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sábado, 25 de setembro de 2021

Jácome Armas, Conjunto Homem




Conjunto Homem é tanto uma experiência literária como um ensaio filosófico. Um pensamento que tem como referências L. Wittgenstein ou Gonçalo M. Tavares e que articula de forma original conhecimentos da lógica formal, da psicologia e das neurociências. Apresenta-se como uma simples demonstração da incapacidade do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma crítica ao racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma tentativa de utilização de recursos estilísticos em provas da lógica formal e científicas.

 

“A Companhia das Ilhas apresenta Conjunto Homem Jácome Armas”, http://companhiadasilhas.pt/wp-content/uploads/2015/12/press-kit-Conjunto-homem.pdf [Upload: 2015-12-02]

 

 

Carta 1 Da Natureza para o Homem

 

Caro Homem, disse a Natureza, sabias que o teu maior erro foi teres inventado o espelho?

 

(E o Homem sentiu-se estúpido: não sabia.)

 

Mas não, disse a Natureza.

 

(E o Homem sentiu-se ainda mais estúpido: tinha sido enganado.)

 

Então a Natureza disse: O teu maior erro foi teres coberto o Mundo com espelhos. Agora, sem te aperceberes, sempre que olhas pela janela e tentas pintar o que vês, acabas por pintar-te a ti próprio. No fim, ainda levantas o quadro e dizes: O Mundo.

 

(O Homem ouviu, calou-se e saiu convencido de que ia provar à Natureza que era capaz de ver o Mundo e todas as suas cores.)

 

(Até hoje o Homem falhou.)

 

Jácome Armas, Conjunto Homem (ilustrações de Pedro Solá)

Lajes-Pico, Companhia das Ilhas, 2014, p. 11

 

Olhar para o mundo nunca consiste numa relação neutra de apreensão. Para ver não basta abrir os olhos, para compreender não basta traduzir essa percepção para uma representação consciente. O ver está já condicionado pela representação e esta nunca é alheia à experiência do objecto. Os condicionamentos implicam-se e multiplicam-se, numa relação que não é estritamente cumulativa ou linear.

 

Pretender possível que a experiência humana tenha um acesso luminoso ao mundo na sua essência seria negar a própria ideia de cultura. Enquanto cultura, a experiência dá tanto a ver quanto deturpa para que o visível caiba dentro da percepção, das linguagens e das representações.

 

Esta relação entre a representação e o real surge como o problema central do livro Conjunto Homem de Jácome Armas (nascido em 1985, especializado em física teórica). É um livro híbrido e inquieto: nem ensaio nem poesia, mas um espaço problemático onde os temas são tratados com a liberdade de pensamento e de experimentação que ambos proporcionam.

 

No plano temático, a sua principal virtude é não reduzir o problema ao binómio representação/objecto, mas mostrar que ele implica um terceiro termo: o sujeito, o ser humano, entendido como sentimento e espaço de experiência representacional.

 

Neste sentido, perguntar pelo mundo é perguntar pelo homem e pelas suas linguagens, do mesmo modo que perguntar pelo homem significará inevitavelmente perguntar pelo mundo no qual se inscreve e com o qual interage. Interrogar a razão será desembocar no sentimento, interrogar o sentimento será desembocar nos limites da representação e da própria ideia de verdade. Perguntar pelo objecto é interrogar o sujeito, interrogar o sujeito é deparar-se com o objecto:

 

«Proposição 15 As janelas da tua casa são transparentes.

 

(De fora, o Mundo pode olhar para dentro e ver o estado da tua casa. Não tão bem quanto tu: a casa é grande e o alcnce do Mundo também tem limites. Àquilo que tu chamarias Sentimento o Mundo chamaria humor.)

 

Þ As entradas dos sentidos são duplas: se vês o Mundo o Mundo também te vê a ti e, claro, vês-te a ti próprio.»

 

Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12

 

 

O livro, de tom aforístico, é um trabalho de interrogação sobre a própria linguagem. Embora se estruture segundo o esquema aparentemente lógico de um encadeamento argumentativo (Definição, Proposição, Conjectura, Exemplo, etc.), ele subverte de facto a linearidade do discurso dedutivo, afirmando uma arbitrariedade lógica só acessível ao discurso da poesia:

 

«Lema 14 O humor nunca desaparece.

