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sexta-feira, 24 de março de 2017

Um quarto dos poemas é imitação literária



Um quarto dos poemas é imitação literária,
outro quarto é ainda imitação mas já irónica e colérica,
outro quarto é das labaredas da inquisição à volta,
outro quarto, o quarto, o que falta, é por causa da
magnificência do mundo
o quinto quarto absurdo é o das quatro patas cortadas,
e o último é ele que olha da montanha onde abriu na
pedra o seu nome inabalável,
e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,
como se fosse tão frio que cortasse até ao osso,
o imo do próprio nome assim metido na pedra,
tanto que ninguém sabia de quem era,
porque ficou todo dentro e não se via de fora:
nem o suor nem o sangue nem o sopro

Herberto Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013; Poemas Completos, Porto: Porto Editora, 2014)
Poema dito por Fernando Alves (TSF-Rádio Notícias, maio de 2013)
  
[…] apesar de ser «dos poetas mais lidos e assimilados, porquanto a marca da sua presença aparece nas mais variadas obras dos autores mais variados, e com uma assiduidade que chega a tornar-se maçadora» (Maria Estela Guedes), Herberto Helder «não tem antes nem depois, apesar de muitos o tentarem imitar» (Joana Emídio Marques); «Não há na poesia portuguesa pós-Pessoa nenhum poeta que tenha exercido um tal poder de atração e gerado tantos epígonos. E nenhum mais absolutamente impossível de imitar com proveito» (Luís Miguel Queirós); «Nos grandes poetas, ela [a imitação] tende para o impossível, ou então é insuportavelmente trôpega. (…) Essa impossibilidade de imitar valiosamente aquilo que mais apeteceria imitar é quase um sinal indubitável da soberana realidade de uma poesia» (Paulo Tunhas).
Sobre tudo isto, Herberto Helder disse, com um requinte, uma subtileza e uma precisão descritiva (e digo-o sem exagero nem ironia) que não está ao alcance de todas as inteligências: «Quanto mais contrabandeado, melhor se verá nele a força natural da singularidade» (prefácio a Uma Faca nos Dentes).
João Pedro Jorge, “Herberto Helder: sociologia de um génio”, Observador, 2015-04-08.





Levanto à vista
o que foi a terra magnífica
e as estações mais bêbedas
E estou tão leve
porque não tenho nenhum segredo
e tão oculto
porque daqui a nada
já posso dizer tudo.
Daqui a uma pouca ciência
saberei pensar que algum pouco depois
estarei morto
e só de o pensar
já nem respiro
já quase
em nada toco
Já só vejo no fundo das mãos
daquilo que fica escrito
Que escrevi coisa nenhuma do mundo
até ao esquecimento e movendo-me com as unhas
movo os nomes inúmeros
para dizer que mal nasci
logo me deram por morto.
E não fui tido nem havido
na razão do episódio de um rosto
ter passado por um espelho e ter desaparecido.
Portanto não me venha ninguém falar de nada
sei bastante do que sabem todos
Vejo a água a mover-se contra si mesma
tão marítima e acho até que é bonito
cada qual morre do quanto alcança e não alcança
e ninguém compreende
a água quebra os dedos que escreveram até às pontas
e passa a água fácil
sem retorno
porque nada tem retorno
e tudo é dificílimo
não só o máximo, mas também o mínimo.
 
Herberto Helder (in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013; Poemas Completos, Porto: Porto Editora, 2014)
Poema dito por Fernando Alves (transmitido na TSF-Rádio Notícias, em maio de 2013)

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