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segunda-feira, 23 de março de 2020

Eu quero amar, amar perdidamente!, Florbela Espanca





Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

Florbela Espanca, Charneca em Flor, 1931

***


“Amar”, de Florbela Espanca  |  Paráfrase do soneto, por José Junior
No primeiro quarteto, uma voz poética manifesta o desejo de amar, e quer fazê-lo plenamente, não importando compromissos, o lugar, os parceiros, deixando clara sua opção pelo amor livre, o que inclui deixar de amar segundo sua vontade.
No segundo quarteto, essa mesma voz recusa as hipóteses de apego à pessoa amada e nega a possibilidade de amor para a vida inteira.
No primeiro terceto, apresenta-se a efemeridade da vida, com sua única primavera, sendo necessário cantar essa estação com a voz dada por Deus para esse fim.
No segundo terceto, a voz poética reconhece que um dia chegará a morte, mas que esta, análoga à noite, deve fundir-se ao dia na alvorada. Assim, perdendo-se de tanto amor, haverá sentido para a efêmera existência.

“Amar”, de Florbela Espanca  |  Análise do soneto, por José Junior
Reduzida a complexidade da manifestação do texto, a paráfrase feita já permite uma apreensão mais clara do recorte discursivo, confirmado pelo desenho da estrofação. Evidência disso é a distribuição do tema do amor (livre) nos quartetos e o da efemeridade da vida nos tercetos.
Duas isotopias temático-figurativas, repare-se, coincidem com o molde da estrofação, sendo uma social e outra existencial. A social figurativiza o comportamento que identifico como o amor livre, prática evidentemente transgressiva, oposta, por exemplo, às coerções do contrato matrimonial. Já a existencial figurativiza-se sobretudo num plano cognitivo, ou seja, na consciência da efemeridade da vida, saber necessário para justificar a pragmática erótica, para não dizer heróica (feminina).
O primeiro desses temas, que toca o contrato social, apoia-se numa estrutura actancial, cujo programa narrativo revela um sujeito de estado em conjunção com o objeto-valor, figurativizado no paradigma do amor livre. Já o segundo, de natureza existencial, ganha sentido como representação de uma estrutura actancial em que o sujeito de estado, encontrando-se em conjunção com o objeto-valor vida, é cognitivamente manipulado para assumir o programa disjuntivo da morte.
Abstraindo-se a superfície da manifestação (o poema considerado como texto), os temas e figuras de seu nível discursivo (simulacro da enunciação) e a estruturação actancial do nível narrativo, é possível chegar ao nível mais profundo de abstração. Trata-se das categorias vida/morte, para a representação do âmbito individual, e natureza/cultura, para a tradução das convenções sociais.
Considerando-se a categoria natureza/cultura, o esquema positivo /não-cultura implica natureza/ confere um valor eufórico para as representações da liberdade de escolha, abonada textualmente por "amar perdidamente", expressão intensificada pelo advérbio, ao qual se somam dêiticos adverbiais, como "aqui... além...", e pronominais, como "Este e Aquele, ou Outro", uns e outros semanticamente ligados ao aspecto frequentativo. Por sua vez, o esquema negativo /não-natureza implica cultura/ é disfórico para o termo /cultura/, no que ganham sentido manifestações argumentativas, como as provocações dubitativas em "Recordar? Esquecer? Indiferente!... / Prender ou desprender? É mal? É bem?" ou a simulação de desmascaramento em "Quem disser que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!", concentrados no segundo quarteto, antitético, como se vê, em relação ao primeiro.
O esquema positivo /não-morte implica vida/ confere sentido às reiterações de "amar", desde o próprio título, e a lexicalizações como "Primavera" ou "florida". Já o esquema negativo /não-vida implica morte/ confere sentido a lexicalizações como "pó, cinza e nada" ou "noite", no terceto final.
O primeiro verso sugere o querer: "Eu quero amar, amar perdidamente!" Como modalidade endotática virtualizante, o querer "é a denominação de um dos predicados do enunciado modal que rege quer um enunciado de fazer, quer um enunciado de estado" (GREIMAS; COURTÉS, p. 406). Em outras palavras, opera-se a atualização das categorias vida/morte e natureza/cultura na dinâmica actancial, sabendo-se que os termos positivados no nível profundo passam a orientar os papéis narrativos.
