
Luta-se por tudo o que se leva a peito
Bebe-se, come-se e alguém nos diz: Bom proveito!
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
Olha-se para dentro e já pouco sobeja
Pede-se o descanso, por curto que seja
Apagam-se dúvidas num mar de cerveja
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Enfim duma escolha faz-se um desafio
Enfrenta-se a vida de fio a pavio
Navega-se sem mar, sem vela ou navio
Bebe-se a coragem até dum copo vazio
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
E outra maré cheia virá da maré vazia
Nasce um novo dia e no braço outra asa
Brinda-se aos amores com o vinho da casa
E vem-nos à memória uma frase batida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida
Sérgio Godinho, Pano-cru, 1978





COM UM BRILHOZINHO NOS OLHOS

Com um brilhozinho nos olhos
e a saia rodada
escancaraste a porta do bar
trazias o cabelo aos ombros
passeando de cá para lá
como as ondas do mar.
Conheço tão bem esses olhos
e nunca me enganam,
o que é que aconteceu, diz lá
é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa 
no mundo não há.

Com um brilhozinho nos olhos
metemos o carro
muito à frente, muito à frente dos bois
ou seja, fizemos promessas
trocamos retratos
trocamos projectos os dois
trocamos de roupa, trocamos de corpo,
trocamos de beijos, tão bom, é tão bom
e com um brilhozinho nos olhos
tocamos guitarra 
p'lo menos a julgar pelo som

E que é que foi que ele disse?
E que é que foi que ele disse?
Hoje soube-me a pouco. [x4]
passa aí mais um bocadinho
que estou quase a ficar louco
Hoje soube-me a tanto [x4]
portanto,
Hoje soube-me a pouco

Com um brilhozinho nos olhos
corremos os estores
pusemos a rádio no "on"
acendemos a já costumeira
velinha de igreja
pusemos no "off" o telefone
e olha, não dá p'ra contar
mas sei que tu sabes
daquilo que sabes que eu sei
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos parados 
depois do que não te contei

Com um brilhozinho nos olhos
dissemos, sei lá
o que nos passou pela tola [o que nos passou pelo goto]
do estilo és o "number one"
dou-te vinte valores
és um treze no totobola [és o seis do meu totoloto]
e às duas por três
bebemos um copo
fizemos o quatro e pintámos o sete
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos imóveis
a dar uma de "tête a tête"

E que é que foi que ele disse?
...

E com um brilhozinho nos olhos
tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

E que é que foi que ele disse?
...
Sérgio Godinho, Canto da boca, 1981

Nota:
Uma aventura de paixão que faz nascer uma amizade contada em três mil caracteres corridos. É dos melhores exemplares de um exercício literário em que Godinho é mestre: revelar a poesia que se esconde nas frases feitas e em outros lugares comuns da língua. (João Pedro Oliveira, https://www.timeout.pt/lisboa/pt/musica/5-cancoes-de-sergio-godinho-que-merecem-ser-lidas, 2017-02-23).



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