UM TEXTO
DE MARIA VELHO DA COSTA
Em
Outubro de 1973, recebi no interior da Guiné mais uma daquelas encomendas que o
meu querido amigo e poeta J. H. Santos Barros me ia fazendo chegar como
contributo para a minha sanidade mental e sobrevivência no pântano. Era a
manifestação possível de amizade por parte de quem já fizera a sua experiência
de sobrevivência em Angola.
Essa
encomenda incluía um precioso livrinho de Maria Velho da Costa, «Desescrita»,
editado nesse mesmo ano e que trazia um notável texto curto intitulado «Ova
ortegrafia». Publicado anteriormente no jornal «República» em Junho de 1972,
era um inteligente e sagaz exercício literário e linguístico sobre a censura,
melhor dizendo, sobre os censores, os «cortadores» da palavra, da língua.
Convocando,
em registo derrisório, alguns chavões do
discurso político dominante e também os preconceitos contra o experimentalismo
literário, mimetizando a «escrita do
corte» (a cortegrafia), «Ova Ortegrafia»
constituía ainda assim uma manifestação de experimentalismo, instaurava no seu
interior imprevistas e subtis derivas semânticas e constituía uma denúncia da
instituição censória, jogando abertamente no terreno do inimigo, a quem o texto
seria dado a ler.
Deixo
abaixo o texto, em dupla evocação: da
autora e de J. H. Santos Barros, falecido
abruptamente a 20 de Maio de 1983.
OVA
ORTEGRAFIA
Maria
Velho da Costa
Ecidi
escrever ortado; poupo assim o rabalho a quem me orta. Orque quem me orta é
pago para me ortar. Também é um alariado. Também ofre o usto de ida. Orque a
iteratura deve dar sinal da ircunstância, e não tem ustificação oral. E ais
deve ter em conta todos os ofrimentos, esmo e rincipalmente os daqueles ujo
rabalho é zelar pela oralidade e ordem ública – os ortadores.
Eu acho
que enho andado esavinda omigo e com a grei, com tanta iberdade de estilos e
emas e xperimentalismos e rocadilhos que
os ríticos e eitores dizem arrocos e os
ortadores, pelo im pelo ão, ortam. A iteratura eve ser uma oisa éria e
esponsável. Esta é a minha enúncia ública. (Eço esculpa de esitar nalguns
ortes, mas é por pouco calhada neste bom modo de scrita usta ao empo e aos
odos).
Izia eu
que o ortuguês que ora, nesta ora de rudência e sforço, se não reduz à orma imples,
não erve a vera íngua da Pátria. (Por enquanto só orto ao omeço, porque a arte
de ortar não é fácil; rometo reinar-me até udo me aír aturalmente ortado e ao
eio e ao im).
Outros
jovens me eguirão o rilho. Odos não eremos emais para ervir na etaguarda os
que, em árias frentes, por nós se mputam.
A issão
do scritor é dar estemunho e efrigério aos e dos omentos raves da istória, ao
erviço dos ideais da sua omunidade; ervir a oz do ovo, espeitar a oz dos
overnantes egítimos.
Olegas,
em ome da obrevivência da íngua, vos eço pois:
Reinai-vos
a ortar-vos uns aos outros
como eu
me ortei.
(«Desescritas».
Afrontamento, 1973)
CARREIRO, José. “Ova Ortegrafia, Maria Velho da Costa”. Portugal, Folha de Poesia, 24-05-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2020/05/ova-ortegrafia-maria-velho-da-costa.html
Maravilha!!!
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