 

(Mesmo que feches todas as janelas o mundo vê sempre uma paisagem: as janelas fechadas.)»

 

Jácome Armas, Conjunto Homem, p. 12

 

 

Dedicado, entre outros, a Gonçalo M. Tavares e Wittgenstein (e assumindo com isso as dívidas e as influências), o livro adopta a dimensão de uma pesquisa que a si mesmo recusa as condições de verificabilidade. Tratar-se-á mais de construir os problemas do que de enunciar respostas, ou de não enunciar outras respostas que não aquelas que possam elas mesmas ser sujeitas à dúvida e à revogação.

Diferente será a questão de saber qual o critério de verdade (ou de qualidade, assumindo a preponderância do discurso literário no livro) a partir do qual a validade das teses é susceptível de ser avaliada. O género ensaio tem sempre como critério implícito de verdade a argumentabilidade das teses, a garantia de que elas sejam contra-argumentáveis. A literatura pode prescindir da argumentabilidade, acolhendo a possibilidade da aporia ou da contradição interna. Talvez resida aqui um dos principais méritos deste livro de Jácome Armas: ele escapa-se e questiona os critérios e a autoridade de ambos os registos.

 

Helder Gomes Cancela, blogue Contra Mundum Crítica, 2014-10-16

 

* * *

 

Para abrir, isto não é um artigo de crítica. Nem o Fazendo se dá a ares de espaço para resenhas, nem este escriba tem bagagem intelectual para uma análise crítica aprofundada a este livro, não obstante o facto de ter o seu autor em grande estima pessoal e condições praticamente nulas para escrever sobre o seu trabalho com um mínimo razoável de objectividade.

A primeira vez que li Conjunto Homem, quando o Jácome o acabou de escrever há alguns anos, entusiasmou-me sobretudo o humor acutilante da sua escrita e a refinada crítica ao New Age que está subjacente, luta em que nos unimos passados alguns anos da puberdade. A minha reduzida capacidade de analisar o objecto que tinha em mãos na altura (na verdade eram só algumas folhas agrafadas) deixou-me ao lado de outras ideias bem mais interessantes que o livro contém. Felizmente a recente edição pela Companhia das Ilhas, com as ilustrações do pintor Pedro Solá e uma “embalagem” mais jeitosa que as tais folhas agrafadas, de ume a oportunidade de o reler com uma perspectiva mais alargada (e conhecimentos que, embora muito superficiais, sempre me permitem identificar melhor as referências às ideias dos “ilustres” a quem o livro é dedicado).

Esses ilustres são Gonçalves M. Tavares, António Damásio, Godel, Wittgenstein, Russel, Oliver Sacks e Freud, e o Jácome garantiu-me que foi a eles a quem roubou as ideias. Apesar desse saque estamos perante algo muito diferente de uma mera colagem de ideias alheias. A reciclagem é total e, embora formalmente construído como uma demonstração matemática, está (felizmente) muito longe da tradição textual académica.

Trata-se, na forma, de uma demonstração lógica, constituída por proposições, axiomas, teoremas, etc., estilisticamente entra no plano poético (por vezes da parábola), e tematicamente no fi losófico, mas na realidade todas estas regras são subvertidas. Essa é uma das valências, objecto híbrido por natureza o bicho é difícil de enfiar em qualquer prateleira, e não perde coerência por isso. Conjunto Homem está dividido em três partes – Lógica, Percepção e Sentimento – e usa dois personagens principais como estereótipos – um matemático e um guru – que, pela sua visão redutora do mundo, vão sendo maltratados ao longo das páginas (com, diga-se de passagem, excelente efeito no domínio da exemplificação). Há um movimento que se vai criando durante o livro, parte da frieza racional no início e desemboca nos afectos. Os artifícios formais da demonstração e o encadeamento sequencial dos vários quadros que nos vão sendo apresentados cria, inicialmente, a ilusão de uma rigidez matemática, ilusão essa que se desconstrói a si própria até que nos desembrulha um ideal profundamente humanista. Uma apologia às relações humanas e do homem com a natureza, que se move entre os extremos do binómio razão/sentimento.

