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segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A posteridade de Jorge de Sena está nas mãos de cada um de nós. (Jorge Fazenda Lourenço)


ENTREVISTA A JORGE FAZENDA LOURENÇO
POR TERESA CARVALHO, 04/06/2018

Foi a 4 de Junho de 1978 que desapareceu Jorge de Sena, já aquele que haveria de ser o mais empenhado estudioso da sua obra o admirava. Ao i, Jorge Fazenda Lourenço, poeta, professor de literatura e, até 2016, coordenador-editor das Obras Completas de Sena, revelou que quanto mais lê, fala ou escreve sobre o autor de “Metamorfoses” mais cresce o seu desconhecimento dele, como se o poeta lhe escapasse nas palavras que sobre ele de si se desprendem.

À distância de quase quatro décadas do desfecho de uma vida de andanças e mágoas, que tantas vezes emergem nos seus poemas, ora com ironia, ora com um lirismo dilacerado, ora ainda com uma rudeza sarcástica, inconformada, furiosa, já Jorge de Sena escrevia o seu primeiro “Epitáfio”: “Eu sou daquela espécie/ de quem se diz depois da morte:/ - a sua melhor obra foi morrer”.
A morte foi encontrar em Santa Barbara, na Califórnia, não tinha ainda completado 60 anos, o escritor indómito cujo vulto literário deitava demasiada sombra neste rectangulozinho de estrategas e carreiristas. Não se cansou o poeta de reivindicar a dignidade de ser quem era e como era. Dignidade - um outro nome de poesia, como propôs já Eduardo Lourenço.
Faz hoje 40 anos que Jorge de Sena desapareceu. A data é redonda como um seixo, mas quase tudo o resto se furta à regularidade, à lisura, à harmonia das formas comuns. A começar pelo seu trajecto existencial: difícil, acidentado, eriçado de angulosas e tristes surpresas, incompreensões, baixezas, traições, perfídias literatas, impossibilidades, a do regresso à pátria incluída. Tudo somado, faz avultar aquela “dor de haver nascido em Portugal / sem mais remédio que trazê-lo n’alma”.
Considerava-se um exilado mesmo antes de sair de Portugal, em 1959, por ocasião de um colóquio que lhe serviu de pretexto para se exilar no Brasil, depois da participação numa acção revolucionária mal sucedida. Andou terras e gentes, coleccionou nacionalidades como camisas se trocam. “Poeta-peregrino, expulso de cidade em cidade”, fez da poesia o seu grande lugar de viver. A um mês da morte recebe da secretaria de estado dita da Cultura o primeiro convite oficial (leu bem) para vir trabalhar para Portugal como director do Teatro D. Maria II. Queria aceder ao convite, mas já a vida se lhe gastara.
Não tendo embora conhecido Jorge de Sena, acabou por manter com ele um trato próximo, íntimo. Quando é que se iniciou esta convivência? Como é que tudo começou?
Jorge de Sena era para mim um poeta de que já tinha ouvido falar. Até que, no final dos anos 70 (do século passado!), saiu uma sucessão fabulosa de obras suas: “Os Grão-Capitães”, em 1976; a edição isolada de “O Físico Prodigioso”, a sequência “Sobre esta praia...”, e a reedição de “Poesia-I”, em 1977; as duas “Dialécticas da Literatura”, em 77 e 78; “Antigas e Novas Andanças do Demónio”, “Poesia-II” e “Poesia-III”, em 1978; e, finalmente, “Sinais de Fogo”, em 1979. Fiquei completamente varado pelo poeta; e digo poeta, porque em tudo o que ele escreveu é sempre legível o trabalho de um poeta. E em 1982 comecei a escrever sobre “o meu poeta”. Precisava de extravasar toda aquela admiração.
E o que é que escreveu?
Em geral, pequenas críticas aos livros que Mécia de Sena estava publicando depois da morte dele, faz agora 40 anos. O entusiasmo dos textos devia ser grande (a qualidade não sei), de tal modo que a Mécia quis saber de mim junto do Jacinto Baptista, que tinha sido meu professor de jornalismo e me aceitou como colaborador do semanário “O Ponto” (um jornal esquecido). Foi, portanto, através do Jacinto Baptista, o jornalista mais culto que eu conheci, que eu entrei em contacto epistolar com Mécia de Sena, que vim a conhecer, pessoalmente, quando ela veio a Portugal em 1984. A partir desse ano, e de uma forma gradual, como numa relação que se vai construindo e crescendo, fui ficando seu colaborador cada vez mais próximo. E temos uma longa correspondência. Em 1988, a Mécia desafiou-me a ir para Santa Barbara trabalhar no espólio do marido e estudar na Universidade da Califórnia, onde estive cinco anos. E aí a nossa cumplicidade aprofundou-se, num contacto, afectivo, quase quotidiano.