Como modalização, o querer pressupõe uma manipulação e esta, por seu turno, a função de um destinador. No poema, o destinador e o manipulador estão implícitos, mas justamente essa implicitude os sugere como simulacro do sujeito da enunciação no que se poderia textualizar como uma "voz da consciência" do próprio destinatário-sujeito. Por outro lado, o percurso narrativo não se completa, visto que não está em questão propriamente o fazer (dimensão pragmática). Os dados textuais concentram-se na modalidade do querer sobre o enunciado de estado, o que sugere a conjunção do sujeito com o objeto-valor, reiteradamente representado pelo "amar", no plano da manifestação.
Esboça-se, em contrapartida, um antissujeito que negaria o termo /vida/, afirmando seu contrário /morte/, e que negaria o termo /natureza/, afirmando as coerções próprias da cultura. Sugere-se, assim, pelo menos como virtualidade, um conteúdo polêmico no fragmento narrativo estabelecido nos limites impostos pelo texto.
A condensação da estrutura narrativa em torno do predicado modal – o querer – explica-se pela dimensão cognitiva de sua construção, caracterizada pela "atrofia do 'o que acontece' do componente pragmático" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 66). É o que se pode comprovar na apreciação do nível discursivo da geração dos sentidos. Nesse nível, constrói-se toda uma estratégia persuasiva, quando o ser se superpõe funcionalmente ao fazer.
Visto como discurso, o poema representa um fazer persuasivo de um sujeito cognitivo. Para tanto, a voz discursiva recorre, em termos de semântica discursiva, ao tema do amor, que atualiza o termo profundo /vida/, e ao tema da liberdade afetiva, que atualiza o termo profundo /natureza/. O poema simula a enunciação na forma de uma debreagem enunciativa, o que se comprova no nível da manifestação pelo emprego da primeira pessoa, desde o primeiro verso, iniciado por "Eu quero amar".
Como o enunciatário não é totalmente explicitado, o discurso ganha a aparência de monólogo interior. No entanto, marcas textuais dubitativas como "Recordar? Esquecer? Indiferente! ... / Prender ou desprender? É mal? É bem?" trazem para o diálogo vozes polêmicas. Se são polêmicas, sugerem a virtualidade de um antissujeito, cujo papel visa negar os termos /natureza/ e /vida/, atualizados pelo querer, no plano narrativo, para afirmar os termos /cultura/ e /morte/.
O soneto revela uma tendência temática nos quartetos e figurativa nos tercetos. O discurso desenvolve-se, assim, do mais abstrato (tese e antítese) para o mais concreto (demonstração e conclusão).
No quarteto inicial, é proposta a tese, quando é explicitado o querer-fazer e afirmado um estado conjuntivo com o objeto-valor representado pelo amor. Nesse quarteto, no tocante ao tema do amor e sua figurativização, manifestada pelo infinitivo "amar", é notória a multiplicidade de situações virtualizadas pelo sujeito da enunciação, segundo o esquema |sujeito: eu| |fazer virtualizado transitivo: amar| |objeto: Este / Aquele / Outro / toda a gente/ ninguém| |circunstância: perdidamente / só por amar / aqui / além|.
Note-se a tematização do gênero em |Este / Aquele / Outro|, o que sugere um sujeito feminino único |eu| ante o objeto masculino múltiplo, paradigmaticamente disposto em tripla amostragem pronominal, sendo a primeira indicativa de proximidade (Este), a segunda de distância (Aquele) e a terceira de alternância (Outro). O emprego dessas formas pronominais, que aliás aparecem no texto com iniciais maiúsculas, no lugar de antropônimos ratifica a predominância do plano temático sobre o figurativo, acentuando o caráter paradigmático da marcação desses atores associados à masculinidade. Note-se, ainda, que a dimensão pragmática funciona não como modalidades realizantes, mas como "pretexto para atividades cognitivas" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 65), já que vigora o valor modal do querer.
No segundo quarteto, contrapõe-se a antítese, na forma de interrogações, sendo a contra-argumentação disjuntiva ("Recordar? Esquecer?" / "Prender ou desprender? ") e polêmica ("É mal? É bem?" / "Quem disser") prontamente refutada pelo sujeito cognitivo, seja pelo desdém de um "Indiferente!", seja pelo desmascaramento de "é porque mente!". Nesse quarteto, em que aparece a contra-argumentação, as reiterações disfóricas mostram-se antípodas da isotopia temática proposta como tese. Na perspectiva do antissujeito, os contrapontos do conjunto virtualizado do fazer pressupõem uma disjunção do objeto-valor representado pelo amor, o que se confirma em /Recordar / Esquecer / Prender ou desprender/.
