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segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Cantar, Sophia Andresen

Sophia na Assembleia Constituinte


CANTAR

 

Tão longo caminho

Quanto passo andado

E todas as portas

Encontrou fechadas

Tão longo o caminho

Como vai sozinho

Sua sombra errante

Desenha as paredes

Sob o sol a pino

Sob as luas verdes

A água de exílio

É brilhante e fria

Por estradas brancas

Ou por negras ruas

Quanto passo andado

Por amor da terra

País ocupado

Onde o medo impera

Num quarto fechado

As portas se fecham

Os olhos se fecham

Fecham-se janelas

As bocas se calam

Os gestos se escondem

Quando ele pergunta

Ninguém lhe responde

Só insultos colhe

Solidão vindima

O rosto lhe viram

E não querem vê-lo

Seu longo combate

Encontra silêncio

Silêncio daqueles

Que em sombras tornados

Em monstros se tornam

Naquela cidade

Tão poucos os homens

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

LIVRO SEXTO, 1.ª ed., 1962, Lisboa, Livraria Morais Editora • 2.ª ed., 1964, Lisboa, Livraria Morais Editora • 3.ª ed., 1966, Lisboa, Livraria Morais Editora • 4.ª ed., 1972, Lisboa, Moraes Editores • 5.ª ed., 1976, Lisboa, Moraes Editores • 6.ª ed., 1985, Lisboa, Edições Salamandra • 7.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 8.ª ed., revista, 2006, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (9.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gustavo Rubim.

 

***

 

A Poética Musical de Sophia

Cantar” expressa-se, estruturalmente, como um poema longo, sem estrofes, que se assemelha ao significado de “tão longo caminho” (vv. 1; 5). A forma do poema é bastante expressiva, delineando um contorno peculiar com a alternância de colunas, parecendo uma forma binária, constituída com duas seções, mas também pode ser interpretado como uma canção a duas vozes, numa espécie de pergunta-resposta para as situações cotidianas da voz poética. Essa forma de organização dos versos deixa o andamento do poema bastante vivo, manifestando-se, inclusive, em uma forma específica para traduzir os passos do Sujeito lírico durante essa caminhada (vv. 1; 5).

Nesse sentido, o texto de Sophia Andresen se aproxima da ideia de marcha, um estilo musical que é escrito originalmente para marchar, o que, neste caso, tem o sentido de marchar pela libertação de um “país ocupado/ onde o medo impera” (vv. 17-18), dado que se estabelece em relação a época da sua publicação. […]

No nível semântico, a voz poética canta a cena do seu “tão longo caminho” (v. 1), contando que alguém “encontrou” (v. 4) as portas das casas fechadas, provavelmente, controladas por uma rigorosa norma de segurança, típica, por sinal, dos regimes totalitáriosO sujeito lírico continua contando, através da sua canção, que, por parte da Ditadura, em um contexto de ordem pública e de poder vigente, o caminho estava vazio, demonstrando estar preocupado em entender a situação do outro: “Como vai sozinho/ Sua sombra errante/ Desenha as paredes” (vv. 4-8).

A visão de um mundo modificado, possivelmente, por uma forte intervenção politicamente subversiva é representada no texto através de vários elementos, dentre eles: “Sob o sol a pino/ Sob as luas verdes/ A água de exílio/ É brilhante e fria (vv. 9-12). Em “Por estradas brancas/ Ou por negras ruas/ Quanto passo andado/ Por amor da terra” (vv. 13-16), o cantor faz uma alusão aos exilados e perseguidos, por meio das cores, revelando rejeição à situação política do país, para mostrar a existência de uma luta ideológica contra o discurso oficial, acentuando a ideia de um “País ocupado/ Onde o medo impera” (vv. 17-18).

Nos versos seguintes, o Eu lírico vai narrar a ação da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado): “Num quarto fechado/ As portas se fecham/ Os olhos se fecham/ Fecham-se janelas” (vv. 19-22). Em seguida, ele transmite a experiência de um possível interrogatório: “As bocas se calam/ Os gestos se escondem/ Quando ele pergunta/ Ninguém responde” (vv. 23-26); e acrescenta a reação desse episódio, em que “Só insultos colhe/ Solidão vindima/ Rosto lhe viram/ E não querem vê-lo” (vv. 27-30). A voz lírica canta que agora a batalha é longa, pois almeja desvendar as ações que tornam as pessoas monstruosas: “Seu longo combate/ Encontra silêncio/ Silêncio daqueles/ Que em sombras tornados/ Em monstros se tornam” (vv. 31-34). No final do poema, o Eu poético certamente afirma o resultado da intervenção política: “Naquela cidade/ Tão poucos homens” (vv. 35-36).

O ato de cantar reforça tudo aquilo que a voz poética quer revelar ao mundo, a fim de cumprir seu papel na sociedade. Ordena suas experiências, para retornar ao movimento que transforma a fala em canto, assim como a escritora organiza suas sílabas, com temas e tensões melódicas.

 

Karoline Pereira, A Poética Musical de Sophia de Mello Breyner Andresen. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2021

 

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Entrega da condecoração por Mário Soares a Sophia Andresen.© Arquivo DN


A poesia e a política

[…] a corrupção moral e política, a violência e a manipulação ideológica fazem de Portugal, em Grades, um “país ocupado”. Essa imagem é a base do poema “Cantar”.

Publicado originalmente em Livro Sexto, último texto da secção “As Grades”, o poema é composto por 37 versos, dispostos de uma maneira que, logo em um primeiro momento, leva a um estranhamento e a uma questão: haveria um modo correto de o ler? Os versos estão dispostos em duas colunas: a esquerda conta com dezanove versos, e a direita, com dezoito. Elas não estão, no entanto, dispostas uma ao lado da outra em uma reta: a coluna menor aparece um pouco abaixo da maior, o que visualmente provoca uma rutura entre os versos. Como as linhas não aparecem em espaços equivalentes, o leitor é levado a uma experiência distinta: é possível ler o poema por colunas ou fazer a leitura como um caminho: do verso primeiro da esquerda ao primeiro da direita e assim por diante, em uma espécie de descida em ziguezague.

O poema, metricamente, é composto por versos em redondilha menor. O primeiro verso – disposto na coluna da esquerda – tem seu sentido continuado no primeiro da coluna direita. Essa é a dinâmica da leitura que aqui é proposta, uma vez que o texto é elaborado a partir de suas frases curtas, ligadas em grande parte por preposições e pronomes. Pela sintaxe, observam-se, primeiramente, períodos fragmentados pela divisão espacial do poema.

A exemplo temos os quatro primeiros versos (dois da esquerda, dois da direita) que compõem um período completo com apenas um verbo conjugado: “Tão longo caminho / Quanto passo andado / E todas as portas / Encontrou fechadas”. Assim, se imaginarmos um ponto final, teríamos um período completo, formado por uma única oração. Essa ligação entre os versos é possível e constrói um sentido pleno, por isso a leitura da esquerda para a direita se configura como uma alternativa satisfatória para a leitura.

Observa-se a ausência de pontuação – traço da poética de Sophia Andresen –, o que reafirma a estruturação dupla possibilitada pela disposição dos versos. A ausência de marcações gráficas torna a sintaxe do texto fluida e dinâmica, levando à ideia de movimentação, como se estivéssemos diante de degraus que são percorridos em ziguezague. Apesar de não haver pontuação, é preciso considerar as relações semânticas e sintáticas que os versos apresentam: o verso inserido à esquerda completa-se com o que está à direita, determinando o ritmo e a progressão do texto. Dessa maneira, a leitura obedecendo ao caminho ziguezagueante é a preferível para esta análise.

