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segunda-feira, 9 de maio de 2022

Praia das Lágrimas

Fotografia  da Torre de Belém, situada onde outrora existiu a praia de Belém. © José Carreiro, 2019-05-04
 

Planta "Le chateau de Belem" in Description del reyno de Portugal y de los reynos de Castilla que confinan con su frontera / Delineada por D. Pedro Teixeira´Albernaz (ca 1595-1662). Disponível em: https://purl.pt/16992


 A designação “praia das lágrimas” surgiu num texto de João de Barros (c.1496-c.1570). Corresponde ao local da partida dos nautas portugueses, localizado em Belém, no Restelo, nos séculos XV e XVI:


Praia de Lágrimas | por João de Barros

No qual ato foi tanta a lágrima de todos, que neste dia tomou aquela praia posse das muitas que nela se derramam na partida das armadas que cada ano vão a estas partes que Vasco da Gama ia descobrir: de onde com razão lhe podemos chamar praia de lágrimas para os que vão e terra de prazer aos que vêm. E quando veio ao desfraldar das velas, que os mareantes, segundo seu uso, deram aquele alegre princípio de caminho, dizendo “boa viagem!”, – todolos que estavam na vista deles com uma piedosa humanidade dobraram estas lágrimas e começaram de os encomendar a Deus, e lançar juízos segundo o que cada um sentia daquela partida. Os navegantes, dado que com o fervor da obra e alvoroço daquela empresa embarcaram contentes, também, passado o termo do desferir das velas, vendo ficar em terra seus parentes e amigos e lembrando-lhe que sua viagem estava posta em esperança, e não em tempo certo nem lugar sabido, assim os acompanhavam em lágrimas como em o pensamento das cousas que em tam novos casos se representam na memória dos homens. Assi que, uns olhando para a terra, e outros para o mar, e juntamente todos ocupados em lágrimas e pensamento daquela incerta viagem, tanto estiveram prontos nisso té que os navios se alongaram do porto.

João de Barros, O descobrimento da Índia: Ásia, Década I, livro IV (capítulo II). Lisboa: Seara Nova, 1947.

 

Linhas de leitura

  • Justifica a designação “praia das lágrimas”.
  • Procura, ainda, no texto o nome dado à mesma praia, quando a ela se chegava.


Partida de Vasco da Gama para a Índia, Vista Alegre, c. 1960 (pintura num prato).


Praia das Lágrimas | por Luís de Camões

Camões inclui em Os Lusíadas um episódio conhecido como “Praia das Lágrimas” ou “Despedidas em Belém” (Canto IV, estâncias 84-93), que faz parte do plano da viagem e é narrado por Vasco da Gama ao rei de Melinde.

No episódio, é uma analepse que permite tomar conhecimento do sucedido na viagem dos marinheiros desde a partida de Lisboa até ao momento em que chegam ao canal de Moçambique (Canto I, est. 19 – recorde-se o conceito de narração in medias res).


1.ª parte: Os preparativos da viagem (est. 84-87)

Vasco da Gama relata os preparativos para a partida. O papel de Gama como narrador deste episódio fica explícito na utilização do pronome pessoal me («pera seguir-me» – est. 84) e no recurso à primeira pessoa do singular («[eu] Certifico-te» – est. 87). O interlocutor de Vasco da Gama, o rei de Melinde, é também assinalado através do pronome pessoal te («Certifico-te» – est. 87) e do vocativo («ó Rei» – est. 87).

Neste momento inicial, Vasco da Gama situa a ação «no porto da ínclita Ulisseia» (est. 84) e, de seguida, sublinha a coragem dos marinheiros e dos guerreiros que o acompanham na longa viagem («não refreia / Temor nenhum o juvenil despejo, / Porque a gente marítima e a de Marte / Estão pera seguir-me a toda a parte» – est. 84) e a sua determinação («E não menos de esforço aparelhados / Pera buscar do inundo novas partes» – est. 85).

Estando aptos física e psicologicamente para a viagem, os marinheiros assistem a uma cerimónia religiosa, de modo a preparar a «alma pera a morte» (est. 86), ouvindo missa, comungando e pedindo a Deus proteção («Implorámos favor que nos guiasse, / E que nossos começos aspirasse» – est. 86).