Soube que, entretanto, deixou de manter contacto com Mécia de Sena. O que aconteceu?
A última vez que estive com Mécia de Sena, foi em 2011, em Santa Barbara, para acertarmos pormenores de próximas edições da obra de Jorge de Sena. Mécia de Sena nasceu a 16 de Março de 1920. O peso dos anos era já então evidente. Continuámos a corresponder-nos por carta e a falar de vez em quando ao telefone. Numa das nossas últimas conversas, recordando os nossos mais de 30 anos de colaboração, Mécia de Sena falou-me de “como nos tínhamos feito um ao outro”. Até que, em meados de 2015, começaram a surgir barreiras à comunicação impostas pela família. Mécia de Sena estaria num processo de demência, desencadeado ou acelerado por uma queda numa época de Natal. Entretanto, a família obtém a sua interdição legal, considerando-a incapacitada para a condução da obra e não oferecendo qualquer mediação aos seus amigos, mesmo aos mais chegados. Um corte. Abrupto. Cruel. Como quem apaga alguém. Para sempre.
O convívio com o poeta já leva décadas, mas disse já que quanto mais lê e escreve sobre Jorge de Sena mais o seu desconhecimento dele aumenta. Quer explicar?
O que eu tenho percebido é que o conhecimento de uma obra como a de Jorge de Sena cresce com o conhecimento que vamos tendo de nós próprios e da humanidade de que somos feitos, incluindo nela a literatura e as artes, numa espécie de inter-relação que é singular a cada leitor, e que faz da obra do poeta um objecto singular também para ele, leitor. Nesse sentido, quanto mais conhecemos, mais fica por conhecer; mais ignorantes somos do objecto que queremos compreender. É como numa relação amorosa: quanto mais conhecemos a pessoa amada, menos sabemos dela, e, por isso, mais desejamos conhecê-la, e conhecê-la mais profundamente, pois esta forma de conhecimento é também uma forma de auto-conhecimento.
O Jorge Fazenda Lourenço é o que habitualmente chamamos um especialista de Jorge de Sena. Por cá, não é raro encontrarmos especialistas com uma ideia muito própria da literatura: um vasto domínio dividido em leiras, ou canteirinhos, com cercas à volta, espécie de feudos. E que ninguém se lembre de as galgar!, entrando assim em propriedade privada. Revê-se no retrato ou torce-lhe o nariz?
Bem, como já reparou pela resposta anterior, eu não me vejo como especialista de nada, embora o meu ego seja impressionável. Se a palavra não estivesse tão depreciada, eu diria que sou um amador da obra (sublinho, da obra) de Jorge de Sena. Aceitemos, portanto, que sou um estudioso. Talvez por ter andado tresmalhado em Medicina, ligo muito a ideia de especialista à ideia de órgão e de doença. Jorge de Sena não é, para mim, uma doença. É uma das pessoas mais vivas da minha vida. Não é uma doença, nem é uma obsessão que me impeça de apreciar outros criadores. Antes pelo contrário. Foi Jorge de Sena que me levou a descobrir uma infinidade de poetas, pintores, músicos e pensadores por ele traduzidos e estudados, ou com os quais estabeleceu um diálogo poético, criativo, como em “Metamorfoses” e “Arte de Música”.
Os seus trabalhos, de maior o menor fôlego, têm provado que o discurso académico pode ser claro sem perder a densidade. Este esforço tem sido importante na divulgação da obra de Sena?
É-me difícil responder a esta sua pergunta, porque ela contém um elogio, para mim, um enorme elogio, que agradeço. A tentativa de aliar clareza e densidade creio que pode ser lida em todos os textos meus, que não são apenas sobre Jorge de Sena. Pode estar relacionada com a minha faceta de professor de literatura. É, sem dúvida, resultado de uma aprendizagem, mas não é uma atitude estudada, com esta ou aquela finalidade. A clareza de exposição torna a densidade mais clara; e a densidade do pensamento busca as profundezas da claridade. De resto, não me considero um divulgador da obra de Jorge de Sena, e também não um académico (palavra que, para mim, ainda tem conotações serôdias). Eu sou um estudioso e, portanto, um leitor, mesmo quando estou na sala de aula, e o que procuro é transmitir o prazer e a dor de sentir e de pensar com os versos e as prosas de outra pessoa, e como nisso há uma responsabilidade política (cidadã), ética e estética.
