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sábado, 29 de outubro de 2022

Paisagem, Sophia Andresen


 

PAISAGEM

 

Passavam pelo ar aves repentinas,

O cheiro da terra era fundo e amargo,

E ao longe as cavalgadas do mar largo

Sacudiam na areia as suas crinas.

 

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,

Era a carne das árvores elástica e dura,

Eram as gotas de sangue da resina

E as folhas em que a luz se descombina.

 

Eram os caminhos num ir lento,

Eram as mãos profundas do vento

Era o livre e luminoso chamamento

Da asa dos espaços fugitiva.

 

Eram os pinheirais onde o céu poisa,

Era o peso e era a cor de cada coisa,

A sua quietude, secretamente viva,

E a sua exalação afirmativa.

 

Era a verdade e a força do mar largo,

Cuja voz, quando se quebra, sobe,

Era o regresso sem fim e a claridade

Das praias onde a direito o vento corre.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

POESIA, 1.ª ed., 1944, Coimbra, Edição da Autora • 2.ª ed., 1959, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., Poesia I, 1975, Lisboa, Edições Ática • 4.ª ed., revista, 2003, Lisboa, Editorial Caminho • 5.ª ed., revista, 2005, Lisboa, Editorial Caminho • 6.ª ed., 2007, Lisboa, Editorial Caminho • 1.ª edição na Assírio & Alvim (7.ª ed.), Lisboa, 2013, prefácio de Pedro Eiras.

 

 

Textos de apoio

Paisagem: luz e cor

Em Sophia, o olhar sobre as paisagens é delineado a partir de uma perspetiva subjetiva, paisagem percebida por todos os sentidos, revelando um sujeito lírico que se dispersa na paisagem. A linguagem poética adotada por Sophia desvela um mundo atravessado pela experiência subjetiva, um mundo experimentado, cheirado, tateado, ouvido e falado. Partindo dessa premissa, o que se vislumbra na escrita da poeta é a construção de um sujeito que, por conta de uma relação entre mundo referencial e interioridade, materializa essa experiência no topos do poema, como experiência “mundificante”. Assim, evidencia-se, no poema, um novo mundo, uma nova paisagem, resultante de uma referencialidade diluída na linguagem poética. No poema “Paisagem” observamos tal reflexão.

O valor impressionista em que a paisagem é percebida combina uma dimensão concreta, material e luminosa com uma “exalação afirmativa”, na qual já se descobre a veemência e despojamento das imagens, possibilitando ver a “claridade das praias onde a direito o vento corre”. As imagens aparecem num movimento instantâneo: “passavam pelo ar aves repentinas”, “E ao longe cavalgadas do mar largo /Sacudiam na areia as suas crinas”. Imagens que surgem também de um clarão instantâneo: “num luminoso chamamento”, e as coisas visíveis aparecem emitir uma radiação que não é apenas luminosa, mas também sonora.

Espalham-se, assim, as palavras do visível: “céu azul”, “campo verde”, “terra escura”, “luz”, “luminoso”, “claridade”, a linguagem sendo uma forma de visibilidade, dando a ver o que é dito, colocando no visível o que a palavra anuncia, “donde virão fenômeno (e seu conhecimento: fenomenologia), fantasia, fantástico, assinalando o parentesco que enlaça visão, imaginação e palavra como resultados do ato da luz” (CHAUÍ, 1988, p. 34). Um ato de ver que impulsiona o sonho; um olhar que pousa sobre as coisas e viaja no meio delas. “Trabalhar o visível para que sirva ao invisível, eis a vida do poeta” (TSVETÁEVA, 2017, p. 41).

O poema revela a experiência do espanto fulgurante do mundo que surge aos olhos do observador diante de uma referência literal. Afasta-se de qualquer “epistemologia prisioneira do dualismo das categorias de sujeito e objeto” quando “inscreve o humano naquilo que designa como o ‘real’” (GUSMÃO, 2005, p. 44). O olhar do eu lírico transforma o local em paisagem por meio dos dados sensíveis ao descrever a paisagem com suas impressões: “Eram os caminhos num ir lento /Eram as mãos profundas do vento”. O olhar, assim, faz o sujeito lírico sair de si e se perder na “asa dos espaços” ao mesmo tempo em que traz “o mundo para dentro de si” (CHAUÍ, 1988, p. 31).