No final da descrição dos preparativos, Vasco da Gama relata a entrada nas embarcações, referindo-se ao espaço físico que os marinheiros abandonam por meio de uma perífrase, «Partimo-nos assim do santo templo / Que nas praias do mar está assentado, / Que o nome tem da terra, pera exemplo, / Donde Deus foi em carne ao mundo dado» (est. 87), que faz alusão ao topónimo Belém.

A sua afirmação final, «se contemplo / Como fui destas praias apartado, / Cheio dentro de dúvida e receio, / Que apenas nos meus olhos ponho o freio» (est. 87), permite estabelecer um contraste entre a determinação dos homens e os medos que os assaltam no momento da partida. Os sentimentos evidenciados acabam por contribuir para engrandecer os heróis portugueses, pois, para além de todos os seus feitos, venceram também os medos e as dúvidas que poderiam tê-los impedido de conquistar o mar e de chegar à Índia.

 

84

«E já no porto da ínclita Ulisseia1

Cum alvoroço nobre e cum desejo

(Onde o licor2 mistura e branca areia

Co salgado Neptuno3 o doce Tejo)

As naus prestes4 estão; e não refreia

Temor nenhum o juvenil despejo5,

Porque a gente marítima e a de Marte6

Estão pera seguir-me a toda a parte.

 

Notas:

1 Lisboa (cidade de Ulisses). 2 Água. 3 Oceano. 4 Prontas. 5 Juvenil desembaraço. 6 Os guerreiros, a tropa que seguia na frota do Gama.

Paráfrase:

Já no porto de Lisboa

Com entusiasmo e vontade

(onde a água doce do Tejo

se mistura com a salgada do mar)

as naus estão prontas a partir;

nenhum medo consegue diminuir

a energia dos jovens

porque os marinheiros e os soldados

estão dispostos a seguir-me para toda a parte.

 

OU

 

No porto de Lisboa, na praia do Restelo, em Belém, onde a água salgada do oceano se mistura com a água doce do rio Tejo, as naus da armada de Vasco da Gama estão prontas para a viagem em direção à Índia.

Perante este acontecimento, não há medo nenhum que impeça os marinheiros de embarcarem, pois tanto estes como os guerreiros que acompanhavam a armada seguirão Vasco da Gama para onde quer que ele vá.

 

85

«Pelas praias vestidos os soldados

De várias cores vêm e várias artes,

E não menos de esforço aparelhados7

Pera buscar do mundo novas partes.

Nas fortes naus os ventos sossegados

Ondeiam os aéreos estandartes;

Elas8 prometem, vendo os mares largos,

De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos9.

 

Notas:

7 Preparados. 8 As naus. 9 De serem colocadas no Olimpo (= tornadas imortais), como acontecera na Antiguidade à nau de Argo, que Minerva pôs entre as constelações.

 

Paráfrase:

Soldados de diversas patentes e ofícios

estão preparados para descobrir novas partes do mundo.

Um suave vento ondeia as bandeiras;

as naus, ao verem os mares largos,

prometem ser estrelas no Olimpo (isto é, prometem fama aos navegadores portugueses).

 

86

«Despois de aparelhados, desta sorte,

De quanto tal viagem pede e manda,

Aparelhámos a alma pera a morte10,

Que sempre aos nautas ante os olhos anda.

Pera o sumo Poder, que a etérea Corte

Sustenta só co a vista veneranda,

Implorámos favor que nos guiasse

E que nossos começos aspirasse11.

 

Notas:

10 Ouvimos missa, comungámos, como convinha a bons cristãos que iriam expor-se a muitos perigos. 11 Favorecesse.

 

Paráfrase:

Os marinheiros preparam-se para a viagem e preparam também a alma para a morte.

Rezaram a Deus para que os ajudasse.

 

87

«Partimo-nos assi do santo templo12

Que nas praias do mar está assentado,

Que o nome tem da terra, pera exemplo,

Donde Deus foi em carne ao mundo dado13.

Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo14

Como fui destas praias apartado,

Cheio dentro de dúvida e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio15.

 

Notas:

12 Ermida de Nª Srª de Belém. 13 Nestes primeiros quatro versos, indica-se que os tripulantes da armada saíram de Belém para as naus. (= partimo-nos de Belém, na margem direita do Tejo). Em Belém, na Palestina, nasceu Jesus – “Deus foi em carne ao mundo dado”. 14 Se me lembro. 15 Dificilmente reprimo as lágrimas.

