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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Mário Dionísio, o professor exemplar – Crónica de Eduardo Prado Coelho





O PROFESSOR EXEMPLAR
1. Entre tantas coisas de que se faz a memória e o esquecimento de uma vida, como é que nós nos agarramos a meia dúzia delas e lhes encontramos uma espécie de sentido absoluto? Um dia, na margem de um trabalho que apresentei numa aula de Literatura Portuguesa do Liceu Camões, o professor pôs uma observação que tem estado presente em tudo o que depois escrevi ao longo de mais de 30 anos. Eu teria utilizado mais ou menos uma expressão deste tipo: ''Ventilemos agora o seguinte assunto." E o professor fez por escrito o seguinte comentário: "Cuidado com as ventanias neste outono traiçoeiro..." A partir daqui, as palavras que eu pensava ir utilizar num qualquer texto passaram a ser avaliadas em função deste critério simples: serão elas falsas e artificiosas como este "ventilar" – definitivamente banido do elenco das minhas metáforas –, ou merecerão outra forma de acolhimento? Havia aqui uma questão de gosto, evidentemente, mas também uma outra coisa, algo que eu poderia designar como uma espécie de ética da linguagem.
A observação de Mário Dionísio – porque era este o meu professor do Liceu Camões – tinha ainda um segundo aspeto que me deu que pensar: seria mesmo o outono que era "traiçoeiro", ou haveria algo de mais subtil no enredamento da frase? Por outras palavras, quando Mário Dionísio me vinha falar num "outono traiçoeiro", não seria isto uma forma de me dizer de um modo mais concreto e indireto que é a linguagem que muitas vezes nos trai?... A verdadeira questão consistia em compreender que vantagens resultavam para o conjunto da frase do facto de as palavras se redistribuírem segundo afinidades que não eram à partida as mais evidentes. Neste caso, a ideia de "traição" tinha acorrido em torno da palavra "ventilar”, que era manifestamente uma metáfora excessiva, metendo o vento onde não era chamado. Mas a "traição" também: apesar da minha frase ser infeliz, havia um certo exagero em dizer que ela me "traíra". Até que percebi que Mário Dionísio, ao empregar uma frase feita ("este outono traiçoeiro", isto é, frio e ventoso, capaz de nos “trair" com constipações e gripes) estava a fazer passar o excesso da metáfora de um lugar-comum da linguagem. Mais uma lição sobre o valor das palavras, o seu peso, a sua luz, a necessidade de as ponderarmos bem antes de as escrevermos nos nossos textos.
2. Tudo isto era para mim motivo de reflexão. Até por uma razão suplementar: na minha perspetiva adolescente, havia de um lado a instituição, com as suas leis e a sua ordem, e aqueles que eram os representantes dessa ordem, categoria onde colocava os professores. Ora Mário Dionísio vinha confundir por completo esta perspetiva: as informações que me chegavam por outras vias, fundamentalmente por intermédio dos meus pais e dos colegas da época da Faculdade, davam-me uma outra imagem de Mário Dionísio, como alguém que punha em causa a ordem existente, essa ordem que para mim se confundia com múltiplas coisas da "ordem do Liceu Camões", desde o reitor e a obrigação que nos impunha de usar gravata, até às manifestações da Mocidade Portuguesa. Mas Mário Dionísio era, na memória de amigos e colegas, o escritor socialmente empenhado, o intelectual ligado ao Partido Comunista, o teórico do "neorrealismo" e ainda o combatente antifascista que sempre havia lutado contra o regime de Salazar. Acrescentarei ainda outro ponto: os seus críticos diziam, e eu podia começar a ler coisas dessas nos jornais, que ele não dava a importância necessária à "forma" da linguagem, e apenas se interessava pelo "conteúdo" dos textos, e isso colava mal na minha cabeça com a "lição" que ele me havia dado a propósito da palavra "ventilar" e das "traições" que aparecem acompanhadas a certas formas. Tudo isto fazia que Mário Dionísio, com o seu inevitável cachimbo, a serenidade irrepreensível das suas aulas, o rigor do que nos ensinava, a simpatia um pouco distante e severa com que nos tratava, me surgisse simultaneamente como uma espécie de enigma, combinação estranha de ordem e contestação da ordem, de formas e conteúdos contraditórios, e como o exemplo incontestável de "o professor" – não o "professor" enquanto funcionário de uma ordem institucional, mas o "professor" enquanto lugar infinito de saber e modelo de vida.


3. Enigma, disse. E foi isso que me provocou o desejo de ler Mário Dionísio. Li tudo o que podia. Incluindo textos antigos e de acesso difícil, como a famosa "ficha 14". Contudo, cada texto que lia aumentava o enigma – é isso a literatura: avançarmos na clareza, no limite da transparência, de um enigma, que é tanto mais enigma quanto mais se parece aproximar dessa transparência inalcançável. Sei agora – Mário Dionísio anunciou-mo, ao agradecer o exemplar de "Tudo o que não escrevi" – que existe um "diário" de Mário Dionísio, que espero que em breve venha a ser publicado. O mais adolescentemente possível, imagino que nestas páginas irei compreender finalmente esta distância transferencial em que "o meu professor" tanto contribuiu para estruturar o meu universo (tanto naquilo em que o procurei "seguir" com[o] naquilo em que sei que o "traí", até porque há mais ventos e outonos traiçoeiros do que nós os dois podíamos supor). Imagino, enquanto leitor que as espera com ansiedade, que elas irão trazer a palavra esclarecedora e definitiva, sabendo, no, mais fundo de mim próprio, que o efeito será precisamente o contrário. Até porque não posso deixar de pensar que o enigma da escrita de Mário Dionísio tem muito a ver com o enigma, e a tragédia, da escrita deste século.
4. Não só da escrita, mas da não-escrita – e este ponto parece-me fundamental. Tão importante é aquilo que Mário Dionísio foi escrevendo e publicando como importante é aquilo que Mário Dionísio foi silenciando, num silêncio que não foi apenas reserva e resistência, mas ajuste de contas, terrível certamente, com uma certa forma de impossível. Digamos por outras palavras: o impossível de continuar a acreditar numa ideia demasiado forte e empolgante, e o impossível de deixar de acreditar. Prende-se a isto uma questão essencial, que eu gostaria por agora de formular deste modo: como nos será possível manter a responsabilidade ética e política da literatura, que é não apenas a responsabilidade de romances e livros de poesia, mas também a responsabilidade única de uma só palavra, seja ela o infeliz verbo “ventilar", sem cairmos nas modalidades desastradas, e por vezes intoleráveis, das figuras mais ou menos exaustas da intervenção intelectual tradicional?

“O professor exemplar”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 27 de novembro de 1993.


CARREIRO, José. “Mário Dionísio, o professor exemplar – Crónica de Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 10-10-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/10/mario-dionisio-o-professor-exemplar.html


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