Contudo, ao apreender a paisagem como algo percebido, não reduz a paisagem a um “puro espetáculo” percebido apenas pela visão, mas envolve todos os outros sentidos. Nava (2004, p. 176), ao comentar sobre a escrita de Sophia, afirma que “a intensidade com que as coisas se oferecem aos sentidos, ao ponto de as sensações daí resultantes transmutarem a sua natureza, faz com que nesta poesia os sentidos adquiram um relevo muito especial”. Há um momento no poema em que a intensidade do visível se torna tão violenta que solicita todos os sentidos.

A poeta situa o eu lírico na paisagem, no mundo fenoménico, como um ser que se conjuga no espaço, um ser que faz dos sentidos uma teia a enredar toda a carne do mundo que se revela a sua frente. A paisagem está delineada por uma perspetiva subjetiva, uma vez que fica em evidência a resposta afetiva à paisagem. Trata-se de uma experiência vivencial, que exige o colorido íntimo de quem olha, sente, escuta e cheira a paisagem, que se desdobra a sua frente. Uma profusão de sensações físicas, corpóreas, permite uma configuração demasiadamente plástica das palavras, quebrando-se, assim, a distância entre signo e coisa: o mar largo, o voo das aves, o cheiro e a cor escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a cavalgar, os pinheirais, delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de grande apelo imagético e sensorial. A poeta faz ver e sentir essa paisagem/imagem fazendo uso de sinestesias que nos remetem à experiência de quem observa, gerando na escrita o efeito paisagem. A combinação de sensações (visual, auditiva, gustativa, olfativa) é uma maneira de captar o real que se quer apreender no poema, pela linguagem. A ressonância do poema é inseparável das emoções que se desdobram com o mundo.

Não se trata somente de um olhar, mas um olhar que aprofunda o horizonte, que sente o “cheiro da terra fundo e amargo”. Não se vê apensas o que se apresenta à vista, mas um “visual que continua além do horizonte” (COLLOT, 2013, p. 21). O princípio da fenomenologia se justifica pela atitude filosófica que encontramos no eu lírico, que é de admiração e envolvimento diante do mundo. A paisagem aparece como mundo vivido e experienciado pelo sujeito lírico. Ocorre uma intercomunicação de diferentes mundos, diferentes composições de imagens — aves, terra, ar, mar, sangue, animal (crina), céu, campo, árvores, resina, mão —, que sofrem uma metamorfose, deixando de exibir suas características comuns: as cavalgadas e as crinas dizem respeito ao mar; “a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da resina”, afirmando o caráter imagético poético do poema ao revelar imagens que não representam necessariamente a realidade imediata de uma paisagem, “mas o que poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do ‘impossível verossímil’ de Aristóteles (PAZ, 2012, p. 105, grifo do autor). Segundo Paz, as palavras e imagens entram no campo da pluralidade, aproximando realidades opostas. No processo dialético, pedras e plumas desaparecem em favor de um terceiro significado que já não é pedra nem plumas, mas outra coisa. “Ao enunciar a identidade dos opostos, atenta contra os fundamentos do nosso pensar”, escreve Paz. E continua:

Uma paisagem de Góngora não é o mesmo que uma paisagem natural, mas ambas têm realidade e consistência, embora vivem em esferas diferentes. São duas ordens de realidade paralelas e autônomas. Nesse caso, o poeta faz algo mais que dizer a verdade; ele cria realidades possuidoras de uma verdade: as da sua própria existência. As imagens poéticas têm sua própria lógica [...] (PAZ, 2012, p. 113).