 

Paráfrase:

Nós partimos do templo situado na praia de Belém.

Quando recordo esses momentos da partida,

cheio de dúvidas e receio,

dificilmente contenho as lágrimas.

 

2.ª parte: A despedida (est. 88-92)

• 1.º momento – plano geral (est. 88-89): o olhar do narrador centra-se nas pessoas que ficam na praia, assistindo à partida dos nautas. Começa por referir -se a esta multidão de forma generalista como «A gente da cidade» (est. 88), oferecendo um plano geral sobre aqueles que assistem à partida. São amigos ou familiares, embora lá se encontrem também meros curiosos que foram «por ver somente» (est. 88). Neste momento, todos partilham sentimentos de tristeza e de saudade, o que se fica a dever à crença generalizada de que quem embarcava encaminhava-se possivelmente para a morte:

«Em tão longo caminho e duvidoso / Por perdidos as gentes nos julgavam» (est. 89). O narrador centra, de forma mais pormenorizada, o seu olhar nas mulheres que sofrem com um «choro piadoso» (est. 89) e nos homens que suspiram. Todavia, a atenção do narrador deter-se-á mais longamente nas «Mães, Esposas, Irmãs» (est. 89), ligadas por laços estreitos aos nautas e unidas pelos sentimentos de tristeza e de medo de não tornar a ver os seus familiares.

• 2.º momento – plano de pormenor: a mãe (est. 90): o narrador centra-se, agora, em dois grandes planos de pormenor: vai atentar numa mãe e numa esposa, deixando-nos ouvir as suas palavras magoadas. Estas duas figuras, uma vez que representam todas as esposas e mães que ficam na praia a ver os seus entes queridos partir, designam-se personagens coletivas. O discurso da mãe é marcado pelas interrogações retóricas, que sublinham a sua incapacidade de compreender a atitude do filho, que era o único «emparo / Desta cansada já velhice». A sua perplexidade e revolta ficam fortemente marcadas na última questão: «Porque de mi te vás, o filho caro, / A fazer o funéreo encerramento, / Onde sejas de pexes mantimento?», onde sublinha a injustiça da situação que leva o filho a uma possível morte, deixando o amor de uma mãe sem resposta.

• 3.º momento – plano de pormenor: a esposa (est. 91): a mesma mágoa está expressa nas palavras da mulher. Recorrendo, igualmente, às interrogações retóricas, a esposa censura o marido por ir para o mar, levando uma vida que não é dele mas dela. Esta afirmação tem como base o forte amor que os une, e que faz deles um só ser. Acusa-o ainda de colocar em risco de esquecimento o amor que os une: «Nosso amor, nosso vão contentamento, / Quereis que com as velas leve o vento?» Note -se, nesta frase final, a sonoridade conseguida pela aliteração do -v-, que recorda o som do vento que leva o marido e com ele a vida da própria mulher.

• 4.º momento – plano geral (est. 92): após este momento de maior lirismo, o narrador volta a olhar a multidão de uma forma mais geral e destaca, de novo, os sentimentos de «amor e de piadosa humanidade», referindo-se agora aos velhos e aos meninos que também ficam na praia. Todos estes sentimentos influenciam a própria natureza envolvente, que, personificada, entra em sintonia com o sofrimento que domina a multidão: «Os montes de mais perto respondiam, / Quási movidos de alta piedade» e a «branca areia» chora com quem fica na praia.

 

88

«A gente da cidade, aquele dia,

(Uns por amigos, outros por parentes,

Outros por ver somente) concorria,

Saüdosos na vista e descontentes.

E nós, co a virtuosa companhia

De mil Religiosos diligentes,

Em procissão solene, a Deus orando,

Pera os batéis16 viemos caminhando.

 

Nota: 16 Embarcações que conduziam os homens da terra para os navios.

Paráfrase:

Apareciam amigos, parentes e curiosos da cidade,

Que se mostravam saudosos e descontentes.

E nós, acompanhados por muitos religiosos,

viemos caminhando para os batéis,

orando a Deus, em procissão solene.

 

89

«Em tão longo caminho e duvidoso

Por perdidos as gentes nos julgavam,

As mulheres cum choro piadoso17,

Os homens com suspiros que arrancavam.

Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso

Amor mais desconfia18, acrecentavam19

A desesperação e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

 

Notas: 17 Por piedoso. 18 Torna mais receosas. 19 Por acrescentavam (= aumentavam).

Paráfrase:

Como o caminho era longo e desconhecido

as pessoas achavam que nos perderíamos,

as mulheres choravam e os homens suspiravam.

Mães, Esposas e Irmãs temiam

(desesperadas e com medo)

não nos verem tão cedo.

 

90

«Qual20 vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha

Só para refrigério e doce emparo

Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará, penoso e amaro,

Porque me deixas, mísera e mesquinha?

Porque de mi te vás, o filho caro,

A fazer o funéreo encerramento,

Onde sejas de pexes21 mantimento?»

 

Notas: 20 Uma. 21 Por peixes.

Paráfrase:

Uma [mãe] vai dizendo:

“- Ó filho, porque me deixas tão miserável e numa velhice penosa?

Eu que te tinha para me cuidares na velhice.

Porque te vais embora, meu querido filho,

Para seres comida de peixe?”

 

OU

 

Uma mulher diz:

- Ó filho, que eu tinha só para conforto e doce amparo da minha cansada velhice, que acabará em choro penoso.

Porque me deixas na miséria? Querido filho, porque te vais embora para servires de mantimento para peixes?

 

91

«Qual22 em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,

Sem quem não quis Amor que viver possa,

Porque is23 aventurar ao mar iroso

Essa vida que é minha e não é vossa?

Como, por um caminho duvidoso,

Vos esquece a afeição tão doce nossa?

Nosso amor, nosso vão contentamento,

Quereis que com as velas leve o vento?»

 

Notas: 22 Outra (mulher que na aflição da despedida nem teve tempo de tapar o cabelo como era de esperar nas mulheres casadas e viúvas). 23 Ides.

Paráfrase:

Outra mulher, com o cabelo solto (i.e., como se estivesse solteira):

“Ó doce e amado esposo,

Que o Amor não deixa viver sem ti,

Porque arriscas a tua vida nesse mar perigoso?

Essa vida que é minha e não é tua?

Como é possível que por causa de uma viagem duvidosa

Possas esquecer o nosso amor?

Queres que o nosso amor seja levado pelo vento?”

 

92

«Nestas e outras palavras que diziam,

De amor e de piadosa humanidade,

Os velhos e os mininos os seguiam,

Em quem menos esforço põe a idade.

Os montes de mais perto respondiam,

Quási24 movidos de alta piedade;

A branca areia as lágrimas banhavam,

Que em multidão com elas se igualavam.

 

Nota: 24 Como.

Paráfrase:

A estes lamentos juntavam-se

os velhos e as crianças,

que eram mais fracos por causa da sua idade.

Os montes, como se estivessem comovidos,

respondiam com o eco;

as lágrimas da multidão inundavam a areia.

 

3.ª parte: A partida (est. 93)

O episódio termina centrado naqueles que partem. Vasco da Gama decide que a partida se fará «Sem o despedimento costumado», como forma de impedir o sofrimento («Por nos não magoarmos») ou a alteração da decisão tomada («ou mudarmos / Do propósito firme começado»).

 

93

«Nós outros sem a vista alevantarmos

Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,

Por nos não magoarmos, ou mudarmos

Do propósito firme começado,

Determinei de assi nos embarcarmos

Sem o despedimento costumado,

Que, posto que é de amor usança boa,

A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

 

Paráfrase:

Nós não levantávamos os olhos

para não ver mães e esposas naquele estado

e para não sofrermos ou nos arrependermos de partir.

Então, dei ordem para que embarcássemos

sem as despedidas habituais

porque fazem sofrer quem fica e quem parte.

 

Fonte: Síntese e notas adaptadas de Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013. Paráfrase adaptada de Os Lusíadas. Edição organizada por António José Saraiva. Porto, Figueirinhas, 1978.

 


 

“Mar Português” | de Fernando Pessoa

 



 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.


Fernando Pessoa, Mensagem, 1934

 

Linhas de leitura:

Estamos perante um poema épico-lírico em que «o poeta sentiu, imaginando, os trabalhos e as dores que o Império custou» (J. P. Coelho, Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa, Lisboa, Ed. Verbo, 1980, 6ª ed.), procurando unir o trágico e o heroico.

 

Tema: o mar como desgraça e glória do povo português.