O ziguezague também se refere ao tortuoso caminho descrito pela voz poética já no primeiro verso: “Tão longo caminho / Quanto passo andado”. Assim, o movimento da leitura percorre as longas distâncias trilhadas por alguém. O primeiro verso apresenta uma ideia de extensão na sua leitura, definida pelos sons nasalizados das sílabas “tão”, “lon” e “minho”. Esse aspeto é intensificado pela imagem do terceiro verso: as portas fechadas. É, então, a noção de alguém que anda ziguezagueando atrás de entradas, mas nenhuma está aberta. A estrutura em colunas reflete esse itinerário errante de alguém que busca em vão uma abertura. É interessante notar a estrutura em ziguezague como algo diferencial dos poemas de Sophia Andresen, pois a autora quis espacialmente marcar a tortuosidade do percurso.

A sombra que percorre esse caminho é errante. Se considerarmos que o nome do poema é “Cantar”, tal imagem suscitaria a presença marcante de um ser que cantasse. Contudo, nesse poema, observa-se uma voz lírica que fala sobre um alguém – marcado pelo uso da 3ª pessoa do singular – descrito por sua sombra, a qual, conforme indica o terceiro e quarto verso, andou, mas encontrou fechadas todas as portas.

Assim, a voz poética não descreve um homem, mas, sim uma sombra que está em um longo caminho de buscas e questionamentos. A sombra é a projeção obscura produzida pela intercetação da luz por um corpo, porém, em “Cantar”, ela representa a metáfora do homem obscurecido, daquele que está em um longo combate e encontra todas as portas fechadas. É também obscuro porque não pode ser identificado, está oculto em sua longa procura. Nesse sentido, aproximamo-nos do contexto sociopolítico em que “Cantar” se insere.

Em um período ditatorial, de repressão, censura e ameaça, podemos ler a sombra como o resultado da opressão vivida. O homem não é nomeado, não aparece claramente no poema, pois não pode ser identificado em sua procura. A imagem das portas fechadas reforça essa leitura, pois ela representa a ausência de liberdade, a recusa de outros homens em abrir uma porta para aquele que procura, ou seja, a negação do apoio e a aceitação da injustiça e da desumanidade que é enfrentada por todos. A sombra busca portas abertas em vão, pois este é o “tempo de ameaça e de medo”. Nesse sentido, pela opressão do regime e pela aceitação dos outros, aquele que procura romper esse contexto expressa-se pela imagem da sombra – um indivíduo sem identidade, pois o tempo é de ameaça e medo.

Tal sombra “desenha as paredes / sob o sol a pino / sob as luas verdes”. Essa imagem nos indica o quão longos são a sua procura e o seu percurso, o que marca e intensifica a passagem do tempo. Observamos também que a referência temporal ao dia aparece por meio de uma oposição, a qual pode reforçar o desejo de liberdade em um tempo de penúria, que a luz transformou-se em grades.

O sol a pino representa o ponto mais alto que o astro pode alcançar na abóboda celeste. É um momento em que seus raios atingem verticalmente a terra, e a plena luminosidade é alcançada. Essa imagem contrasta com as “luas verdes”, que podem ser compreendidas como o momento em que a lua está encoberta pelas nuvens, e sua luminosidade fica ora acinzentada, ora esverdeada, uma vez que a visão do satélite natural torna-se quase um esboço no céu.

Tal oposição mantém-se nos versos seguintes, o que nos leva a pensar nos contrastes que formam o caminho trilhado pela sombra errante:

 

A água de exílio

É brilhante e fria

Por estradas brancas

Ou por negras ruas

 

As estradas são brancas, mas as ruas são negras. Essas imagens podem ser lidas pela oposição dia e noite dos versos anteriores. As estradas são claras, iluminadas, representando a luz do dia no percurso da sombra errante. Seu caminho mantém-se até a noite, e sua busca acontece na escuridão das ruas. Ocorre, assim, a marcação do tempo da ação da sombra – o longo percurso.

As duas imagens também podem ser lidas sob o viés da forte militarização e do policiamento que os espaços públicos apresentam durante períodos de ditadura. As estradas, por exemplo, sempre têm forte controle de fronteiras, justamente para evitar fugas e exílios e capturar presos políticos que se opõem ao regime. O branco, assim, não teria no poema um aspeto da claridade positiva que a poesia andreseniana busca, mas, sim, uma noção de apagamento, de quase anulação, pois as suas vias não levam ao lugar desejado, a liberdade. O branco também pode ser lido como a luz da tortura, que permite a investigação daqueles que se opõe ao regime. As ruas negras, por sua vez, podem ser lidas como espaços obscuros, ocupados pela opressão do policiamento e pela ameaça constante da delação.

Ainda por uma relação de quase oposição, podemos pensar na água do exílio. A água – elemento fundador, de origem – torna-se a água do exílio, é brilhante, mas é também fria. Assim, se o exílio passa a ser a única opção em um país ocupado, imperado pelo medo, tal alternativa concretiza-se em frieza. O exílio parece, em um primeiro momento, a única possibilidade de fugir do cerceamento e da violência que o sistema impõe, por isso o adjetivo “brilhante”. Porém, não é algo seguro e acolhedor, e a falta de seu país torna essa opção fria, pelo sofrimento causado.

A sombra errante mantém-se em seu longo percurso, reforçado pela repetição do verso “Quanto passo andado”, os quais são dados “Por amor da terra”, que se define, no momento, como “país ocupado” controlado pelo medo. Nesses versos, observamos a denúncia clara e objetiva do regime ditatorial que tornava Portugal uma nação ameaçada pela violência e pela limitação intelectual. A sombra do homem continua sua jornada, mas as portas continuam a se fechar.

Essa ideia é inserida no poema a partir do uso da metonímia. “Portas” e “janelas” aparecem como representação de espaço, local. Podemos pensar nesses elementos como estrutura de uma casa e, por extensão, cidade e, em uma gradação de sentido, nação. São símbolos de uma forma de liberdade, pois representam os canais de entrada e saída e o limite entre o dentro e o fora. Fechadas, significam o terror e a ameaça e reforçam o encarceramento em que o homem português vive e impossibilita a proximidade daquele que está fora por causa da coerção e do controle.

A partir do 11º verso da esquerda, temos partes que representam o homem: olhos, rostos, bocas. Novamente, observamos o recurso da metonímia, e esses fragmentos de homens podem ser lidos de duas formas: primeiramente, pelas funções que essas partes praticam. Os olhos se fecham para não enxergar o terror que se passa. No mesmo sentido, as bocas não falam, não se pronunciam, não denunciam toda a ameaça que as envolve. A boca é o canal que exerce a função de comunicação, porém, no poema, ela está calada. Esse silêncio, como a ausência da linguagem, é tão poderoso quanto a própria presença dela. O silêncio não é a ação de não falar. É a não ação. Os rostos desviam o olhar e “os gestos se escondem”, ou seja, não há ação dessas pessoas. Como se estivessem paralisadas, elas se eximem de ajudar o outro, em oposição à busca incessante da sombra errante cantada pela voz poética.

A inação das pessoas reforça a imagem do isolamento da sombra que procura. A solidão aparece numa construção interessante no verso catorze da coluna direita: “Solidão vindima”. A palavra “vindima” refere-se à colheita de uvas, fruta que é um símbolo marcante cultural e economicamente a Portugal. Mas o símbolo aparece dando uma qualidade à solidão, pois a nação está calada. Os símbolos não falam mais pela nação, o que é intensificado pelo silêncio das bocas que se calam. Assim como vimos no poema “Regresso”, os símbolos portugueses talvez não possam mais representar o que os homens daquela terra são, pois o vínculo entre a nação e seus indivíduos é rompido por um governo que ocupa e submete.

