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sábado, 28 de setembro de 2019

Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho




ESTAMOS VIVOS E NÃO TEMOS TEMPO

1. Foi uma excelente ideia ir buscar ao texto complementar de atualização que Robert Bréchon escreveu para a história da literatura portuguesa de Georges Le Gentil (Editions Michel Chandeigne) uma excelente síntese da poesia de Gastão Cruz e colocá-la nas badanas do seu último livro, "Pedras Negras". Porque as inevitavelmente breves linhas que Bréchon consagra a cada autor são sempre muito mais do que um alinhavar apressado de qualificações. E porque no caso de Gastão Cruz elas apontam em meia dúzia de palavras o essencial. Dizem o seguinte: "Um lirismo crítico em que a inteligência, a cultura (nomeadamente de língua inglesa) e a consciência da linguagem velam na orla da obscura floresta que o poema é. Na sua obra as paisagens são verdadeiramente estados de alma. E poder-se-ia dizer, retomando as suas próprias metáforas, que a poesia é ao mesmo tempo o fogo que o devora e a água que extingue este incêndio da alma".


No caso de "Pedras Negras", livro publicado pela Relógio d'Agua no final de 95, estamos diante de um texto que confirma e reforça todas as observações de Bréchon - só que a intensidade e a coerência deste livro são aqui levadas a um extremo que nunca tinha sido atingido por este autor. Sabemos que Gastão Cruz é um nome ligado à dinâmica criada em torno da revista "Poesia 61", de que foi ao mesmo tempo animador e teorizador. Sabemos ainda como os anos 60 foram os derradeiros de um processo que definiu o avanço da modernidade, e que consistia em fazer emergir em cada geração um pico de radicalidade simultaneamente polémica e afirmativa polarizada em torno de uma teoria e de uma revista ou de uma coleção. "Poesia 61" apareceu assim como a manifestação de uma elevada e mesmo exaltada consciência da densidade textual do poema, apoiada numa leitura muito atenta dos clássicos (de Camões a Sá de Miranda, da lírica medieval a Blake, de Dante a Camilo Pessanha), e que recusava as explosões discursivas para valorizar a emoção implosiva: o poema rebentava para dentro e disseminava os estilhaços da sua catástrofe num reduto extremamente concentrado de palavras. Atitude de recusa às facilidades de uma exausta hemorragia surrealista, mesmo quando em Luiza Neto Jorge o surrealismo reaparecia sob outras formas mais violentas. Atitude que, por outro lado, sufocava o sujeito lírico numa cápsula de linguagem, o que poderia talvez encontrar metáforas e referências de primeira qualidade na evolução teórica e criativa de Carlos de Oliveira. De qualquer modo, é entre esta atenção à materialidade da escrita e a distração deambulatória e voluntariamente fragmentada da grande poesia dos anos 70 que se colocam os parâmetros de toda a literatura dos nossos dias.
2. Tem razão Bréchon quando nos diz que "na sua obra as paisagens são verdadeiros estados de alma", desde que não se deduza daqui que estamos perante uma atitude de espiritualização do real. As paisagens são estados de alma porque elas reenviam para uma visibilidade evaporada - é mais por defeito do que por afirmação. E os estados de alma são paisagens porque há neles um acentuado índice de impessoalidade (ou melhor, de uma subjetividade impessoal, de rosto velado e mãos errantes). E isto que nos situa no inconfundível registo da poesia de Gastão Cruz: uma oscilação entre uma escassez de apoio referencial e um excesso de espessura do lado do objetual. Donde, o poema não se fecha em si próprio, longe disso, mas remete para qualquer coisa que nos aparece como "uma matéria negra" (para utilizar a excelente expressão de um interessante livro de teoria literária de Manuel Frias Martins). Ou, se quisermos, nos termos de Bréchon, para “a orla obscura da floresta". Se neste último livro nos sentimos tão intimamente afetados, é porque nunca esta obscuridade foi tão obscura.
Saliento ainda outro ponto. Por manifesta influência camoniana, Gastão Cruz, foi sempre um poeta sensível às reversibilidades dialéticas: citando de novo Bréchon, a poesia é ao mesmo tempo o fogo que destrói e a água que extingue o fogo. Mas este processo recorta-se contra um fundo indialetizável. O que define o livro "Pedras Negras" é o facto de que o indialetizável cresce, o deserto cresce, o não-tempo cresce, a morte avança sobre os lugares da vida. Há uma luta entre "o líquido frio indivisível" e “os veios do visível divisível". Assim se lê no belíssimo poema "No mar": "Queremos ouvir-te respirar, / mundo mudado, os que no mar excêntrico / soltam braços, lembrados de que / o ar / não os pode salvar. Mas é idêntico / ao ar o mar sem / centro, figura // que fulgura fora do teu / corpo de mármore, lavrado / pelo tempo, mundo a / que não pertencem os náufragos / amados e um dia perdidos / nesse líquido frio / indivisível. Se pudessem ouvir // o teu sopro, seriam / devolvidos aos veios do visível / divisível? As estrelas de / sombra desfazendo / um céu sem falhas deixariam / cair sobre eles / de novo a sua cinza." Sublinhe-se: se a respiração pudesse porventura salvar os náufragos, as estrelas da sombra acabariam por vencer: sobre eles cairia de novo a implacável cinza.
E porquê? Porque o domínio da "mão escura" é hoje simultaneamente do lado da vida e do lado da morte. Que a morte seja cada vez mais morte, isso apenas significa que a intensidade do negro é infinita (a pintura de Soulages não diz outra coisa): "Sem formas igualmente está a casa / o que a torna infinita". Mas que a vida seja cada vez mais algo que se inclina para o lado da morte, isso quer dizer que o indialetizável aumenta na medida em que o tempo se retira do próprio tempo: "É outra vez setembro. A tarde / rege o dia / O presente regressa Chove de // leve na areia fria / Os meses não começam Estamos sempre / encerrados no corpo que nos resta // O passado escurece / Os meses não regressam / Estamos vivos e já não temos tempo."
Pedras negras? Sim, aquelas que atravessam o tempo: "Manishutsu rei de Akhad fez narrar / que os seus barcos cruzaram / o mar inferior / e depois de vencidos trinta e dois / reis extraiu dos montes pedras negras // Atravessou o mar para buscar / a pedra onde a mensagem perdurasse / Mil quinhentas e dezanove casas / de escrita no obelisco estão gravadas / Mais de quatro mil anos já passaram". Donde, as pedras negras atravessam o tempo. O desejo louco que move este livro é que as pedras atravessem o tempo e o não-tempo, o dialetizável e o indialetizável – que sejam negras para isso, para poderem passar. Assim: "Tu, // guia, que dormiste o derradeiro / sono do fogo ouvindo no abismo / o sopro da serpente e me guardaste / desse vento que se move / o mar do pensamento, / busca, pedi, do mar profundo a porta // que na selva da luz se oculta, cava / na parede do / dia a realidade Para / fora do sonho me guiaste / Das palavras passadas descuidado / cego do anjo que o gelado rio // como serpente outra serpente guarda / as suas asas como escada usaste / para subir à cúpula fechada / Na clausura do tempo abriste um / arco e saímos por / ele a ver de novo os astros"


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras & Sons do jornal Público. Sábado, 1 de junho de 1996.




Pedras Negras, de Gastão Cruz – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 28-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/gastao-cruz-por-eduardo-prado-coelho.html



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