Nesse sentido, a imagem do poeta tem sentido em diversos níveis: autênticas genuínas, pois tratam-se de uma verdade subjetiva, ao mesmo tempo em que constituem uma realidade objetiva. Esta vibração uníssona do mundo manifesta-se ao próprio nível estilístico, por meio de personificações, sinestesias e comparações: “Eram as gotas de sangue da resina”; “Eram as mãos profundas do vento”, criando, no poema, outra paisagem possível, que parte do ponto de vista do poeta, exigindo a mesma atitude do leitor. O poema não revela em nenhum momento a presença direta de um “eu”, mas ele está implícito como elemento que compõe uma subjetividade. Ao perceber (e reconfigurar) a paisagem no poema, a perceção se faz presente como um motivo importante de criação literária e de reflexão teórica para a poeta, implicando a relação íntima entre sujeito e mundo. O sujeito lírico fala das coisas para falar de si, ou seja, utiliza a concretude do mundo para mergulhar em sentimentos, em uma espiritualidade capaz de abarcar seu próprio eu; encontro com a natureza, que é, sobretudo, um encontro com a sua própria interioridade.

O último verso da quarta estrofe: “exalação afirmativa”, sugere que o poema é a celebração da plenitude e vivacidade, que exala, emana, a potência do mundo. Ou seja, coisas, seres e espaços afirmam-se positivamente, exibindo uma paisagem que se abre pela escrita. Ao usar a palavra “exalação afirmativa”, Sophia afirma o que seria o papel basilar de seu projeto poético: transmitir, pela escrita, a existência de tudo que compõe a condição humana do sujeito, fazendo-nos lembrar que estamos fisiologicamente ligados à terra. Essa é a postura ética de Sophia.

É em virtude disso que Gusmão (2005) afirma a existência de três fatores conjugados na poesia de Sophia: a evidência poética, responsável pela criação de uma imagem que se dá a ver e é, ao mesmo tempo, condição de visibilidade. Em segundo lugar, a justeza, que é a forma encontrada pela poeta para registrar cada objeto numa “forma justa”, a justiça que é caracterizada pela preocupação com o social que Sophia articula poeticamente, propondo uma outra ética fundada sobre a estética.

Nesse sentido, podemos lançar a hipótese de que o efeito estético, em Sophia, operaria como profanação do discurso pragmático ao lançar imagens, sons, efeitos de visualidade e dos sentidos no poético, evidenciando a inoperância contracomunicativa como seu ato político; linguagem poética que atua como “um uso especial que não coincide com o consumo utilitário” (AGAMBEN, 2007, p. 67). “Especial”, faz-se importante ressaltar, não implica separação da experiência comum, numa espécie de sacralização do estético, mas trazer a linguagem de volta para o próprio homem, que deve habitá-la.

O sentido de inoperância da linguagem poética nos coloca em outro ritmo, ritmo que está na poesia, que nos tira do movimento automático da linguagem útil, que cumpre apenas uma função e que se desvanece assim que se realiza. Pelo ritmo o poema alcança a subjetividade do sujeito, propondo desautomatizar a sensibilidade e propor outra realidade. “A criação poética consiste, em boa parte, nessa utilização voluntária do ritmo como agente de sedução [...]. O poeta encanta a linguagem por meio do ritmo (PAZ, 2012, p. 63), ritmo que não é medida vazia, “mas uma direção, um sentido (p. 63).

 

Vanessa Silva, A geopoética de Sophia de Mello Breyner Andresen: paisagem e escrita. PUC-SP, 2019

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Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia

A perspetiva fenomenológica também é evidente no poema “Paisagem”.

No poema apresentado, o eu lírico descreve a paisagem de uma praia por meio do contato com as formas dos elementos naturais, que são nomeados e encadeados ao longo de uma descrição segundo a qual a linguagem instaura um tempo mítico (FERRAZ, 2013, p. 57), como atesta o verso “Eram os caminhos num ir lento”. Este, por sua vez, atenta para uma relação em que a experiência do real adquire um máximo grau de poeticidade, o que permite ao eu lírico explicitar o “regresso sem fim e a claridade/ Das praias onde a direito o vento corre”.