Tal visão da submissão é, novamente, um contraste com o projeto poético andreseniano, que está presente no poema por meio da busca da sombra. Se a política é a ação do homem que visa gerir e integrar os seus semelhantes em um território que lhes é comum, a ditadura mostra-se o oposto dela: são homens que não buscam administrar o bem de todos, mas, sim, impor aquilo que acreditam ser a ordem e o correto, com base em valores que não são compartilhados por todos, uma vez que são instaurados por meio da opressão, da violência, do cerceamento e do medo.

No poema, Sophia Andresen representa de forma concretizada substantivos abstratos, como o insulto e o gesto. Esses substantivos aparecem ligados a verbos de ação que, geralmente, são associados a substantivos concretos: “os gestos se escondem” e os insultos são colhidos. Da materialidade dada pelos verbos, a autora cria imagens mais concretas para o gesto e o insulto – termos que são formas de linguagem. Os gestos representam a ausência de ação dos outros indivíduos, o que contrasta com os insultos que “brotam”, surgem a todos os momentos e podem ser colhidos.

Os insultos podem ser lidos como as ofensas verbais que os órgãos de controle utilizam para submeter aqueles dos quais desconfiam e reforçam a violência e a ameaça do mesmo momento. As portas se fecham e os gestos se escondem, imagens que reforçam o cenário de cerceamento da liberdade. Assim, a linguagem, que representa parte da construção de uma nação, exprime, em ambas as imagens, a impossibilidade de pensamento livre de controle, o que é enfatizado pelo silêncio dos homens.

O silêncio é enfatizado pela imagem dos rostos que se viram, os quais, formados pelas bocas e pelos olhos dos versos anteriores, relacionam-se à ideia de identidade. É pelo rosto que um indivíduo é identificado, mas, no poema, eles aparecem virados e se recusam a ver a sombra errante. Além de representarem a negação de apoio ao combate protagonizado pela sombra, os rostos, ao se virarem, não se deixam ver, não são identificados. É a identidade do povo que está obscura, encoberta e escondida pela opressão e pelo cerceamento.

A língua é um fator que aparece fortemente ligado ao “longo combate” da sombra errante no poema, o qual, porém, somente “Encontra silêncio”. O não dizer dos homens torna-os sombras. No entanto, diferentemente da sombra errante, temos sombras passivas, que renunciam o seu direito de falar e agir. A primeira sombra é a projeção de alguém que age, que busca, mas encontra as portas e janelas fechadas e a quem rostos se viram. Esse indivíduo, que trilha um extenso caminho, só recebe insultos e vê seu longo combate encontrar somente silêncio. As sombras finais não falam e não agem: a não ação transforma homens em “monstros”, em sombras que refletem os tão poucos homens que habitam a cidade.

A monstruosidade, assim como os animais dos poemas anteriores, pode ser lida como uma alegoria da conivência e da passividade dos cidadãos. Um homem que não luta para transformar seu mundo não exerce aquilo que o distingue como tal, transformando-se em animais, sombras ou monstros. Nesse resumo do percurso feito pelo alguém sobre o qual narra a voz poética, observa-se a cisão da linguagem como elemento que insere na cidade “homens sombras”. Essa reflexão retoma de forma concreta e clara não somente um contexto político em que há cerceamento da liberdade, mas também uma situação em que o silêncio define a omissão e a passividade daqueles que optam por não agir.

A autora parte, nesse sentido, de símbolos e figuras formadoras de uma imagem maior, a nação: o amor da terra – ligação ao território – inscrito no oitavo verso direito; a língua – expressa pelas palavras gestos, insultos e silêncio e pela dupla perguntar-responder – e o povo e sua identidade – representado por termos como olhos, boca, rosto, ninguém. Só se chega à noção de país por meio da ligação e equilíbrio de todos esses fatores, mas não é a essa situação de inteireza que a voz poética vê ao seu redor.

Tais elementos formadores da nação aparecem espacialmente inscritos: eles estão em um território que se encontra sitiado pelo medo, pelo silêncio e pela ocultação. Da mesma formam que os homens aparecem fragmentados em “bocas”, “olhos” e “gestos”, o ambiente também o está: a voz poética fala de alguém que encontra portas e janelas fechadas “num quarto fechado”. A voz poética encontra, assim, um ambiente em que nada está aberto, nada está livre, pois as janelas e portas, canais de passagem, estão cerradas. As imagens enfatizam esses canais, mas eles não permitem a liberdade de entrar.

Observamos, então, uma construção da nação por sua ausência, por sua divisão e por seu cerceamento. O canto da voz poética e o combate da sombra errante contrastam com a inação dos outros indivíduos, que estão subjugados e limitados pelo regime instaurado há tanto tempo em seu país. A paralisia desses homens faz deles sombras passivas, que se tornam monstros. Temos a denúncia de uma nação cujo povo encontra-se limitado, preso e incapaz de agir em tempos de ditadura.

Como observa Helena Malheiro, “Em ‘Cantar’, também a estrutura gráfica do poema, em duas colunas paralelas onde os versos voluntariamente se desencontram, transmite-nos a fragmentação que o ‘tempo divido’ impõe ao sujeito” (MALHEIRO, H., 2008, p. 93). Esse “tempo dividido” refere-se à ditadura, à violência e à ameaça por ela impostos. Assim, “construído como um jogo de ecos, este poema [...] repete, ainda de forma mais enérgica, a temática do exílio, da solidão e do medo” (Ibidem).

Nesse sentido, convém analisarmos o título do poema. “Cantar”, inicialmente, possibilita uma dupla leitura. Podemos pensar no verbo cantar, isto é, na ação de expressar-se vocal e melodicamente acerca de um determinado conteúdo, e também no substantivo “cantar”, como o próprio canto, a composição poética propriamente dita. Aparentemente sutil, a dupla semântica já indica um questionamento que orienta o poema: existe o cantar – o canto – sem a possibilidade de cantar – a ação?

Essa dupla leitura vincula-se ao elemento contextual fortemente marcado no poema, uma vez que a voz artística em Portugal, na década de 60, enfrentava uma forte limitação ideológica. Ainda que houvesse o canto, a ação cantar estava reprimida. A censura, arma elementar de coerção do governo autoritário, foi um fator de cerceamento de diversos escritores contemporâneos a Sophia Andresen, e a própria autora lidou com a proibição e intensa pressão desempenhada pela PIDE, como vimos anteriormente.

O título do poema reforça a expressão da sombra errante, ainda que esteja em um ambiente cerceador. Aqueles que buscam lutar por seus valores contrários ao regime são ameaçados, mas a sombra mantém seu longo combate, o que pode ser lido como uma espécie de canto na tentativa de diálogo que ela estabelece em seu percurso, algo que é dito, mas não é ouvido. Existe um sujeito que tenta cantar, porém ninguém quer escutá-lo. A voz poética, por sua vez, une-se a esse canto. O cantar, assim, encontra sua expressão no longo caminho desempenado pela sombra errante que, mesmo encontrando todas as portas fechadas, mantém sua luta.