 

Cada uma das estrofes constitui uma parte do texto:

 

A primeira estrofe é marcadamente emocional, épica e dramática. O poeta procura apresentar e interiorizar uma realidade épica, os sacrifícios necessários para que o povo português conquistasse o mar.

 

É uma estrofe circular, começando e terminando com a apóstrofe ao mar e que poderíamos dizer que o personifica.

 

Mais uma vez, como em «O menino da sua mãe», a ideia de Império aparece associada à de Portugal e às de dor e sacrifícios. Verifica-se ainda a intertextualidade com Camões. Nesta estrofe ecoam com intensidade as palavras das mães e das esposas na despedida das naus em Belém narrada em Os Lusíadas, IV, 88-92.

 

É toda a família nacional atingida pela conquista do mar: os pais, as mães, os filhos, os noivos e as noivas. Drama nacional e glória nacional.

 

Ao nível morfossintático, é importante verificar a pobreza do texto em adjetivos (apenas dois em ambas as estrofes: «salgado», v.1, e «pequena», v.8) e a predominância dos substantivos e dos verbos, como convém às características do tema desenvolvido.

 

Os tempos verbais, que exprimem uma dualidade – acontecimentos passados / sua validade no presente e no futuro –, são o pretérito perfeito e o presente do indicativo, o primeiro evoca todos os dolorosos sacrifícios necessários no passado glorioso e o segundo remete-nos para os valores intemporais de tenacidade, do espírito de luta e da eterna necessidade da procura e da autossuperação, única maneira de justificar a existência.

 

As exclamações de toda a 1ª estrofe servem os intuitos épicos do autor e vêm dar ao poema uma entoação e um ritmo adequados.

 

vv. 1-2, metáfora hiperbólica que não destoa do carácter e intenções da 1ª estrofe: o sal são lágrimas de Portugal.

 

Repetição intencional de palavras que, na 1ª estrofe, vêm aumentar o dramatismo da evocação das situações provocadas pelas Descobertas: «[] Quantas mães []»; «Quantos filhos []»; «Quantas noivas []» (no caso das duas últimas expressões podemos até dizer que se trata de uma repetição anafórica).

 

Note-se o facto de os dois primeiros versos resumirem toda a história passada, e mesmo presente, de um povo, e poderem, portanto, ser apresentados como exemplo da grande capacidade de síntese e aproveitamento das potencialidades expressivas das palavras mais banais, tão típica de Fernando Pessoa ortónimo.

 

 

A segunda estrofe é reflexiva, constituída na maior parte pela resposta a uma curta pergunta.

 

A resposta é dada por três frases carregadas de denso simbolismo que se pode condensar nesta afirmação: a glória exige um preço.

 

Esta estrofe é consequência do assunto apresentado na primeira: o mardesgraça e glória do povo português. O poeta tece considerações sobre a realidade e os sacrifícios que a sua concretização exigiu, afirmando que «tudo vale a pena se a alma não é pequena» – no mar se espelha o céu (habitação de Deus) e quem quiser aproximar-se dele, pelo heroísmo, «tem que passar além da dor».

 

Notar que o simbolismo do céu é neste contexto a realização do sonho e da glória. O mar espelha o céu; quem conquistar o mar, conquista o céu = glória.

 

O poema ultrapassa a história trágico-marítima para se situar no nível da meta-história. Com efeito, a dor depura o ser humano e a realização humana absoluta está na síntese do imanente e do transcendente (mar + céu).

 

Elemento de ligação entre o passado e a certeza adivinhada do futuro, o mar é o símbolo do ser-se português. Foi-o, no passado, pelo que espelha do português desvendador e dominador de mundos; sê-lo-á, no futuro, porque sagrado português, «fornecerá o elemento simbólico para todo o navegar» (Pires: 1987) ou, se quisermos, para a eterna procura.

 

Note-se, ainda, que as palavras «Bojador» e «espelhou» são usadas em sentido metafórico: dificuldades e esperança, respetivamente.

 

O carácter aforístico de algumas frases deste poema e que são muito conhecidas:

. «Tudo vale a pena se a alma não é pequena».

. «Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor».

 

A repetição intencional de algumas palavras:

. «Valeu a pena? Tudo vale a pena»

. «Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor».