Com base na experiência de imersão no contato com os elementos naturais expressa em aspetos descritivos do poema, como “Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,/ Era a carne das árvores elástica e dura,/ Eram as gotas de sangue da resina/ E as folhas em que a luz se descombina”, a perspetiva fenomenológica propõe que “o mundo é não aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, pois ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Assim, perpassa pelo poema a ideia de “um mundo anterior, inalienável e puro” (PEREIRA, 2003, p. 58), sobretudo mediante o emprego de metáforas que associam os elementos da natureza observados pelo eu lírico à ideia de uma temporalidade que jamais pode ser completamente apreendida: “Eram as mãos profundas do vento/ Era o livre e luminoso chamamento/ Da asa dos espaços fugitiva”. Conforme observa Fernandes (2019, p. 244), «[...] a poesia de Sophia não é explicativa, como a fenomenologia também não o é; a fenomenologia toma os fenômenos no sentido grego do termo (phainómenon): aquilo que aparece ou se manifesta. Assim também parece ser a poesia andreseniana».

Assim, a visão da “verdade e a força do mar largo” denota um contexto segundo o qual “o aparecer opõe-se ao parecer, como a religião se opõe à verossimilhança e, por conseguinte, este naturalismo se opõe ao (mero) realismo” (RUBIM, 2013, p. 236), de modo a suscitar um efeito de “regresso sem fim” que é, afinal, uma busca essencial da poética andreseana.

 

Murillo Castex, Uma arte do ser: relações entre palavra e natureza na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen. Curitiba, UTFPR, 2022

 

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O lugar do ser

A poesia de Sophia […] nasce dessa consciência cristalina, dessa claridade da visão atenta ao mundo. Daí irrompe, no texto, outro universo, glorificado, puro, intenso: a realidade feita poesia.

Podemos notar tal feito no poema “Paisagem”, da obra de estreia de Sophia, Poesia I.

Nesse poema, o eu lírico atém-se ao mundo, esmiuçando-o numa descrição fincada no esplendor do real. Uma profusão de sensações físicas, corpóreas, permite uma configuração demasiadamente plástica das palavras, quebrando-se, assim, a distância entre signo e coisa. O voo das aves, o cheiro e a cor escura da terra, o céu azul, o campo verde, as ondas a cavalgar, os pinheirais delineiam um espaço vivo, de grande força pictórica, de grande apelo imagético e sensorial. No último verso da quarta estrofe, a expressão “exaltação afirmativa” confirma o que até agora vínhamos enumerando e salientando na poesia de Sophia. Com efeito, nessa lírica as coisas, os seres e os espaços afirmam-se positivamente, abertos, em plenitude; eles ganham um gesto expressivo, uma moldura viva, tornando-se exaltados. O substantivo “exaltação” é emblemático e compõe um termo fundamental para o fazer poético da escritora de Ilhas. Ao usar tal termo, Sophia exalta, pela escrita, a existência de tudo o que compõe a dimensão espacial do homem.

A exatidão da escrita, escrutinando o sensível, pode ser notada no seguinte verso: “Era o peso e era a cor de cada coisa”. Tal afirmativa, pela obviedade, denota, paradoxalmente, o sentido inaugural do mundo, desvelando o ineditismo das coisas, o absurdo que é o simples existir do estar aí, aos nossos olhos. O verbo ser não dá relevo à “coisa” propriamente dita, mas aos seus qualificadores. Paradoxalmente, ele torna os elementos físicos abstratos, para em seguida intensificar a presença do objeto. Ao nuançar o detalhe e não o conjunto da coisa, o poema exalta o ente descrito, metonimicamente, destacando-lhe seus atributos físicos, sua carnadura. Por conseguinte, o verbo ser no infinitivo, permite-nos também apreender uma situação física, espacial, singular. Ele funciona no sentido de algo que se realiza, de algo que se faz, que acontece. Poderíamos traduzi-lo da seguinte maneira: fez-se o peso e a cor de cada coisa, fez-se a concretude sensível como algo inédito. Ao nomear o mundo físico, a palavra arrebata-o, dando-lhe um peso maior, uma corporalidade mais densa, mais plena. Esse verso, portanto, em sua justeza e simplicidade, instaura o próprio absurdo do existente: as coisas simplesmente são e o poema capta esse deslumbramento do saber a própria coisa em si.

 

Alexandre Felizardo, “O Lugar do Ser: Topoanálise em Sophia de Mello Breyner Andresen”. Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011

 

 

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“Paisagem, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-29. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/paisagem-sophia-andresen.html


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