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sexta-feira, 2 de março de 2018

Ezequiel Vala e outras estórias enciclopédicas, por Afonso Cruz


No futuro
iremos parar durante
um minuto todos os dias,
interromper o que estivermos
a fazer, de repente, a meio
de uma palavra, de uma passada,
de uma garfada. E, perfeitamente
imóveis, veremos que o mundo
é uma cruz para quem o carrega
e um berlinde para quem o empurra.
Depois é só escolher.

Afonso Cruz, Enciclopédia da Estória Universal. Livro 1 - Recolha de Alexandria.
Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012




A lebre, a tartaruga
e uma flor no cabelo

Ezequiel Vala nasceu em 1905 e haveria de, em 1928, participar na maratona das Olimpíadas de Amesterdão. Foi, para o atleta e para o seu treinador, o momento mais importante das suas vidas, mas por motivos radicalmente opostos.
Ezequiel Vala era um homem sonhador a quem sempre deram todas as condições para competir e vencer. Era um atleta talentoso e inteligente, de pernas finas e compridas, mas também era um grande apaixonado por flores. Num dia de competição, em 1924, antes de correr, contou ao seu treinador que havia, na noite anterior, semeado uma flor (amaryllis/hippeastrum) no sonho de uma bela rapariga da Valáquia1, descendente de ciganos. O treinador riu-se dele, mas Vala assegurava que havia realmente semeado, com as suas próprias mãos – ao ponto de ficar com terra nas unhas –, uma flor vermelha no sonho de uma mulher desconhecida. Foi, nessa mesma altura, criticado pela falta de sobriedade com que encarava a vida e o desporto, mas cortou a meta em primeiro, ganhando com a facilidade que lhe era habitual, e subiu ao pódio, demonstrando que os seus desvarios oníricos não afetavam a sua eficácia competitiva. Apesar da vitória – e enquanto recebia a medalha de ouro – exibia um olhar melancólico e torcia o nariz como um coelho, pois ainda sentia, vindo das suas mãos, o cheiro da terra do sonho da rapariga valáquia. Muitas vezes, como a lebre da fábula de Esopo, Vala entretinha-se com outras coisas, perdendo tempo, mas sem nunca perder a corrida. O treinador admoestava-o, mas Ezequiel Vala não dava qualquer importância aos avisos. O treinador contou-lhe a história da lebre e sublinhou o seu ponto de vista com a célebre corrida de Andarín Carvajal:
– Carvajal – disse o treinador – era um atleta, um cubano pobre que decidiu mendigar dinheiro pelas ruas de Havana para poder viajar até St. Louis, local onde se realizariam as Olimpíadas daquele ano, e poder assim participar na maratona. Conseguiu o suficiente, mas, ao chegar a Nova Orleães, perdeu tudo o que possuía com mulheres e jogo e coisas dessas que fazem um homem transformar-se numa lebre de Esopo. Mas não desistiu e foi a pé, caminhou mais de mil quilómetros até chegar a St. Louis. Chegou com a roupa que usava normalmente, muito pouco adequada para competir, calças compridas e botas de carteiro. Cortou as calças para as transformar em calções e, sem qualquer surpresa, pois era um excelente atleta, cedo liderou a prova. No entanto, porque não comia há cerca de dois dias, estava faminto. Então parou para comer maçãs. Por algum motivo, ficou muito maldisposto e teve de parar inúmeras vezes por causa disso, terminando a corrida em quarto. Por isso, Ezequiel, é muito importante que tu, já que tens tendência a perder-te pelo caminho, agradeças pelo menos o facto de não seres pobre e de não passares fome e de não correres com botas de carteiro e, por isso, teres outras possibilidades de vencer. Algo que, por exemplo, Andarín Carvajal não teve.
Ezequiel Vala encolheu os ombros com um sorriso. No dia da sua prova nas Olimpíadas, Vala era o favorito e demonstrou-o logo nos primeiros quilómetros, ganhando um avanço impressionante sobre os seus adversários. Mas a meio da prova parou por causa de uma lychnis coronaria e sentou-se no campo. Retomou a corrida quando viu Boughera El Ouafi, corredor francês, aproximar-se. Depressa voltou a ganhar terreno, mas acabou por parar mais uma vez quando viu um circo, bastante pobre, que exibia o seu espetáculo na praça de uma aldeia. Reteve-o uma amaryllis/hippeastrum que estava pendurada no cabelo de uma equilibrista. Ficou parado a olhar para ela, meio perdido, enquanto Boughera El Ouafi passava por ele. E continuava ali, parado, enquanto o chileno Manuel Plaza e o finlandês Martti Marttelin atravessavam a praça à procura da vitória.
"A lebre, a tartaruga e uma flor no cabelo", 
ilustração de Afonso Cruz (in P8, Texto Editora, 2012, p. 87)
Esmeralda Rusu mantinha-se em equilíbrio na corda, enquanto Vala caía do primeiro lugar para o último. A equilibrista, quando o viu na praça parado com os braços ao longo do corpo, desceu e aproximou-se agradecendo-lhe a flor que trazia no cabelo. Ezequiel Vala nunca chegou à meta e, na verdade, nunca mais voltou a competir. Disse aos jornais: a nossa meta, muitas vezes, não está onde pensamos. Pode estar à beira da estrada, pode estar a meio do caminho, no meio de uma praça, e seria um desperdício se passássemos por ela a correr, passássemos ao seu lado sem a vermos. E assim continuaríamos a correr para lado nenhum, para uma ilusão. Há uma grande virtude na lebre: ela sabia viver. Nessa altura, Ezequiel Vala não ficou célebre por ter ganhado as Olimpíadas, mas por, na cabeça de todos, tê-las perdido infantilmente. Contudo, Vala – que se tornou um equilibrista medíocre e um botânico célebre – era de outra opinião: fora ele o grande vencedor.
E, aos oitenta e quatro anos, em 1989, no momento da sua morte, haveria de dizer isso mesmo a Esmeralda – também ela velha, mas ainda capaz de, com aquela idade, caminhar em cima de uma corda com uma flor no cabelo:
– Perdi a maratona das Olimpíadas de Amesterdão, mas sem dúvida nenhuma venci a corrida.
E morreu com o mesmo sorriso que fazia quando ouvia os conselhos do seu treinador.
Afonso Cruz
P8, Lisboa, Texto Editora, 2012 (1.ª ed.)
Enciclopédia da Estória Universal - Arquivos de Dresner, Editorial Alfaguara, fevereiro de 2013
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Valáquia: província da Roménia, situada a norte do rio Danúbio e a sul dos Cárpatos.