 

(Adaptado de Fernando Pessoa e Heterónimos - Propostas de Análise, Avelino Soares Cabral, Mem Martins, Edições Sebenta, impress. 2007)


Proposta de trabalho:

  • Relaciona o poema de Fernando Pessoa com o episódio da Praia das Lágrimas d'Os Lusíadas no que respeita às pessoas envolvidas e aos sentimentos expressos por quem fica.



Praia das Lágrimas | por Carlos Tê



 


O tema da partida da Praia das Lágrimas tem sido muito abordado tanto na literatura como na música. Rui Veloso e Carlos Tê escreveram a canção intitulada “Praia das Lágrimas”, que faz parte do álbum Auto da Pimenta, disco oficial das comemorações do quinto centenário dos Descobrimentos Portugueses.

 

PRAIA DAS LÁGRIMAS

 

Ó mar salgado eu sou só mais uma

Das que aqui choram e te salgam a espuma

 

Ó mar das trevas que somes galés

Meu pranto intenso engrossa as marés

 

Ó mar da Índia lá nos teus confins

De chorar tanto tenho dores nos rins

 

Choro nesta areia salina será

Choro toda a noite seco de manhã

 

Ai ó mar roxo ó mar abafadiço

Poupa o meu homem não lhe dês sumiço

 

Que sol é o teu nesses céus vermelhos

Que eles partem novos e retornam velhos

 

Ó mar da calma ninho do tufão

Que é do meu amor seis anos já lá vão

 

Não sei o que os chama aos teus nevoeiros

Será fortuna ou bichos-carpinteiros

 

Ó mar da China Samatra e Ceilão

Não sei que faça sou viúva ou não

 

Não sei se case notícias não há

Será que é morto ou se amigou por lá

 

Carlos Tê e Rui Veloso, Auto da Pimenta, 1991

 

Comentário de texto:

Faz um pequeno comentário à letra da música, tratando os seguintes tópicos:

a. sujeito poético;

b. interlocutor;

c. intenção do sujeito poético ao dirigir-se ao interlocutor;

d. relação entre o conteúdo do texto e o título.

 

Fonte: Letras & Companhia. Português 9.º Ano. Carla Marques e Inês Silva. Edições Asa, 2013.


Sugestão de resposta solicitada a ChatGPT:

A letra da música “Praia das Lágrimas” é bastante emotiva, retratando o sofrimento de uma mulher que chora a ausência do seu marido, que viajou para a Índia e nunca mais voltou. O sujeito poético é uma mulher desesperada e sofrida, que chora a ausência do marido e teme por sua vida, pois sabe que muitos navegadores foram tragados pelo mar e nunca mais voltaram.

O interlocutor do poema é o mar, que é personificado como um ser vivo, capaz de sumir galés e engrossar as marés com o pranto intenso da mulher. A intenção do sujeito poético ao dirigir-se ao interlocutor é suplicar que o mar poupe a vida do seu marido, pedindo-lhe que não o mate na viagem de regresso da Índia, mesmo sem ter notícias dele há muitos anos. A mulher busca uma resposta do mar, uma esperança de que seu marido esteja vivo e possa voltar para ela.

O título da música, “Praia das Lágrimas”, faz referência à praia onde a mulher está, chorando a ausência do marido. A praia é um local de muita dor e sofrimento para a mulher, que se encontra angustiada e preocupada com a vida do marido. O conteúdo do texto está intimamente relacionado com o título, pois a mulher chora na praia enquanto pede ao mar que poupe a vida do seu marido, e é esse sofrimento que dá origem ao nome “Praia das Lágrimas”.

No geral, a música retrata uma situação bastante comum nos Descobrimentos Portugueses, que foi a separação de famílias e a incerteza em relação ao destino dos navegadores que partiam em busca de novas terras. A letra transmite um sentimento de tristeza e saudade, mostrando a dor de uma mulher que espera pelo retorno do marido, e ao mesmo tempo revela a força e a coragem que essas mulheres precisavam ter para enfrentar a incerteza e a saudade, enquanto seus maridos arriscavam suas vidas nos mares desconhecidos.

ChatGPT Feb 13 Version, disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-15



    O tema da partida da Praia das Lágrimas 


(autor desconhecido), Mulheres – Nazaré, c. 1951 (fotografia)


Embora representativa de uma situação ocorrida em local e época diferentes, esta fotografia de mulheres nazarenas, em pleno século XX, vestidas com o tradicional traje das sete saias, na praia da Nazaré, pode ser associada à temática da partida aqui exposta, porque também representa a tristeza, o desconsolo das mulheres e idosos que veem os familiares partir rumo ao mar.