Neste sentido há um paralelo do livro do Jácome com a obra principal de Baruch Espinoza, Ética, que é inevitável (para lá das mais óbvias parecenças formais). O livro de Espinoza também se desenvolve como uma demonstração geométrica. Começa com conceitos “simples” sobre Deus e a natureza que se vão construindo e complexificando cada vez mais, chegando cada vez mais próximo duma descrição filosófica do que é o ser humano até que atinge aquilo que era a intenção inicial do autor: uma justificação lógica do dever ético; um apelo racional à ética nas relações humanas. O do Jácome consegue ser mais poético. Esconde quase sempre toda a bagagem filosófica e científica da qual parte, e dissolve-a por várias camadas de significado. No fi m chega a algo muito simples, e muito bonito.

 

Pedro Lucas, jornal Fazendo, 2014

 

* * *

 

Wittgenstein, numa tentativa de construir uma linguagem desambígua e universal, concluiu que há determinadas coisas que o Homem pensa e sente cuja expressão não poderá́ ser levada a cabo através da recorrência ao discurso lógico e coerente, mas sim à poesia. Um homem que se dedique à matemática – o Matemático – é um homem que domina o pensamento lógico. Se pudéssemos atribuir a este uma forma geométrica, diríamos um quadrado, não pela forma da sua silhueta, mas pela forma como vê o Mundo: uma estrutura rígida com ângulos rectos. Mas enquanto o Matemático pensa ser capaz de lidar com um crescente grau de complexidade, simplesmente porque é capaz de escrever numa folha de papel o símbolo ∞, existe outro tipo de homem – o Guru – para o qual ∞ não é mais do que um mero limite, inalcançável pela lógica. Conjunto Homem apresenta-se como uma simples demonstração da incapacidade do Homem para abranger a Natureza na sua totalidade, como uma crítica ao racionalismo e ao new age como visões completas do Mundo, e como uma tentativa de utilização de recursos estilísticos em provas da lógica formal e científicas.

 

Lélia Pereira Nunes e Irene Maria Blayer, “Saída: CONJUNTO HOMEM, de Jácome Armas”, in Comunidades, 2014-09-03




Sobre o autor:

Nascido no Faial, em 1985, Jácome Armas é, atualmente, um dos mais brilhantes físicos europeus. Licenciou-se em Engenharia Física pela Universidade de Aveiro, com uma passagem pela Irlanda, para estudar Física Teórica durante um ano no Trinity College, em Dublin, ao abrigo do programa Erasmus. Completou o Mestrado em Estudos Avançados em Matemática Aplicada na Universidade de Cambridge, Inglaterra, e o Doutoramento em Física Teórica no Niels Bohr Institute, na Dinamarca.

A sua vida é um bom exemplo de como o mundo se transformou numa pequena aldeia graças ao desenvolvimento tecnológico. A viver na Dinamarca, ensina Física Teórica na Universidade de Amesterdão, na Holanda. Há cerca de 10 anos, fundou o projeto “Science & Cocktails”, que potencia eventos onde se pode falar de ciência enquanto se ouve música, aprecia arte e desfruta de um bom cocktail, e que tem expressão na Dinamarca, na Holanda, na Bélgica e na África do Sul. Faz tudo isto com o Faial e os Açores sempre no pensamento.

Em 2014 a Companhia das Ilhas editou o seu livro Conjunto Homem, um ensaio filosófico que ilustra bem o seu ímpeto de descrever o mundo não apenas sob a perspetiva da ciência. Mais recentemente, já em 2021, a prestigiada editora britânica Cambridge University Press anunciou a publicação de Conversations on Quantum Gravity, livro onde Jácome Armas entrevista 37 físicos sobre a busca pela teoria da gravidade quântica.

 

Maria Pinheiro, “Jácome Armas – Espero, um dia, criar um centro de estudos avançados no Faial ou no Pico” in Tribuna das Ilhas, 2021-04-21 




 


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CARREIRO, José. “Jácome Armas: Conjunto Homem”. Portugal, Folha de Poesia, 25-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/jacome-armas-conjunto-homem.html


 

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