Além da questão sociopolítica, o termo “cantar” também suscita uma relação fundamental com a tradição helênica, tão cara a Sophia Andresen. Para que se entenda essa influência, é importante conhecer a maneira peculiar como se estrutura o mundo grego. Ele é organizado pelo discurso numinoso, isto é, influenciado pelo aspeto divino, o que pode ser visto na obra de Hesíodo, a Teogonia, a qual canta a origem dos deuses. Jaa Torrano explica, em seu prefácio à edição desse livro, que “Sobretudo a palavra cantada tinha o poder de fazer o mundo e o tempo retornarem à sua matriz original e ressurgirem com o vigor, perfeição e opulência de vida que vieram à luz pela primeira vez” (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 19). Ligado à presença sagrada das Musas, o cantar é o exercício por excelência da linguagem, a qual, por sua vez, é imanente ao ser. A Teogonia organizase, assim, pela ideia de que o ser – a presença, a aparição – ocorre na linguagem e pela linguagem, porque é ela a força divina de nomear. Como observa Jaa Torrano, «A rigor, não há na Teogonia uma relação entre linguagem e ser, mas uma imanência recíproca entre eles. Na Teogonia o reino do ser é o não esquecimento, a aparição (alethéa); toda negação do ser vem da manifestação da Noite e seus filhos, entre eles o Esquecimento (léthe, lesmosyne). A linguagem [...] é filha da Memória, ou seja, desse divino Poder trazer à Presença o não presente, coisas passadas e futuras. Ora, ser é dar-se como presença, como aparição (alethéa), e a aparição se dá sobretudo através das Musas, estes poderes divinos provenientes da Memória» (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 29).

Na visão de Hesíodo, o elemento sagrado da linguagem, ou seja, seu poder de revelação, torna-a em “raiz originante de todo o poder e o exercício de poder” (TORRANO. In: HESIODO, 2007, p. 31), conforme observa Torrano. O exercício do canto, dessa maneira, liga-se de modo imanente ao poder sagrado da linguagem e a toda forma de poder decorrente dele. Assim, Sophia Andresen, ao trazer a palavra de forma concreta e objetiva, cria um vínculo entre o aspeto clássico, o qual vê na linguagem o poder de presentificar o universo e os seus elementos, e o aspeto político, representado por meio da censura, do cerceamento da liberdade e do poder intenso inerente à linguagem.

A linguagem é, portanto, fundamental na reflexão promovida pelo poema. Desde o título, Sophia Andresen alude ao poder da linguagem e do canto sagrado, presentificado pelos gregos arcaicos por meio das musas que apresentam o mundo e organizam-no, revelando o poder da palavra, algo presente na sua obra poética como um todo: «A poética de Sophia Andresen transita entre a revelação (aléthea) e o esquecimento (lesmosyne) e baseia-se, fundamentalmente, no conceito de justiça (díke) cognato do verbo latino dico (dicere). Dizer é a palavra-mote que será glosada em toda a sua obra, não apenas como garantia da existência da coisa nomeada [...] mas, sobretudo, como postura ética, em que a beleza e o horror do mundo são ditos para serem vistos» (POMA, P., 2011, p. 107).

“Cantar” no poema representa a longa busca da sombra errante que, apesar da censura, da opressão do governo e da aceitação dos outros indivíduos, manteve seu combate. O termo representa também o combate da voz poética que expressa seu canto. A autora volta-se para a totalidade vendo na sua ausência a presença da escuridão e do horror, mas reforça a ideia de que a palavra pode instaurar a possibilidade justa do equilíbrio e da inteireza do homem em relação à sua pátria. E, por meio do seu canto, exprime sua busca pela inteireza, ainda que cante o tempo do país ocupado.

Em consequência dessa situação, temos, muitas vezes, o exílio, ideia que é tematizada em alguns poemas de Grades direta e indiretamente. O termo é definido pela noção de desterro, isto é, “des-terra”, uma separação da terra. A ação de exilar-se pode acontecer por degredo, ou seja, pena judicialmente imposta ou pode ser uma decisão do próprio indivíduo. Em tempos de governos totalitários, é comum ouvirmos falar de pessoas que foram exiladas ou se autoexilaram, numa tentativa de fugir de alguma punição que teriam no seu país. Entretanto, em Grades, podemos pensar, além desses significados, em uma terceira noção: o sentimento de não pertencimento de um indivíduo em sua própria terra, ainda que nela permaneça e viva.

Como vimos, a voz poética de “Este é o Tempo” fala de um “tempo em que os homens renunciam” (ANDRESEN, S., 1970, p.13). Tal recusa pode ser lida como uma desistência de sua pátria. Em tempos sombrios, os homens renunciam a muitas coisas, como sua liberdade, seu poder de decisão, sem bem-estar. Mas, quando se torna necessário distanciar-se fisicamente do lugar de origem para poder sobreviver, também temos uma renúncia. Em um contexto de ditadura militar, como se configura o contexto de Grades, podemos pensar que os homens – seja voluntária ou involuntariamente – renunciam à sua cidadania, ao seu papel político, à sua liberdade. Nesse sentido, essa renúncia pode ser lida como uma espécie de exílio.

Em “Cantar”, como observamos, temos o homem isolado que caminha sozinho e depara-se com a “água de exílio”. Essa ideia é retomada no poema “Exílio”, também publicado originalmente em Livro Sexto […].

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015

 

 

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“Cantar, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-31. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/cantar-sophia-andresen.html


 


“Cantar, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-31. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/cantar-sophia-andresen.html


domingo, 30 de outubro de 2022

Um dia, Sophia Andresen

"Um dia, mortos, gastos, voltaremos", in caderno com textos datados entre 1933 e 1935



 

UM DIA

 

Um dia, mortos, gastos, voltaremos

A viver livres como os animais

E mesmo tão cansados floriremos

Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

 

O vento levará os mil cansaços

Dos gestos agitados, irreais,

E há de voltar aos nossos membros lassos

A leve rapidez dos animais.

 

Só então poderemos caminhar

Através do mistério que se embala

No verde dos pinhais, na voz do mar,

E em nós germinará a sua fala.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1961, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1974, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2010, Alfragide, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Gastão Cruz.

 

 

Textos de apoio

No poema “Um dia a relação entre o homem e a natureza assenta num sentimento de irmandade e, portanto, fundamentada no equilíbrio e igualdade.

O poema recria um universo de relações harmoniosas entre o sujeito poético e a natureza. O retorno à natureza é visto como o alcançar da liberdade: assim como os animais vivem livremente no seu espaço natural, o homem, na sua dimensão de ser irmão do mar e dos pinhais, também ganha esse espaço de liberdade. Todos os desgastes físicos sucumbem quando o homem retorna ao seu estado natural. Entendamos que este estado natural tem inerente a conceção do ser humano na sua dimensão ambivalente de ser social e ser natural, atingindo-se a harmonia existencial quando ambas as dimensões convergem num equilíbrio mútuo. É este equilíbrio que permite que no ser humano germine a fala dos pinhais e do mar, ou seja, a possibilidade de interagir com a natureza, interpretando a sua linguagem específica.

 

Olga Cardoso, Abordagem ecopoética da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Universidade de Aveiro, 2012

 

***

DIA DO MAR, 1.ª ed., 1947, Lisboa, Edições Ática 


 

A musicalidade dos versos de Andresen privilegia a busca por um dizer natural, que se volta, em última instância, para a busca pela essência em cada unidade de sentido. […]

Como manifestação exemplar de musicalidade e interseção entre as sonoridades das palavras, seja pela proximidade entre os termos, seja pelo poema em sua totalidade, observa-se “Um dia”.