A praia da Nazaré e os homens e mulheres que ali vivem em torno do mar atraíram escritores, pintores, fotógrafos e cineastas.

Nas palavras de Afonso Lopes Vieira ("Passeio nas Minhas Terras", 1940, in Nova demanda do Graal, 1942), a Nazaré assumia-se como o modelo de um mundo cândido que era preciso preservar face ao avanço da modernidade; uma “tribu (…) tão impermeável à influência dos forasteiros burgueses que, vivendo paredes meias com eles, guarda intacto o carácter e íntegra a fisionomia (…). O Nazareno pescador é um dos tipos mais profundamente nacionais, caldeado na costa do país a que arribou um dia (…)” (apud “Memória e representação do mar. Guilherme Filipe e Lino António, os pintores das paisagens e gentes da Nazaré” in Imaginários do Mar – volume 2. Uma antologia crítica, Carlos F. Clamote Carreto e Luís Sousa Martins, Lisboa, IELT – NOVA FCSH, 2021).





A pesca do bacalhau por homens e navios portugueses é uma saga humana lendária. Drama épico por excelência, encerra uma densidade narrativa singular, composta por memórias socialmente disputadas e muito diversas entre si. Aventura humana exaltada pela ditadura do Estado Novo, a grande pesca conheceu nesse contexto a sua expressão histórica mais saliente. Foi então que o Estado a apresentou à sociedade e aos olhos de estrangeiros como uma obra nacional de fundas raízes históricas, enquanto expressão eloquente do "regresso de Portugal ao mar", o principal axioma da ideologia maritimista do regime. Nas suas variadas iniciativas de propaganda, o Estado recobriu a frota bacalhoeira e os seus protagonistas humanos com uma ideologia historicista cheia de sugestões épicas.

"Trazer à pátria o pão dos mares", "reencontrar a nação com o mar" e resgatar o espírito de Quinhentos através da bravura dos pescadores-marinheiros que todos os anos embarcavam para o Atlântico Norte foram tópicos insistentes da propaganda. Esse discurso oficial e oficioso, promovido pela organização corporativa das pescas e pelo seu chefe-oligarca Henrique Tenreiro, depressa alcançou uma dimensão popular, sobretudo graças à espetacular bênção dos bacalhoeiros, um ritual nacionalista, religioso e profano, que teve lugar em Lisboa a partir de 1936. A bênção anual dos veleiros e das tripulações no momento da largada para a Terra Nova não só se alojou na memória coletiva como inibiu imagens e interpretações menos estilizadas ou mesmo dissidentes sobre as campanhas do bacalhau.

De forma paradoxal - ou significativa desse condicionamento cultural -, até hoje a literatura e as artes pouco se interessaram por este universo narrativo simultaneamente belo e cruel, humano e desumano, épico mas dramático. A multiplicidade de interpretações que podemos atribuir à pesca do bacalhau e a diversidade de sentidos que podemos conferir às suas peripécias humanas traduzem bem a riqueza deste património narrativo. O excesso de real da "faina maior" alimenta o mito e mantém vivas as disputas memoriais, que são afinal lutas de significado.

As obras de Bernardo Santareno sobre a pesca do bacalhau, O Lugre e Nos Mares do Fim do Mundo, ambas editadas pela Ática em 1959, continuam a ser as mais fecundas representações literárias das viagens à Terra Nova e à Gronelândia. […]

 

Álvaro Garrido, “Prefácio” in Nos Mares do Fim do Mundo, Bernardo Santareno. E-primatur/Letras Errantes, 2016

 

Nos Mares do Fim do Mundo, Bernardo Santareno. Lisboa, Parque EXPO 98, 1997
(seleção de algumas crónicas de viagem)


OS FOGUETES

 

- Os lugres. Vêm lá os lugres! Vêm lá!...

Num instante, juntou-se uma multidão no cais, em S. Miguel: Mas quem mais gritava e corria, desfeitas as longas tranças, o riso aguado de sol, nos olhos cavalos desenfreados, eram as mulheres - as mulheres dos pescadores açorianos do bacalhau.

- Os lugres! Já s'avistam os lugres!!...