Ainda no segundo quarteto, esboça-se uma experiência veridictória, manifestada pelas interrogativas "É bem? É mal?". O sujeito cognitivo põe em dúvida a competência do antissujeito (ou interlocutor implícito), ou seja, desautoriza seu fazer cognitivo. A desautorização da competência do oponente configura-se como um desmascaramento, visto que a negação do ser e a afirmação do parecer revelam a mentira, fato confirmado no nível da manifestação: "Quem disser que se pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!" Ora, como a revelação da mentira denuncia a hipocrisia de uma vida de aparências, sob a figurativização de um "até que a morte os separe", não resta dúvida de que o sujeito que simula a enunciação assume-se como transgressor.
Se nos quartetos predomina a multiplicidade de representações paradigmáticas virtualizantes da conjunção com o objeto-valor transgressivo do amor livre, segundo a categoria natureza/cultura, nos tercetos tem lugar a intensidade com que se representa a conjunção erótica do sujeito com o objeto-valor vida. Para fazer-crer seu projeto transgressor, sabendo-se que se trata de "obra do enunciador encarregado do fazer persuasivo" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 107), o sujeito instalado pelo enunciador propõe uma demonstração mais palpável em favor de sua tese do amor livre.
É o que se desenvolve no primeiro terceto, com a figurativização da primavera, cuja isotopia reforça a tese do amor livre e natural. Para além da sazonalidade, "Primavera" figurativiza o tema da efemeridade existencial, visto que "Há [só] uma Primavera em cada vida", devendo ser desfrutada "assim [=enquanto está] florida". O louvor de seu desfrute passional, em "É preciso cantá-la", conecta outra isotopia, ou seja, o tema do dom, figurativizado na imagem de Deus, de modo a sacralizar essa etapa argumentativa. Como correm paralelos e euforizados os termos /vida/ e /natureza/, não há como não identificar, sob a figurativização de uma vida intensamente vivida, a recuperação do tema do amor livre, já extensa e reiteradamente virtualizado nos quartetos, mas agora condensado no paradigma metafórico da primavera.
O terceto final é prospectivo, com sugere a entrada "E se um dia", sendo organizado pelo tema disjuntivo da morte, figurativizado na gradação bíblica "pó, cinza e nada" (Gênesis 3:19), que enriquece a isotopia figurativa do sagrado, manifestada pelas ocorrências anteriores de "cantar [louvar]", "Deus" e "deu" [o dom]. Outra figurativização da morte vem no cronônimo alegorizante de "a minha noite". Ressalte-se que o estado vindouro vem lexicalizado por formas do verbo ser, ou seja, "hei-de ser" (certeza), e "seja" (probabilidade), manifestações de ordem epistêmica, características da dimensão cognitiva do discurso, particularmente na axiologia do fazer persuasivo/interpretativo.
Seguindo a tradição do soneto, constituindo, pois, marca da competência enunciativa, impõe-se o recurso estilístico terminativo da chave ou fecho de ouro, ou seja, o oferecimento de uma solução surpreendente como arremate do discurso. Neste caso, ao recurso da gradação, no verso inicial da estrofe, acrescentam-se dois paradoxos, manifestados pelos pares "noite"/"madrugada" e "perder"/"encontrar". Trata-se de variação figurativa para o mesmo tema, que se poderia textualizar como uma vida vivida em plenitude erótica, vale relembrar, de conotação transgressiva. No primeiro caso, é paradoxal a superposição da noite (/morte/) ao dia (/vida/). Em outras palavras, faz-se uma operação de aspectualização temporal, de modo a negar o caráter terminativo da |noite/morte|, emprestando-lhe semas contextuais durativos com a evocação da "madrugada". A aurora seria a um tempo noite e dia, ou seja, termo complexo e figurativização da dicotomia vida/morte. No segundo caso, inscrita no último verso do soneto, a ocorrência de "perder-se" recupera a lexia de "amar perdidamente", que aparece no primeiro verso, valendo ressaltar seu viés transgressivo, no que pode provocar a sanção moral sobre o ser e o fazer livres. Enfim, superpõe-se paradoxalmente a intensidade erótica da conjunção com a vida por sobre a conjunção com a morte. Erotizada a morte, esta se ressignifica como objeto-valor do querer-fazer do sujeito, cuja competência de livre disposição sobre o amor já foi suficientemente argumentada no âmbito discursivo.

Ler mais: Discussão, com a avaliação do problema levantado sobre a relação entre a forma conservadora e o conteúdo transgressivo do soneto. Disponível em:
Transgressão e segredo num poema de Florbela Espanca”, José Leite Oliveira Junior. CASA - Cadernos de Semiótica Aplicada Vol. 11.n.1, julho de 2013.

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CARREIRO, José. “Eu quero amar, amar perdidamente!, Florbela Espanca”. Portugal, Folha de Poesia, 23-03-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/03/eu-quero-amar-amar-perdidamente.html


 

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