O poema apresentado segue um esquema fixo de rimas (a estrutura ABABCDCD EFEF), o que evoca uma regularidade sonora que evidencia também um apelo discursivo, uma vez que «frequentemente a nossa sensibilidade busca no verso o apoio da homofonia final; e do sistema de homofonias de um poema extrai um tipo próprio de perceção poética, por vezes independente dos valores semânticos». (CANDIDO, 2006, p. 62).

Desse modo, à perceção de regularidade evocada pelas rimas é possível associar uma sensação de harmonia e equilíbrio contrária à perceção dos “gestos agitados, irreais” mencionados pelo eu lírico, como se a forma de dizer remetesse diretamente a uma temporalidade lenta, de contemplação.

No nível semântico, a poeta aproxima a linguagem humana à manifestação e presença dos elementos da natureza, de modo que é possível estabelecer um diálogo com a ideia de que “a nomeação é a forma encantatória de, na poesia, restituir aos objetos a sua realidade, a sua pureza, ou a sua força mágica” (ROCHA, 1994, p. 167). Por meio da utilização do recurso metafórico, que ocorre, conforme observa Candido (2006, p. 122), “como se a transferência semântica se fizesse espontaneamente”, o eu lírico antropomorfiza elementos como os pinhais e o mar ao lhes atribuir a capacidade da fala. Do mesmo modo, a assimilação de características dos elementos naturais à condição humana é explicitada pelo uso do verbo floriremos, que aproxima ao agir humano uma ação essencialmente vinculada ao contexto botânico. Observa-se, assim, um discurso em que a linguagem aproxima o humano aos elementos naturais, de modo que a palavra passa a sugerir, conforme estudos da lírica moderna, um “encantamento, uma evocação e um exorcismo da coisa que nomeia” (FRIEDRICH, 1978, p. 28).

A noção de “sagrado” também perpassa por toda a poética andreseana, uma vez que a autora se mostra alinhada a uma perspectiva ecocrítica que procura uma “‘ressacralização’, por assim dizer, de nossas perceções do mundo natural” (BICCA, 2018, p. 163), capaz de colocar “os múltiplos ecossistemas acima dos estreitos interesses humanos” (BICCA, 2018, p. 163). No poema “Um dia”, essa ressacralização é ressaltada pela evocação dos animais, do mar e dos pinhais, ou seja, das diversas representações que caracterizam elementos da natureza como “irmãos vivos”. Assim, em oposição aos “gestos agitados, irreais” que fundamentam a consciência do sujeito moderno em um mundo fragmentado, a poeta propõe “a leve rapidez dos animais”, que lhes possibilita “caminhar através do mistério”, uma das premissas de sua poética, que manifesta “a busca da palavra verdadeira, remetente de um tempo mítico antes da profanação a que foi sujeita” (PEREIRA, 2003, p. 85).

Conforme destaca Friedrich (1978, p. 51, grifos nossos), “há na palavra algo de sagrado que nos impede de fazer dela um jogo de azar. Manejar com engenho uma língua significa exercer uma espécie de magia evocadora”. Essa “magia evocadora” é evidenciada constantemente na poética de Andresen, sobretudo em razão do uso de diferentes recursos metafóricos. Em “Um dia”, o verso “E em nós germinará a sua fala” é uma legítima manifestação do sentido de um “encantamento” por meio da palavra, de modo que a autora aproxima novamente um verbo oriundo da botânica, germinar, a uma característica essencialmente humana, a fala, o que propõe uma ressignificação das relações entre o humano e o não humano.

É possível analisar a obra andreseana sob a perspetiva proposta por Paz (1991, p. 98) de que “escrever um poema é decifrar o universo, só para cifrá-lo novamente”. Em “Um dia”, versos como “Através do mistério que se embala/ No verde dos pinhais, na voz do mar” (ANDRESEN, 2015, p. 171, grifos nossos) revelam essa permanente busca por decifrar o universo por meio da linguagem poética. Para isso, utilizam-se recursos sonoros como as aliterações, que são constantes sonoras ou, antes, um efeito sonoro particular (CANDIDO, 2006, p. 33), nesse caso a repetição do som das letras s e v, que remete diretamente ao efeito sonoro da passagem do vento. Do mesmo modo, observa-se uma regularidade de rimas (cansaços/ lassos; irreais/ animais etc.) responsável por estabelecer “uma sonoridade contínua e nitidamente percetível no poema” (CANDIDO, 2006, p. 62), o que também vai ao encontro da busca por uma unidade almejada, expressa como sentido íntimo do texto. Conforme Malheiro, para Andresen “a poesia opera, verdadeiramente, uma operação alquímica de mágica fusão do Real, na sua aparição encantada” (MALHEIRO, 2008, p. 297), de modo que o sentido de encantamento obtido por meio do emprego de recursos poéticos pode ser definido como o ápice do olhar contemplativo voltado para as formas da natureza.

 

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

***

 

GRADES [Antologia de Poemas de Resistência], 1970,
Lisboa, Publicações Dom Quixote

 

Há em Grades, assim, a consciência de um “Tempo de injustiça e de vileza”, em que Portugal encontra-se ocupado por mentiras, violência, repressão, ameaça e manipulação. Há também a consciência de que aquele que canta nesses tempos vive da tormenta, como a procelária, pois vive sempre o conflito de nomear sua pátria em condições quase inomináveis e em tempos de exílio. Porém, Sophia Andresen faz frente a essa tempestade e renova seu canto, que tem a força de presentificar – assim como o das Musas – seu projeto poético que busca a inteireza. Ela canta porque a política faz parte daquilo que a poesia compreende e de que se constitui. Há, então, a força do canto que nomeia as circunstâncias de terror e a esperança, ainda que utópica, de um dia renomear seu país pela linha clara e criadora do rosto de seu povo. Há também o canto da liberdade. Essa visão aparece no poema “Um dia”.

O poema é o primeiro texto da seleção de Grades, mas é publicado originalmente em 1947 no segundo livro de poesia da autora, Dia do Mar. É inusitado que o primeiro poema da seleção seja o último analisado neste trabalho. Porém, buscaremos explorar seus aspectos de forma a explicar por que ele encerra o terceiro eixo.

“Um dia” é composto por três quadras de versos decassílabos e apresenta esquema rímico ABAB / CBCB / DEDE. No primeiro verso, temos uma referência temporal futura e imprecisa: “um dia”. É a partir dessa data indefinida que podemos compreender o que a voz poética deseja. É algo futuro que ocorrerá somente quando, depois de mortos, voltarmos: «É uma esperança utópica porque aspira ao regresso ao estado de liberdade animal, com gestos rápidos e distensos, para aqueles que foram impedidos de se exprimirem e estão fatigados dos “gestos agitados”» (SANTOS, H., 1982, p. 172).

Assim, há uma esperança de voltar à liberdade do estado primitivo, original, como os animais, porém seu caráter é idealizado, pois isso só acontecerá com o ressurgimento possibilitado pela morte. Assim, esta deve ser vista em uma chave positiva, pois é “sobretudo renascimento, num encontro real pelo qual o eu se salva” (MALHEIRO, H., 2008, p. 144).

A voz poética afirma que, apesar do cansaço, os homens irão florir, o que os aproxima do mundo vegetal, das plantas e de suas flores, que florescem e se reproduzem. Essa aproximação, feita por meio da metáfora do florescimento, indica que, nesse futuro indeterminado, os homens serão livres como as plantas, isto é, apesar de serem diferentes, eles se relacionarão com o mundo da mesma maneira. O viés de igualdade é reforçado no quarto verso da primeira quadra, pois os humanos serão “irmãos vivos do mar e dos pinhais”. O que pode ser lido como “uma aspiração de florescimento e fraternidade, não social, mas ontológica, entre homens e natureza” (SANTOS, H., op. cit, p. 172).