E a Rosa Bailão, doidinha de todo, a chorar e a rir, mordia as mãos de ansiedade:

- O fogo, o fogo! Atirem já os foguetes!...

E atiraram: encheram o céu de rosas de lume, barulhentas e garrulas ...

Era assim todos os anos.

Quando os primeiros desembarcaram, a Rosa lançou-se para o meio deles, incontida, com todo o sal do mar a morder-lhe na garganta:

- O meu Jorge?... O meu homem?...

Os pescadores, sucumbidos, desviaram os olhos, os braços caíram-lhes inertes ... E passaram adiante.

- Qu'é dele?... O meu Jorge... O meu homem?...

Os foguetes crepitavam mais vivos que nunca. E gritos, abraços, choros... frenesins de gestos e de beijos.

- O meu Jorge... o meu.... ai, Santo Deus!...

E a Rosa, geladas as linhas da face pelo terror, deixou-se cair no chão...

- O meu Jorge... o meu...

Não, o Jorge Bailão não vinha: Bebera-o uma onda do mar bravo, em bancos da Terra Nova.

Pobre Rosa!: De entre todas as mulheres de pescador, fora ela quem mais foguetes comprara, quem mais se desentranhara em brados, risos e danças, mal a linha puríssima do horizonte oceânico começou a levedar em pontos escuros, móveis e vivos, cada vez maiores, maiores!...

- O meu, Jorge?... Qu'é dele?... Onde está o meu homem?!...

E o povo de S. Miguel, desde então, nunca mais queimou foguetes, à chegada dos lugres bacalhoeiros.

 

Bernardo Santareno, Nos Mares do Fim do Mundo, 1959

 

Lugre Argus fundeado em Belém para a cerimónia de Bênção


Análise textual do texto “Os Foguetes”

O texto "Os Foguetes" de Bernardo Santareno, presente na obra Nos Mares do Fim do Mundo, retrata uma cena emocionante que se desenrola num cais da ilha de São Miguel, nos Açores, à espera da chegada dos lugres que trazem de volta os pescadores que passaram meses pescando no Atlântico Norte. A multidão ansiosa e alegre é composta principalmente pelas mulheres dos pescadores que, com grande expectativa, aguardam o retorno de seus maridos, pais e irmãos.

A protagonista, Rosa Bailão, representa todas as mulheres dos pescadores, cujas vidas estão profundamente ligadas à pesca do bacalhau, importante no suporte económico da região. A sua ansiedade é palpável quando se aproximam os navios, ela é a primeira a ver e anunciar a chegada dos lugres. A ansiedade de Rosa é tão grande que ela pede que atirem foguetes para celebrar o retorno dos pescadores, e o céu é iluminado por "rosas de lume, barulhentas e garrulas".

A emoção das mulheres transforma-se em angústia quando os pescadores finalmente desembarcam e Rosa busca o seu marido, Jorge Bailão. No entanto, ela acaba por perceber que ele foi perdido no mar, tornando-se uma das muitas vítimas da dura vida dos pescadores açorianos. A descrição da cena em que Rosa se apercebe da morte do marido é extremamente emocionante, e o narrador consegue transmitir com grande sensibilidade a dor e a tristeza que acometem a personagem.

A história de "Os Foguetes" é um exemplo poderoso da dureza da vida dos pescadores açorianos, em particular, e dos pescadores portugueses, em geral, que enfrentam os perigos do mar em busca do sustento das suas famílias. A narrativa de Bernardo Santareno é marcada por um forte realismo e por uma abordagem sensível das emoções humanas. A utilização de uma linguagem simples, porém expressiva, permite que o leitor se identifique facilmente com as personagens e com a sua luta pela sobrevivência.

Em suma, "Os Foguetes" é uma história emocionante e comovente que retrata a vida dos pescadores açorianos de maneira realista e sensível. A obra de Bernardo Santareno consegue transmitir a dureza e a beleza da vida no mar, bem como as emoções fortes e profundas que permeiam as relações humanas.

Análise textual solicitada a ChatGPT (Feb 13 Version), disponível em https://chat.openai.com/chat, 2023-02-17 (resposta revista e adaptada)

 



CARREIRO, José. “Praia das Lágrimas”. Portugal, Folha de Poesia, 09-05-2022 (última atualização: 17/02/2023). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/05/praia-de-lagrimas.html



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