Enciclopédia da Estória Universal, Afonso Cruz.
Quetzal Editores, 09-2009
«Enciclopédia da Estória Universal, que recebeu o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco (Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão/APE), é o título de uma obra singular que Afonso Cruz (1971) publicou em 2009, e que iniciou uma série a que o autor juntou dois volumes, subintitulados Recolha de Alexandria (2012) e Arquivos de Dresner (2013).
O título, através do lexema estória”, marca imediatamente o caráter especial desta enciclopédia”, que escapa a qualquer definição única de género do discurso.
Carlos Nogueira, no artigoLiteratura e conhecimento: Enciclopédia da Estória Universal, de Afonso Cruzprocura demonstrar de que modo o discurso literário desta Enciclopédia se alimenta de discursos (da filosofia, da história, da antropologia, etc.) que visam quer o conhecimento do ser humano e do mundo, quer a educação para a cidadania. Estes volumes, de conteúdo interdisciplinar, apelam para a curiosidade e a sensibilidade, valorizam a responsabilidade individual e coletiva, desenvolvem a capacidade de ler o mundo através de linguagens múltiplas e alternativas. Correspondendo aos princípios oficiais que regem a organização da prática pedagica nas instituições de ensino básico, secundário e superior, esta Enciclopédia pode ser uma boa fonte de leitura e refleo em qualquer instituição de ensino.»


Enciclopédia da Estória Universal. Livro 1  - Recolha de Alexandria
Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2012

Refletir através de pequenas estórias apresentadas como verdades enciclopédicas. Um projecto que requer todo um trabalho de construção, uma estrutura sólida que assenta na criatividade e na imaginação. Um trabalho genial. Possivelmente o livro do Afonso Cruz que mais gostei de ler até agora.
Mais do que saber escrever, mais do que ter talento para criar palcos, personagens e argumentos, impressiona-me o criar de mundos. E Afonso Cruz como que criou o seu próprio mundo, com todas as explicações de coisas em que nunca pensámos, ou que já pensámos mas nunca desta forma. Quem se iria lembrar de medir a sorte ou os pecados considerando-as medições cientificamente comprovadas? É como chegar à verdade através de um processo de alucinação, com entrar num túnel onde se olha para tudo de outra forma e se descobrem coisas fantásticas.
Deixei-me levar por uma leitura excecional, que me surpreendeu a cada página e me levou a reflectir sobre temas sérios através de exemplos quase infantis. Uma brincadeira que quero repetir, um livro que já é para mim um marco e que prevejo reler infinitas vezes.
Um conjunto de pensamentos e fragmentos muitas vezes contraditórios e cujo sentido só nos atinge umas páginas mais à frente; um exercício extraordinário para as cabeças que, cansadas de rotinas, procuram algo diferente dos dias (quase) todos iguais. Pois que viver numa era em que se produz e vende tudo tende a deixar o cérebro demasiado tempo em descanso.
Márcia Balsas
https://rodadoslivros.wordpress.com/2013/12/07/enciclopedia-da-estoria-universal-recolha-de-alexandria-afonso-cruz/

Enciclopédia da Estória Universal - Livro 2: Arquivos de Dresner.
Afonso Cruz, Lisboa, Editorial Alfaguara, 2013
Sinopse: Com reflexões e histórias ignoradas noutras enciclopédias, o volume Arquivos de Dresner aborda, entre outras coisas, o caso de Ezequiel Vala, um maratonista que perdeu uma prova, nas Olimpíadas de 1928, por causa de uma flor (amaryllis/hippeastrum); fala do explorador Gomez Bota, que provou que a Terra não é redonda e descobriu, numa das suas viagens, a entrada para o Inferno tal como Dante a havia descrito; e relata os hábitos dos índios Abokowo, que dão saltos quando dizem palavras como «amor» e «amizade».
Esta é mais uma viagem lúdica pela História, remisturando conceitos, teorias e opiniões e lançando nova luz sobre uma panóplia de assuntos, desde a filosofia à religião, desde o misticismo à ciência.
«Um artista é alguém que, em vez de pintar uma paisagem tal como ela é, faz com que as pessoas vejam a paisagem tal como ele a vê.» (Tsilia Kacev)
Alfaguara, 2013.


Afonso Cruz

Figueira da Foz, 1971. 

Escritor, ilustrador e músico, que tem também trabalhado na área do cinema de animação.  contradição humana, Os livros que devoraram o meu pai, O pintor debaixo do lava-loiças Assim, mas sem ser assim são algumas das suas obras.

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