Mas, para que esse viés exista, é necessária a morte, ou seja, é preciso que o homem rompa a “barreira da destruição criada pela vida exterior” (Ibidem). Para que o ser humano possa reintegrar-se no mundo de modo igual aos elementos da terra, é fundamental que haja um ressurgimento. Como observa Eduardo Prado Coelho, é uma “hipótese redentora”, pois “a dimensão ‘animal’ é extremamente poderosa” (COELHO, E., 1980, p. 24), uma vez que ela estabelece uma relação justa com o mundo. A mesma noção se estende aos elementos vegetais, como os pinhais, que aparecem duas vezes no texto. Na poesia andreseniana, “há a possibilidade de a morte ser perfeita [...]. A morte perfeita é a passagem do tempo comum para o temo fora do tempo” (Ibidem), observa Coelho.

Nesse tempo futuro ideal, o vento levará o cansaço dos homens, o que nos leva a crer que o tempo atual é pesado e desgastante. Assim, podemos relacionar essa ideia ao contexto de publicação do poema, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Como vimos no segundo capítulo, apesar de Portugal declarar-se neutro no conflito armado, havia relações questionáveis entre o fascismo e o Estado Novo. Tal ligação intensifica o viés de ameaça e pressão que os órgãos estatais disseminavam na sociedade. O tempo atual da voz poética é marcado pela tensão constante e perigo iminente, o que pode ser lido pela imagem dos “gestos agitados. irreais”. O esgotamento do homem atinge seus membros, mas com a redenção desse tempo atual, sua rapidez votará, pois ele será livre como os animais.

Convém ressaltar que a morte, no poema, não se configura como algo negativo, e sim positivo, pois é redentora e reveladora de um novo tempo que seremos parte do mundo como os elementos naturais e os animais. O aspeto negativo está no tempo atual que, apesar de não ser nomeado no texto, apresenta-se como o momento de desgaste e angústia. Logo, é possível compreender uma cisão entre o mundo natural e o mundo dos homens. Enquanto aquele é pleno de liberdade e vida, este representa o cansaço, a agonia e a sobrevivência.

Temos uma aproximação entre esse tempo cantado pela voz poética de ressurgimento e liberdade e o conceito de physis, trabalhado anteriormente. A morte possibilitaria um retorno em que os homens estariam religados ao mundo e aos seus elementos naturais, como as árvores e os animais. Já não haveria o cansaço e o exílio impostos por um mundo em que o indivíduo não está unido à sua realidade. Já não haveria o desgaste de pessoas que estão desligadas de sua pátria em razão da imposição do poder e de suas armas. Já não haveria a necessidade de esconder-se, de calar-se, pois não existiria a supremacia e a subjugação. Todos seriam partes livres que comporiam o mundo em uma relação harmónica.

Ao ultrapassar esse tempo presente de medo e conflito, o indivíduo pode ser livre, conforme apresenta a última estrofe na imagem do caminhar. Essa liberdade ocorre “através do mistério que se embala / No verde dos pinhas, na voz do mar”. Tal mistério pode ser lido como a plenitude e a harmonia da natureza. A voz do mar, ou seja, a sonoridade emitida por esse elemento, germinará nos homens, imagem a qual expressa a reunião do indivíduo, na sua condição de livre, com as águas. O homem – que fala – dirá suas palavras e nelas estará a voz do mar, pois eles se tornam elementos iguais nesse novo tempo. Esse vínculo entre o homem e a natureza aproxima-se da noção da physis grega, sendo a total integração e laço de todos os elementos do mundo, inclusive os homens.

Temos, assim, em “Um dia”, o tempo idealizado organizado pela physis, em que todos os elementos estão conectados entre si, formando um todo que compreende igualmente as partes. Mas o tempo presente não é o da physis, e o homem não mais se vê como parte desse todo. Ele não se enxerga como parte em relação a seus próprios semelhantes, por isso o tempo é de medo, de angústia, de esgotamento. O momento da guerra e da ditadura não expressa um vínculo entre homens, mas, sim, a ação de oprimir os mais fracos e a eles se sobrepor, buscando sempre o poder maior.

O que encontramos no poema não é o cantar do “tempo que os homens renunciam”, e sim o canto do poeta que deseja a liberdade e a religação. É também o canto do poeta, nesses tempos de selva obscura, a busca pela relação justa entre o homem e o seu mundo, fazendo-a ressurgir. Sophia Andresen entende que a poesia é o canto do ser inteiro e integrado à terra, o que compõe o seu fazer poético e também sua postura política, o que torna seu projeto ser po-ético.

Buscar a totalidade, a justiça e a liberdade pede que a autora olhe seu tempo presente, em que esses valores estavam cerceados. E, assim, em poemas como “Um dia” e “Procelária” temos uma voz poética que deseja a inteireza e o vínculo entre os homens e sua realidade. Procurar a verdade, a liberdade e a religação entre os homens e o mundo é um ato político, e esses elementos compõem o projeto po-ético andreseniano. A moral, a poesia e a política não são para Sophia Andresen valores dissociáveis: «Foi a poesia que me obrigou a pensar na política. E é a poesia que praticamente me permitiu intervir na política. [...] E a poesia obrigou-me a pensar na política porque me ensinou a não aceitar a degradação da vida. E a poesia ensinou-me a procurar a totalidade que não é o domínio do masculino, mas o acordo com o humano.» (ANDRESEN, S., 1975, pp. 05-06)

Desse modo, a poesia leva a autora a pensar sua realidade e a se posicionar diante do medo e da injustiça que observa, conforme ela afirma em seu ensaio Poesia e Revolução: “porque busca a inteireza do homem, a poesia numa sociedade como aquela em que vivemos é necessariamente revolucionária – é o não aceitar fundamental” (Idem, 1977, p. 77). E a política é a busca pela justiça, pois ela pede uma relação justa entre homens. A poesia de Sophia Andresen também pede essa justiça e para ela “é a poesia que desaliena, que funda a desalienação, que estabelece a relação inteira do homem consigo próprio, com os outros, e com a vida, com o mundo e com as coisas” (Idem, 1977, p. 78).

Essa ideia alude as palavras de Octavio Paz: “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética

é revolucionária por natureza. [...] A poesia revela este mundo, cria outro” (PAZ, O., 1982, p. 15). E é esse o projeto poético andreseniano que observamos em Grades. A escritora construiu um caminho, por meio da poesia, em que buscou denunciar o sofrimento, o medo, a injustiça e o cerceamento de seu contexto. Ainda assim, falou da importância da resistência nesses tempos obscuros e mostrou sua crença na religação do homem com seus iguais e sua realidade como parte da sua postura política. Por isso, seu projeto é poético. E o espaço em que essa reunião e inteireza se tornam possíveis é o poema. O poema é, então, a aliança do homem com o mundo, o que torna o canto de Grades um longo combate e uma intensa resistência para aqueles que estão no mau tempo.

 

Nathália Macri Nahas, Grades: uma leitura do projeto po-ético de Sophia de Mello Breyner Andresen. São Paulo, USP-FFLCH, 2015


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“Um dia, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-30. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/um-dia-sophia-andresen.html


sábado, 29 de outubro de 2022

Paisagem, Sophia Andresen


 

PAISAGEM

 

Passavam pelo ar aves repentinas,

O cheiro da terra era fundo e amargo,

E ao longe as cavalgadas do mar largo

Sacudiam na areia as suas crinas.