Mesmo quem de Jorge de Sena conhece apenas aqueles poemas mais célebres, estará familiarizado com o “retrato falado” que dele chegou, incólume, até ao século XXI: um ser irascível, feroz, sarcástico, nem sempre capaz de se manter na circunferência da compostura, um escritor com o sentimento da genialidade própria, que se celebrava a si mesmo, que não se coibiu sequer de indicar em que secções da história literária portuguesa merecia ser citado, louvado e ensaiado. Convenhamos que não é uma imagem muito simpática …
Sim, conheço bem a “lenda negra” de Jorge de Sena. Mas conheço igualmente um sem número de pessoas, de diferentes países, que ficaram com uma percepção dele completamente diferente: um homem amável, cortês, solidário, convivial, atento aos outros, respeitador de diferenças ideológicas, políticas, comportamentais. E, sim, por vezes o contrário disto: intolerante face à miséria, sobretudo intelectual, à traição, à falsidade, à mediocridade, à intolerância de uns quantos. Por certo que Jorge de Sena foi um homem com defeitos e qualidades, como cada um de nós. E quanto a modéstias, se estamos bem recordados, o único modelo de modéstia de todo o século vinte português foi o ditador de Santa Comba. Eu sempre achei que, quanto mais contraditória, mais interessante uma pessoa é. Desde que, é claro, não tenhamos de viver com ela quotidianamente. E contudo, a sua obra revela uma cuidada atenção ao outro, às fragilidades da condição humana, à urgência de amor e de liberdade como princípios fundadores da dignidade humana, como é raro encontrar-se.
Terá aquela imagem contribuído para uma certa posição de desvantagem de Jorge de Sena, face, por exemplo, a uma Sophia ou a um Eugénio de Andrade, muito mais presentes na nossa cena literária?
As comparações são sempre difíceis, porque delicadas. Mas não creio que seja esse o ponto. Repare que Jorge de Sena viveu exilado durante quase 19 anos, desde Agosto de 1959, com vindas esporádicas a Portugal, a partir de 1968, vindas essas que acabavam por, paradoxalmente, servir de reforço à sua condição de exilado. Este é, aliás, um dos muitos paradoxos da condição de exilado. Embora estivesse presente na nossa “república das letras” como poeta publicado, é sempre mais vantajoso, em termos sociais, que é o domínio da “cena literária”, estar em cena, e não fora de cena. Estar dentro e não fora do palco.
Não acha que boa parte dos escritores de hoje, muito embora não o confessem, se têm em alta conta literária?
Não gostaria de fazer apreciações generalistas ou generalizantes. Até porque a questão se pode aplicar a uma infinidade de escritores de épocas anteriores, alguns deles tidos como primeiras figuras das “cenas literárias” do tempo em que viveram. Creio que o que mais importa, nisto como noutras coisas, é descobrirmos os nossos contemporâneos, independentemente do tempo cronológico que marcou as suas vidas. Em termos literários, ou artísticos, essa é que é a verdadeira vida. A vida que fazemos com aqueles que cada um de nós traz na ponta da língua.
Curiosamente, o Jorge Fazenda Lourenço, que também é poeta, acaba de publicar, na Companhia das Ilhas, “Azares da Poesia”. O livro quer ser lido como um auto-retrato?
Sim, ainda que um auto-retrato provisório, uma vez que ele é a fixação de um instante, ou melhor, de uma intermitência de momentos discursivos, cuja necessidade é ditada pelo acaso. O momento de me olhar e perceber que, passados os 60 anos, eu sou aquilo que os meus poemas, incluindo as minhas traduções de poesia, e os meus ensaios fizeram de mim, reconhecendo, ao mesmo tempo, que a construção desse rosto tem sido feita da inter-acção, verificável, dessas duas formas poéticas. O livro é, aliás, um primeiro volante desse auto-retrato de um poeta em construção. O segundo, também constituído por poemas e ensaios, estará mais centrado na figura de Jorge de Sena. Espero poder publicá-lo para o ano, para o centenário do poeta.
