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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Vulcão, de Luís Miguel Nava – Crónica de Eduardo Prado Coelho



UMA ESTRADA QUE LEVASSE AO MAR

1. Talvez a temática mais insistente de Luís Miguel Nava possa transgredir a pauta de expectativas que o "leitor normal" tem em relação ao lirismo. Talvez a construção enredada, e extremamente meticulosa, dos seus poemas seja uma provocação para os apreciadores de formas escultoricamente elegantes e supostamente espontâneas. Talvez ainda a visceralidade desta escrita possa aparecer a alguns como uma falta de tacto ou um defeito de gosto. Talvez. Mas estas mesmas razões levam-me a pensar que nos encontramos, e sobretudo com o seu livro mais recente, "Vulcão" (Quetzal), perante uma das experiências literárias mais originais, perturbantes e apaixonantes da poesia portuguesa contemporânea.
Seja nos testos de configuração mais tradicional, seja nos fragmentos em prosa, que se aproximam por vezes da pura ficção narrativa, a marca inicial na obra de Luís Miguel Nava pode ser designada como uma forma emaranhada de dispor das palavras e de desenrolar o fio sintático da exposição. E isto verifica-se não apenas pela recusa de uma ordenação sequencial de sujeito a predicado, mas também pelo gosto de começar quase sempre por uma ponta perdida, um complemento desgarrado, uma circunstância fortuita, para depois nos impor um verdadeiro percurso por entre as palavras - "uma estrada que levasse ao mar"; e o leitor só pode repetir com o autor que "tinha de por ali haver uma estrada que levasse ao mar, que no seu halo matinal nos envolvesse, entre neblinas e fragrâncias, dessas que, até quando o escuro se apodera das raízes, continuam sempre a verdejar". Significa isto que o trabalho de leitura implica um esforço de desenredamento que corresponda à densidade do emaranhado textual. Contudo, nada mais fácil para um leitor que goste de avançar por dentro das palavras e do tecido que as une, e vá deixando nelas, como marcas na floresta, incisões de cumplicidade e reconhecimento. Esta poesia é sempre um movimento de simplificação. Quando a ele se adere, e aceitamos o rigor na sinalização dos caminhos, tudo se toma fácil e partilhável.
Existe ainda uma segunda marca distintiva, que á a iniludível crueldade, entre a memória erótica e a brutalidade cirúrgica, das formas de abordar a matéria do corpo. Embora o tema essencial seja deliberadamente “clássico”, tanto na poesia como na filosofia, e tenha essencialmente a ver com as relações entre a alma e o corpo, o que em nós resiste de início a esta forma de abordagem é o modo insistentemente imaterial como o corpo se decompõe e o modo pesadamente físico como a alma se encosta em nós à roupa e às vísceras, mas sobretudo o brutal curto-circuito que se opera do lugar do sujeito e da consciência: “estalara-lhe de tal forma o eu que o próprio nome era uma ferida...". Entre o poço e o céu, entre o pus e a luz, não há lugar, bem previsto nem cativo, para o sujeito lírico, e sobretudo não há identidade confortável que se possa assumir. Com enorme precisão no traço, e uma sempre vincada visualidade, cada texto de Luís Miguel Nava implica a construção em nós próprios de um corpo glorioso, isto é, de um lugar de encontro, sideração e amor.
2. Leia-se O primeiro poema: "A carne que os guindastes/ suspendem, minha,/ rente à fosforência/ no abismo dos dias,// a mesma onde a rasura/ do tempo abre interstícios/ estendendo-a no mármore,// as máquinas que os astros/ perfuram erguem-na às alturas/ do espaço ou das colunas/ de que se nutre o tempo,// noite onde os astros/ escondem as raízes/ ou ramo de glicínias/ em dedos sufocados, carne/ onde inda vibram/ do extinto amor os ecos."