 

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,

Era a carne das árvores elástica e dura,

Eram as gotas de sangue da resina

E as folhas em que a luz se descombina.

 

Eram os caminhos num ir lento,

Eram as mãos profundas do vento

Era o livre e luminoso chamamento

Da asa dos espaços fugitiva.

 

Eram os pinheirais onde o céu poisa,

Era o peso e era a cor de cada coisa,

A sua quietude, secretamente viva,

E a sua exalação afirmativa.

 

Era a verdade e a força do mar largo,

Cuja voz, quando se quebra, sobe,

Era o regresso sem fim e a claridade

Das praias onde a direito o vento corre.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

 

Textos de apoio

Paisagem: luz e cor

Em Sophia, o olhar sobre as paisagens é delineado a partir de uma perspetiva subjetiva, paisagem percebida por todos os sentidos, revelando um sujeito lírico que se dispersa na paisagem. A linguagem poética adotada por Sophia desvela um mundo atravessado pela experiência subjetiva, um mundo experimentado, cheirado, tateado, ouvido e falado. Partindo dessa premissa, o que se vislumbra na escrita da poeta é a construção de um sujeito que, por conta de uma relação entre mundo referencial e interioridade, materializa essa experiência no topos do poema, como experiência “mundificante”. Assim, evidencia-se, no poema, um novo mundo, uma nova paisagem, resultante de uma referencialidade diluída na linguagem poética. No poema “Paisagem” observamos tal reflexão.

O valor impressionista em que a paisagem é percebida combina uma dimensão concreta, material e luminosa com uma “exalação afirmativa”, na qual já se descobre a veemência e despojamento das imagens, possibilitando ver a “claridade das praias onde a direito o vento corre”. As imagens aparecem num movimento instantâneo: “passavam pelo ar aves repentinas”, “E ao longe cavalgadas do mar largo /Sacudiam na areia as suas crinas”. Imagens que surgem também de um clarão instantâneo: “num luminoso chamamento”, e as coisas visíveis aparecem emitir uma radiação que não é apenas luminosa, mas também sonora.

Espalham-se, assim, as palavras do visível: “céu azul”, “campo verde”, “terra escura”, “luz”, “luminoso”, “claridade”, a linguagem sendo uma forma de visibilidade, dando a ver o que é dito, colocando no visível o que a palavra anuncia, “donde virão fenômeno (e seu conhecimento: fenomenologia), fantasia, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão, imaginação e palavra como resultados do ato da luz” (CHAUÍ, 1988, p. 34). Um ato de ver que impulsiona o sonho; um olhar que pousa sobre as coisas e viaja no meio delas. “Trabalhar o visível para que sirva ao invisível, eis a vida do poeta” (TSVETÁEVA, 2017, p. 41).

O poema revela a experiência do espanto fulgurante do mundo que surge aos olhos do observador diante de uma referência literal. Afasta-se de qualquer “epistemologia prisioneira do dualismo das categorias de sujeito e objeto” quando “inscreve o humano naquilo que designa como o ‘real’” (GUSMÃO, 2005, p. 44). O olhar do eu lírico transforma o local em paisagem por meio dos dados sensíveis ao descrever a paisagem com suas impressões: “Eram os caminhos num ir lento /Eram as mãos profundas do vento”. O olhar, assim, faz o sujeito lírico sair de si e se perder na “asa dos espaços” ao mesmo tempo em que traz “o mundo para dentro de si” (CHAUÍ, 1988, p. 31).

Contudo, ao apreender a paisagem como algo percebido, não reduz a paisagem a um “puro espetáculo” percebido apenas pela visão, mas envolve todos os outros sentidos. Nava (2004, p. 176), ao comentar sobre a escrita de Sophia, afirma que “a intensidade com que as coisas se oferecem aos sentidos, ao ponto de as sensações daí resultantes transmutarem a sua natureza, faz com que nesta poesia os sentidos adquiram um relevo muito especial”. Há um momento no poema em que a intensidade do visível se torna tão violenta que solicita todos os sentidos.

A poeta situa o eu lírico na paisagem, no mundo fenoménico, como um ser que se conjuga no espaço, um ser que faz dos sentidos uma teia a enredar toda a carne do mundo que se revela a sua frente. A paisagem está delineada por uma perspetiva subjetiva, uma vez que fica em evidência a resposta afetiva à paisagem. Trata-se de uma experiência vivencial, que exige o colorido íntimo de quem olha, sente, escuta e cheira a paisagem, que se desdobra a sua frente. Uma profusão de sensações físicas, corpóreas, permite uma configuração demasiadamente plástica das palavras, quebrando-se, assim, a distância entre signo e coisa: o mar largo, o voo das aves, o cheiro e a cor escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a cavalgar, os pinheirais, delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de grande apelo imagético e sensorial. A poeta faz ver e sentir essa paisagem/imagem fazendo uso de sinestesias que nos remetem à experiência de quem observa, gerando na escrita o efeito paisagem. A combinação de sensações (visual, auditiva, gustativa, olfativa) é uma maneira de captar o real que se quer apreender no poema, pela linguagem. A ressonância do poema é inseparável das emoções que se desdobram com o mundo.

Não se trata somente de um olhar, mas um olhar que aprofunda o horizonte, que sente o “cheiro da terra fundo e amargo”. Não se vê apensas o que se apresenta à vista, mas um “visual que continua além do horizonte” (COLLOT, 2013, p. 21). O princípio da fenomenologia se justifica pela atitude filosófica que encontramos no eu lírico, que é de admiração e envolvimento diante do mundo. A paisagem aparece como mundo vivido e experienciado pelo sujeito lírico. Ocorre uma intercomunicação de diferentes mundos, diferentes composições de imagens — aves, terra, ar, mar, sangue, animal (crina), céu, campo, árvores, resina, mão —, que sofrem uma metamorfose, deixando de exibir suas características comuns: as cavalgadas e as crinas dizem respeito ao mar; “a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da resina”, afirmando o caráter imagético poético do poema ao revelar imagens que não representam necessariamente a realidade imediata de uma paisagem, “mas o que poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do ‘impossível verossímil’ de Aristóteles (PAZ, 2012, p. 105, grifo do autor). Segundo Paz, as palavras e imagens entram no campo da pluralidade, aproximando realidades opostas. No processo dialético, pedras e plumas desaparecem em favor de um terceiro significado que já não é pedra nem plumas, mas outra coisa. “Ao enunciar a identidade dos opostos, atenta contra os fundamentos do nosso pensar”, escreve Paz. E continua:

Uma paisagem de Góngora não é o mesmo que uma paisagem natural, mas ambas têm realidade e consistência, embora vivem em esferas diferentes. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. Nesse caso, o poeta faz algo mais que dizer a verdade; ele cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria existência. As imagens poéticas têm sua própria lógica [...] (PAZ, 2012, p. 113).

Nesse sentido, a imagem do poeta tem sentido em diversos níveis: autênticas genuínas, pois tratam-se de uma verdade subjetiva, ao mesmo tempo em que constituem uma realidade objetiva. Esta vibração uníssona do mundo manifesta-se ao próprio nível estilístico, por meio de personificações, sinestesias e comparações: “Eram as gotas de sangue da resina”; “Eram as mãos profundas do vento”, criando, no poema, outra paisagem possível, que parte do ponto de vista do poeta, exigindo a mesma atitude do leitor. O poema não revela em nenhum momento a presença direta de um “eu”, mas ele está implícito como elemento que compõe uma subjetividade. Ao perceber (e reconfigurar) a paisagem no poema, a perceção se faz presente como um motivo importante de criação literária e de reflexão teórica para a poeta, implicando a relação íntima entre sujeito e mundo. O sujeito lírico fala das coisas para falar de si, ou seja, utiliza a concretude do mundo para mergulhar em sentimentos, em uma espiritualidade capaz de abarcar seu próprio eu; encontro com a natureza, que é, sobretudo, um encontro com a sua própria interioridade.