Nunca foi fácil a relação de Jorge de Sena com a crítica, que começou por considera-lo “infinitamente mais inteligente que poeta propriamente dito”. Que queria isto dizer? Era o sinal de uma incompreensão?
Sim, incompreensão, sobretudo, em relação à poesia, confundindo-a com o lirismo sentimental. E, é claro, um estratagema para desvalorizar a poesia de Jorge de Sena, fingindo elogiar os seus dotes de crítico literário. Afinal, ele não era engenheiro civil? Fiz já a crítica dessa crítica num texto incluindo em “Matéria Cúmplice”, de 2012. O preconceito tinha, aliás, o condão de juntar Jorge de Sena a nomes maiores da poesia portuguesa, como Luís de Camões e Fernando Pessoa.
Num tempo em que a figura do polemista é uma espécie em extinção, que faria hoje Jorge de Sena à sua veia de polemista? Acha que a consideração das conveniências terá ditado o fim desse interessante género que é polémica literária?
Creio que a polémica literária correspondeu a uma necessidade de enfrentamento político e cultural. Era uma resposta à falta de abertura ou de democratização da chamada “república das letras”, que, ainda por cima, era coisa de machos. Provavelmente, já não faz sentido. E, por isso, o que existe hoje nas redes sociais é um enredo, um entretém, um simulacro, com as excepções que sempre há, é claro. Discutem-se personalidades, à moda antiga, mas raramente se discute literatura.
Havia no autor de “Metamorfoses” um frenesi criativo: poesia, prosa, teatro, ensaio, traduções, antologias, prefácios … tudo! Escrevia com o furor de quem teme morrer no dia seguinte?
É isso mesmo. Como se não houvesse outro dia. Como em Mozart, por exemplo. A arte contra a morte. O que, para quem suspeita, como Jorge de Sena, que não há outro mundo senão este, é crucial. A arte e o amor, num anelo invencível. A poesia como desejo de amor; o amor como desejo de poesia.
Mécia de Sena abriu-lhe o espólio e a biblioteca de Jorge de Sena. O que por lá encontrou: o caos, a ordem ou qualquer coisa de intermédio?
Eu cheguei a Santa Barbara em Março de 1988. Já sabia, pela correspondência que vínhamos mantendo, que Mécia de Sena estava a organizar de forma profissional, criteriosa, o espólio de Jorge de Sena, o que lhe permitiu, em apenas dez anos, publicar novos ou reeditar mais de trinta livros, o que dá uma média anual e um ritmo de trabalho impressionantes, para mais numa época em que as provas tipográficas circulavam ainda por correio postal. Todos os volumes, editados ou a editar, ou ainda em projecto, organizados em pastas individuais, os manuscritos dactilografados e fotocopiados, para suprir acidentes ou extravios, e as pastas arrumadas em grandes arquivadores de metal, com gavetas. Dezenas. No escritório, no quarto, na lavandaria, no corredor que ligava este compartimento à cozinha. Todos os géneros literários, incluindo a vasta correspondência, com cada pasta para o seu destinatário, mas também o arquivo fotográfico, cronologicamente organizado, ou mesmo pastas e arquivadores cheios de programas de conferências, congressos e outras actividades em que Jorge de Sena participara de algum modo. E ainda programas de concertos musicais, objectos pessoais, relativos ou não à vida profissional, como escritor e professor. Tudo o que, parecendo menor, ajudaria (ajudará?) a dar um contexto, a tornar mais viva, a obra e a vida do seu bem-amado Jorge de Sena.
É verdade que a casa de Santa Bárbara era uma espécie de centro editorial para a publicação das obras do poeta?
Sim. Quando em 1988 cheguei a Santa Barbara, encontrei, no número 939 da Randolph Road, um verdadeiro centro de investigação e edição da obra de Jorge de Sena, que, ainda por cima, oferecia pensão completa a quem necessitasse. Mécia de Sena foi (será sempre) não só a figura tutelar de várias gerações de investigadores, de diferentes nacionalidades, como a grande editora de Jorge de Sena, tendo realizado um notabilíssimo trabalho intelectual, produzindo um vasto conjunto de prefácios, introduções e notas críticas, fundamentais para o entendimento da sua obra, com grande influência na recepção crítica que ela vem tendo desde 1978.
Como é que foram estes anos de trabalho em torno da organização e edição da obra de Sena? Quais as principais dificuldades que enfrentou?
