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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Antero de Quental tem inimigos

 


 

Antero de Quental tem inimigos. E merece tê-los. O horror seria se os não tivesse. Declarados, não são muitos. Em filigrana, são mais do que se imagina e, entre eles, vários candidatos a heróis que suportam mal que Antero tenha sido o primeiro deles nos tempos modernos.” 

Esta citação pertence a A Noite Intacta – (I)recuperável Antero, um daqueles títulos subversivos com que Eduardo Lourenço costuma batizar muitos dos seus ensaios. Mas este título, o mais indisciplinado de todos, traduz, só por si, sem recorrer a imagens estafadas (“o noturno e luminoso” de repetida e malfadada memória) a dualidades normalmente associadas ao nome do autor de Odes Modernas.

E como não teria e não tem Antero ainda inimigos tendo ele sido um temível polemista? Foi precisamente pela porta de uma polémica, Bom Senso e Bom Gosto ou Questão Coimbrã, que se deu a sua ruidosa e triunfal entrada na literatura portuguesa. Tinha 23 anos quando, no dia 2 de novembro de 1865, escreveu a célebre carta-folheto a António Feliciano de Castilho, verdadeira carta premonitória de finados pela poesia ultrarromântica e piegas que teimosamente continuava a florir no nosso jardim quando no jardim dos outros já há muito havia murchado.

O então autoproclamado pontífice das letras lusas não lhe respondeu em público “pois tinha mais que fazer”.1 Entregou essa tarefa aos aficionados que pululavam à sua volta. Em privado, porém, referia-se ao seu antigo aluno de Ponta Delgada e do Colégio do Pórtico, em Lisboa, como “pantero do quintal no seu antro de Celas, tolo e doido, parvo, zaranza, asno, javardo, bácoro que chafurda por Coimbra e, por fim, até espadachim velhaco, após o duelo de Antero/Ramalho.2

Dos numerosos folhetos que a polémica produziu, mais de quarenta, uns contra (de longe a maioria) outros a favor da chamada “Escola de Coimbra”, apenas dois ou três merecerão algum parco interesse, tão culturalmente ignorantes e retrógrados eles se apresentam nos seus ataques. Menciono apenas, de entre eles, o de Júlio de Castilho que, em socorro do pai, produziu um argumento, na sua ótica decisivo e arrasador, ao crismar de Lutero de Quental o seu “mais antigo amigo e companheiro de folguedos naquela abençoada ilha”. (São Miguel)3, insulto recebido pelo visado como um mais do que merecido elogio. Afinal tratava-se mesmo de uma Reforma triunfante e a força da razão literária e histórica da carta detonadora enviou praticamente para o esquecimento toda a restante papelada. E aqui convém, muito a propósito, recordar Manuel Bandeira: “Costuma apontar-se Eça de Queiroz como o modernizador da prosa lusa. Basta, porém, a carta Bom Senso e Bom Gosto para se provar que se houve reforma da prosa portuguesa ela já estava evidente no famoso escrito de Antero”.4

Seis anos passados, em 1871, a biografia de Antero de Quental regista outra polémica nascida no interior do Casino Lisbonense. A sua conferência, Causas da decadência dos Povos Peninsulares, foi alvo de provocações de toda a espécie, com destaque para os jornais católicos e legitimistas A Nação e o Bem Público que viam nas conferências ramificações da Comuna de Paris e nos conferencistas, agentes da Internacional, o que levou Antero a publicar a Resposta aos Jornais Católicos, considerada por Camilo Castelo Branco “uma das mais belas coisas e eloquentes que ainda lera em língua portuguesa”.5

Também a prepotência do encerramento compulsivo das conferências mereceu ao seu principal impulsionador uma violenta carta publicamente dirigida a António José d’Ávila, futuro duque d’Ávila, presidente do Conselho de Ministros. Violenta e merecida. Antero não ambicionava entrar na imortalidade, ou na glória efémera de quinze minutos, à custa de insultos gratuitos a um Primeiro Ministro, mas o encerramento foi muito mais do que uma injustiça, tratou-se de uma ilegalidade, até porque em Portugal registar-se-ia então “uma fenomenal liberdade de pensamento...somente ninguém se lembrava de pensar”.6

Mas em todas as polémicas onde deliberadamente entrou ou se viu envolvido, por vezes contra sua vontade, (bem mais das que aqui vão brevemente indicadas) Antero contou sempre com adversários que, bem ou mal, quase sempre mal, o contestaram publicamente e por escrito sem se esconderem sob qualquer anonimato. Nas palavras de Fidelino de Figueiredo, os textos das polémicas anterianas tinham o calor da convicção lutadora e assentavam sobre um fundo de ideias. Antero era um polemista que tinha sempre razão, ainda que pudesse alguma vez exagerar a sua própria razão.”7

E razão teve ainda, sem exagero algum, quando, ao escrever sobre a Teoria da História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, num ensaio que intitulou Considerações sobre a Filosofia da História Literária Portuguesa, (Porto, Livraria Internacional, 1872) por ele próprio qualificado como sendo o que de melhor fizera ou pelo menos de mais razoável em prosa, (na carta autobiográfica a Wilhem Storck, em 1887) foi miseravelmente insultado pelo seu antigo colega de Coimbra. A análise de Antero, serena, objetiva e muito bem argumentada, que aplaudia mas também desaprovava algumas passagens, divergindo assim do espírito de compadrio da época, provocou da parte do despeitado Teófilo a edição do folheto “Os críticos da História da Literatura Portuguesa” escrito bem ao estilo de José Agostinho de Macedo. “Duas palavras a propósito do folheto do Sr. Teófilo Braga mas não em resposta ao Sr. Teófilo Braga nem ao seu folheto”, foi a resposta de Antero, para Eduardo Lourenço “uma das mais desapiedadas que o nosso génio polémico tem suscitado”.8

 

Ana Maria Almeida Martins, “Antero De Quental e Eduardo Lourenço: textos de polémica”

in Colóquio/Letras, n.º 170, Jan. 2009, p. 84-94

Disponível em: https://xdata.bookmarc.pt/gulbenkian/cl/pdfs/170/PT.FCG.RCL.8820.pdf

 

 

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1 “Carta ao editor António Maria Pereira” in Poema da Mocidade, de Manuel Pinheiro Chagas, Livraria de A. M. Pereira, 1865

2 Castilho e Camilo – Correspondência trocada entre os dois escritores, pref. e notas de João Costa, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1924

3 Júlio de Castilho, O Senhor António Feliciano de Castilho e o Sr. Antero de Quental, Lisboa, Imp. De J.C. de Sousa Neves, novembro, 1865

4 Manuel Bandeira, “Antero de Quental”, prefácio a Sonetos Completos e Poemas Escolhidos de Antero de Quental, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1942, incluídos em Poesia e Prosa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958

5 Carta de Joaquim de Araújo a Rodrigo Veloso, na edição de Resposta aos Jornais Católicos, Barcelos, Tip. Aurora do Cavado, 1895

6 Carta ao Exmo Sr. António José d’Ávila, marquês de Ávila, Presidente do Conselho de Ministros, Lisboa, Tip. do Futuro, 1871

7 Fidelino de Figueiredo, “A prosa de um grande poeta”, in Antero, São Paulo, Dep. Municipal de Cultura, 1942. (pág. 126)

8 O Labirinto da Saudade, Lisboa, Gradiva, 2004. (pág. 137)




CARREIRO, José. “Antero de Quental tem inimigos”. Portugal, Folha de Poesia, 01-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/antero-de-quental-tem-inimigos.html



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