O último verso da quarta estrofe: “exalação afirmativa”, sugere que o poema é a celebração da plenitude e vivacidade, que exala, emana, a potência do mundo. Ou seja, coisas, seres e espaços afirmam-se positivamente, exibindo uma paisagem que se abre pela escrita. Ao usar a palavra “exalação afirmativa”, Sophia afirma o que seria o papel basilar de seu projeto poético: transmitir, pela escrita, a existência de tudo que compõe a condição humana do sujeito, fazendo-nos lembrar que estamos fisiologicamente ligados à terra. Essa é a postura ética de Sophia.

É em virtude disso que Gusmão (2005) afirma a existência de três fatores conjugados na poesia de Sophia: a evidência poética, responsável pela criação de uma imagem que se dá a ver e é, ao mesmo tempo, condição de visibilidade. Em segundo lugar, a justeza, que é a forma encontrada pela poeta para registrar cada objeto numa “forma justa”, a justiça que é caracterizada pela preocupação com o social que Sophia articula poeticamente, propondo uma outra ética fundada sobre a estética.

Nesse sentido, podemos lançar a hipótese de que o efeito estético, em Sophia, operaria como profanação do discurso pragmático ao lançar imagens, sons, efeitos de visualidade e dos sentidos no poético, evidenciando a inoperância contracomunicativa como seu ato político; linguagem poética que atua como “um uso especial que não coincide com o consumo utilitário” (AGAMBEN, 2007, p. 67). “Especial”, faz-se importante ressaltar, não implica separação da experiência comum, numa espécie de sacralização do estético, mas trazer a linguagem de volta para o próprio homem, que deve habitá-la.

O sentido de inoperância da linguagem poética nos coloca em outro ritmo, ritmo que está na poesia, que nos tira do movimento automático da linguagem útil, que cumpre apenas uma função e que se desvanece assim que se realiza. Pelo ritmo o poema alcança a subjetividade do sujeito, propondo desautomatizar a sensibilidade e propor outra realidade. “A criação poética consiste, em boa parte, nessa utilização voluntária do ritmo como agente de sedução [...]. O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo (PAZ, 2012, p. 63), ritmo que não é medida vazia, “mas uma direção, um sentido (p. 63).

 

Vanessa Silva, A geopoética de Sophia de Mello Breyner Andresen: paisagem e escrita. PUC-SP, 2019

***

 

Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia

A perspetiva fenomenológica também é evidente no poema “Paisagem”.

No poema apresentado, o eu lírico descreve a paisagem de uma praia por meio do contato com as formas dos elementos naturais, que são nomeados e encadeados ao longo de uma descrição segundo a qual a linguagem instaura um tempo mítico (FERRAZ, 2013, p. 57), como atesta o verso “Eram os caminhos num ir lento”. Este, por sua vez, atenta para uma relação em que a experiência do real adquire um máximo grau de poeticidade, o que permite ao eu lírico explicitar o “regresso sem fim e a claridade/ Das praias onde a direito o vento corre”.

Com base na experiência de imersão no contato com os elementos naturais expressa em aspetos descritivos do poema, como “Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,/ Era a carne das árvores elástica e dura,/ Eram as gotas de sangue da resina/ E as folhas em que a luz se descombina”, a perspetiva fenomenológica propõe que “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, pois ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Assim, perpassa pelo poema a ideia de “um mundo anterior, inalienável e puro” (PEREIRA, 2003, p. 58), sobretudo mediante o emprego de metáforas que associam os elementos da natureza observados pelo eu lírico à ideia de uma temporalidade que jamais pode ser completamente apreendida: “Eram as mãos profundas do vento/ Era o livre e luminoso chamamento/ Da asa dos espaços fugitiva”. Conforme observa Fernandes (2019, p. 244), «[...] a poesia de Sophia não é explicativa, como a fenomenologia também não o é; a fenomenologia toma os fenômenos no sentido grego do termo (phainómenon): aquilo que aparece ou se manifesta. Assim também parece ser a poesia andreseniana».

Assim, a visão da “verdade e a força do mar largo” denota um contexto segundo o qual “o aparecer opõe-se ao parecer, como a religião se opõe à verossimilhança e, por conseguinte, este naturalismo se opõe ao (mero) realismo” (RUBIM, 2013, p. 236), de modo a suscitar um efeito de “regresso sem fim” que é, afinal, uma busca essencial da poética andreseana.

 

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

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O lugar do ser

A poesia de Sophia […] nasce dessa consciência cristalina, dessa claridade da visão atenta ao mundo. Daí irrompe, no texto, outro universo, glorificado, puro, intenso: a realidade feita poesia.

Podemos notar tal feito no poema “Paisagem”, da obra de estreia de Sophia, Poesia I.

Nesse poema, o eu lírico atém-se ao mundo, esmiuçando-o numa descrição fincada no esplendor do real. Uma profusão de sensações físicas, corpóreas, permite uma configuração demasiadamente plástica das palavras, quebrando-se, assim, a distância entre signo e coisa. O voo das aves, o cheiro e a cor escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a cavalgar, os pinheirais delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de grande apelo imagético e sensorial. No último verso da quarta estrofe, a expressão “exaltação afirmativa” confirma o que até agora vínhamos enumerando e salientando na poesia de Sophia. Com efeito, nessa lírica as coisas, os seres e os espaços afirmam-se positivamente, abertos, em plenitude; eles ganham um gesto expressivo, uma moldura viva, tornando-se exaltados. O substantivo “exaltação” é emblemático e compõe um termo fundamental para o fazer poético da escritora de Ilhas. Ao usar tal termo, Sophia exalta, pela escrita, a existência de tudo o que compõe a dimensão espacial do homem.

A exatidão da escrita, escrutinando o sensível, pode ser notada no seguinte verso: “Era o peso e era a cor de cada coisa”. Tal afirmativa, pela obviedade, denota, paradoxalmente, o sentido inaugural do mundo, desvelando o ineditismo das coisas, o absurdo que é o simples existir do estar aí, aos nossos olhos. O verbo ser não dá relevo à “coisa” propriamente dita, mas aos seus qualificadores. Paradoxalmente, ele torna os elementos físicos abstratos, para em seguida intensificar a presença do objeto. Ao nuançar o detalhe e não o conjunto da coisa, o poema exalta o ente descrito, metonimicamente, destacando-lhe seus atributos físicos, sua carnadura. Por conseguinte, o verbo ser no infinitivo, permite-nos também apreender uma situação física, espacial, singular. Ele funciona no sentido de algo que se realiza, de algo que se faz, que acontece. Poderíamos traduzi-lo da seguinte maneira: fez-se o peso e a cor de cada coisa, fez-se a concretude sensível como algo inédito. Ao nomear o mundo físico, a palavra arrebata-o, dando-lhe um peso maior, uma corporalidade mais densa, mais plena. Esse verso, portanto, em sua justeza e simplicidade, instaura o próprio absurdo do existente: as coisas simplesmente são e o poema capta esse deslumbramento do saber a própria coisa em si.

 

Alexandre Felizardo, “O Lugar do Ser: Topoanálise em Sophia de Mello Breyner Andresen”. Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011

 

 

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“Paisagem, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-29. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/paisagem-sophia-andresen.html