Embora colaborando de perto com Mécia de Sena desde 1984, é só entre 2009 e 2016 que, por delegação sua, assumi a coordenação da edição das obras completas, de que a Guimarães Editores, por dificuldades conhecidas do grupo Babel, acabou por publicar apenas doze volumes. A grande dificuldade foi conseguir estabelecer um ritmo de publicação que respondesse, num espaço de tempo razoável, de mais ou menos dez anos, à edição da totalidade da obra de Jorge de Sena, incluindo parte significativa da sua correspondência (de que saíram apenas dois volumes). Era um projecto ambicioso, no qual me empenhei com todo o suor, inteligência, diplomacia e alma, mas que não foi possível concretizar, nem sequer em termos de ritmo de publicação.
Era um projecto. Já não é? Não haverá outras editoras interessadas em continuá-lo?
Neste momento, a edição da obra de Jorge de Sena está a cargo da filha mais velha, a qual tem ideias e critérios divergentes dos da mãe, sobretudo no que toca à publicação da correspondência, grande parte dela inédita. Afastada Mécia de Sena, e uma vez que eu fazia equipa com ela, afastado estou. Creio que a publicação da obra terá sido entregue ao Grupo Porto Editora.
Mécia de Sena é a mulher que qualquer escritor preocupado com o destino dos seus escritos quereria ter. Tendo em conta todo o seu trabalho – e a importância de Jorge de Sena na cultura portuguesa – não lhe parece estranho que, ao longo destes anos, o Estado português tenha respondido sempre com “silêncio e escuridão – e nada mais”?
Em 2009, Mécia de Sena doou à Biblioteca Nacional de Portugal o espólio de Jorge de Sena, incluindo a sua biblioteca particular e um conjunto significativo de objectos pessoais. Houve uma primeira cerimónia de entrega, em Abril desse ano, de uma parte do espólio, que estava à guarda da Fundação Calouste Gulbenkian, e, segundo julgo saber, a parte maior e restante foi já transportada de Santa Barbara para Lisboa, estando tudo, creio que ainda, em processo de catalogação.
Sabemos que Jorge de Sena traçou a régua e esquadro um programa de posteridade que o empenho de Mécia de Sena, e o seu próprio, haveriam de continuar. Passados 40 anos da morte do poeta, podemos dizer que esse plano deu certo? Ou será Sena ainda um poeta demasiado contemporâneo para podermos avaliar?
Traçar a régua e esquadro um programa de posteridade, por parte de Jorge de Sena, é uma expressão totalmente desadequada, e até cruel, que vi já utilizada por outra gente. Acontece que, após o grave ataque cardíaco que Jorge de Sena sofreu em 1976, e perante a extrema fragilidade da sua saúde, o poeta começa a preparar a publicação da sua obra com a consciência de um tempo limitado de vida, como, infelizmente, se veio a verificar. Para além dos livros publicados em 1977-78, o que ele conseguiu organizar foi muito pouco, como se calcula. Depois é que vem o planeamento de Mécia de Sena. A posteridade de uma obra é uma consequência, não se antecipa. A posteridade de Jorge de Sena está nas mãos de cada um de nós. É responsabilidade de todos e de cada um. A posteridade de um autor é uma questão literária, mas é também uma questão política, de cidadania.
Poucos poetas terão produzido, como Jorge de Sena, uma imagem tão viva, tão magoada do exílio. O que é que nele era diferente?
Não sendo o único, Jorge de Sena é um dos grandes poetas do exílio, na longa tradição que vem de Ovídio e Dante, e seguramente um dos maiores da língua portuguesa. Como diz Edward Said, o exílio é uma condição terminal. A poesia de exílio de Jorge de Sena dá continuidade, como também no caso de Camões e da sua glosa do salmo 136, àquele canto de exílio ansiando por uma Jerusalém celeste ou terrestre, pelo regresso a paraísos perdidos, pela restauração de uma condição divina que não é deste mundo. Exílio interior, exílio político (físico, existencial) e exílio metafísico, exílio dentro e fora da pátria, em Portugal, no Brasil, nos Estados Unidos, eis a conjunção de exílios que diz o poeta Jorge de Sena: “exílios exilados de exilada terra”.
Por fim: quer dirigir-se aos seus contemporâneos?
Creio que as minhas respostas podem valer como tal.


Teresa Carvalho, Jornal i, 04/06/2018

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