Como se pode facilmente ver, a entrada na matéria (expressão perfeitamente adequada às circunstâncias) não é sintaticamente evidente, uma vez que "a carne que... as máquinas erguem-na às alturas", embora este fio de sentido se duplique no facto de as máquinas que erguem serem aparentemente equivalentes aos "guindastes que suspendem" que aparecem na proposição relativa. De caminho, essa carne subjetiva-se através de um possessivo, "minha", e ganha um estatuto de fronteira "rente à fosforência" (que se irá repetir na vibração final proposta pela forma clássica "do extinto amor os ecos"), mas, ao mesmo tempo, torna-se mortuariamente anónima, ao deixar que "o tempo nela abra interstícios", "estendendo-a no mármore". Também não podemos deixar de vacilar um pouco na expressão "que os astros perfuram" (e que é mais facilmente compreensível se lermos noutra ordem: "as máquinas que perfuram os astros", o que designa nelas uma espécie de gigantismo e violência), tendo em conta que os mesmos astros vão também surgir na sua relação com as “raízes”, imagem que aparece comparada a uma outra em que se inscreve a dureza muda da relação amorosa: "ou ramo de glicínias em dedos sufocados". Note-se que um processo de transporte poético suspende esta “carne" ao verso anterior, isto é, aos "dedos sufocados”, tal como um guindaste a ergue antes de entregar o corpo ao demorado esvaziamento da sua carga afetiva (e podemos ler "carga" no sentido elétrico, como uma pilha carregável e descarregável).
Toda a experiência do leitor é deste tipo, isto é, corresponde a um percurso rigorosamente balizado pela surpresa das palavras, pela guinada das viragens semânticas, pela passagem incessante do exterior e do interior, do microcosmos ao macrocosmos, pelos ângulos sintáticos, e pelas convulsões e espasmos da matéria verbal. Alguns poderão pensar que estamos aqui perante a superstição formal da textualidade, o que seria, ou será, um rastro dos anos 60, mas é preciso sublinhar que em Luís Miguel Nava todo o poema é sempre muito mais do que isso, é um corpo que a si mesmo se agride, de si mesmo se desenreda, e em si mesmo se inventa como palavra, luz, irradiação, apelo ou chama libidinal, e as palavras acabam por ser, também elas, remetidas para o estatuto de pensos, ligaduras, restos de um lívido imaginário hospitalar, como gazes antiaderentes que emudecem as feridas e as iluminam por dentro. Que fica depois disto? Uma forma extrema, e agudíssima, de pensamento, mas de um pensamento reduzido à mais volátil e precária das marcas: "O que comera ao meio-dia encostou-se-lhe à memória, como a única coisa a que naquele momento ainda pudesse ir buscar alguma claridade. Vira nessa manhã um abutre poisado sobre o lavatório. Por causa disso, esquecera-se da cafeteira ao lume, tendo-a já depois encontrado quase vazia e o vidro da janela todo embaciado. Será também assim o pensamento, perguntou para si própria: algo volátil, capaz de embaciar um vidro?"
Num texto final, Luís Miguel Nava explica os mecanismos e fitos do seu trabalho: "Não foi sem dificuldade que este livro rompeu através dos interstícios do mundo até chegar às tuas mãos, leitor, para aí, como um deserto a abrir noutro deserto, criar uma irradiação simbólica, magnética, onde o branco do papel e o negro das palavras, essas cores que segundo Borges se odeiam, pudessem fundir-se e converter-se nessa outra a que, na enigmática expressão de Sá Carneiro, a saudade se trava." As dificuldades também nós as sentimos. A errância dos desertos está presente nesta leitura. Mas compensa: em cada instante, em cada página, "entre as nossas mãos e a alma", alguma coisa acontece. Podem chamar-lhe amor. Ou, se preferirem, "a ininterrupta convulsão do oceano".


"Uma estrada que levasse ao mar", crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 20 de maio de 1995.




Vulcão, de Luís Miguel Nava – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 23-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/luis-miguel-nava-por-eduardo-prado.html



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