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sábado, 1 de outubro de 2022

A Esfinge, Miguel Torga


 

 

Coimbra, 1 de junho de 1989

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

 

Miguel Torga, Diário XV

 

 

A Sombra: O Labor Poético

Esfinge - um poema que questiona a condição humana, numa referência ao enigma que o monstro terrível coloca ao Homem, simbolizado pela personagem de Édipo.

Embora pouco relevante na obra inicial de Torga, o poeta-diarista regressa frequentemente ao mythos da Esfinge nos Diários XV e XVI (especialmente neste último). Talvez porque, ancião, pressinta próximo o encontro com o monstro desumano (antítese de si, que é humano), para o qual caminha triste e consciente. Assim, qual Édipo (também), conhece antecipadamente que é ele próprio o enigma. O Homem, à semelhança de uma boneca russa, encaixa em si a criança, o adulto, o ancião, não tendo perdido nunca o espanto e a pureza iniciais (atónito; candidamente) nem a capacidade de sonhar (note-se a expressividade da utilização do pronome em sonhar-me).

Porque interrogar sobre o animal que tem quatro patas de manhã, duas à tarde e três à noite, é o mesmo que perguntar quem é o Homem, conhecer a resposta é estar consciente da sua mortalidade. Verifica-se, assim, a desconstrução do mito: a resposta é inútil e não libertadora; o seu portador, ao invés de ser poupado pelo monstro, dita a sua sentença. No caminho de Tebas principia a morte porque, ainda criança, o Homem caminha até junto da Esfinge, aprendendo a conhecê-la e a conhecer-se a cada passo dado. Dia a dia se prepara para a inevitabilidade do duelo final, cumprindo junto do terrível híbrido um novo “Ecce homo”.

No Diário VI, respondendo a um inquérito do Journal des Poètes, Torga reflete sobre o enigma da Esfinge e sobre a ambiguidade da sua interpretação. Entendendo que todo o Homem é contemplado pela resposta de Édipo, discorre sobre o humanismo da Poesia e o poder da palavra poética:

“Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo: todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses tempos, esquecer que o animal de quatro, duas ou três patas do enigma (na meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado no bordão na velhice) não era apenas um Sócrates de eleição mas também o seu escravo, quer o confesse, quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. (…) [É urgente que a Poesia arranque do homem] Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.” (Diário VI)

No Diário XVI, revela a inquietação:

 

“Quando se é novo, a esfinge que nos interpela à entrada das Tebas do mundo é sempre uma mulher. Na velhice, é ainda um vulto feminino, mas sinistro, vestido de negro e de foice na mão” (Diário XVI).

 

Atente-se na transfiguração da Esfinge que, na juventude é sempre uma mulher. Contudo, pela ação inexorável de Cronos, transforma-se em espectro, personificando a própria morte.

Ainda neste volume, insertas no discurso proferido no Instituto Alemão a 23 de novembro de 1990, encontramos as seguintes palavras:

“As esfinges que interpelam sibilinamente os viandantes à entrada de todas as Tebas da existência, [sic] são monstros de carne e osso e papel e tinta. E os seus enigmas, avisos ambíguos e catárticos que, depois de fielmente decifrados e trasladados, abrem caminho à ânsia libertadora de Gregos e Troianos.” (Diário XVI).

Esta última Esfinge recupera a do mythos, que abre caminho à libertação de Tebas. Remete para os escritores, que sibilinamente nos interpelam com avisos ambíguos e catárticos, e para o difícil e louvável trabalho dos tradutores, que fielmente decifram e trasladam os enigmas da escrita literária, permitindo o conhecimento e a liberdade.

A Esfinge, na sua origem, encontra-se ligada à poesia. Embora Hesíodo, na Teogonia (326 e sqq.), a apresentasse apenas como um monstro terrível, devorador dos habitantes da região de Tebas, é com o texto de Sófocles que a figura mítica vai ser difundida na posteridade. O Rei Édipo, na discussão com Tirésias, refere o seu encontro com o “cão de fila” que atormentava a cidade:

 

“Mas afinal, vamos, dize, em que é que tu és um adivinho seguro? Quando a cantora, aquele cão de fila, aqui se encontrava, porque não pronunciaste as palavras que trariam a este povo a libertação?

E, contudo, o enigma não era para o primeiro que viesse desvendá-lo: era preciso ter artes divinatórias; delas não te mostraste possuidor nem por auspício nem por revelação dos deuses, mas fui eu, ao chegar, eu, Édipo, que nada conhecia, quem a reduziu ao silêncio por intuição do espírito, não pela ciência dos auspícios (…)” (SÓFOCLES, Rei Édipo, introdução, tradução e notas de Maria do Céu Fialho. Lisboa: Edições 70, 2006, 81).

 

Designando a Esfinge, Édipo utiliza a palavra αυδς (V. 391), remetendo para a sua ligação à palavra poética a que, dado que é uma criatura fantástica, tem acesso. Édipo interpreta-a, quando as artes divinatórias de Tirésias não tinham conseguido fazê-lo. Contudo, sendo homem, fá-lo por meio da sua γνώμ κσρήζας (V. 398).

Embora não saibamos se Miguel Torga leu a versão de Séneca, autor que tanto apreciava233 e cuja filosofia, como já verificámos, conhecia bem, não podemos deixar de referir que o Édipo latino, em diálogo com Jocasta, designa o enigma como carmen ou nodosa uerba234. Isto significa que, também no drama senequiano, a palavra da Esfinge (cujo é preciso deslaçar) possui uma origem poética.

A(s) Esfinge(s) de Torga contempla(m) a ligação à poiesis. Resolvendo o enigma, que, simultaneamente, coloca todo o homem no cerne da pergunta e da resposta, aproxima-se da verdade, dos mistérios da condição humana. Assim, a poesia surge ainda ligada à filosofia.

No Diário XVI, de todos os volumes, o mais pungente, aquele em que o bicho instintivo sente a proximidade da morte, a Esfinge é recuperada duas vezes, o que não sucede em nenhum dos outros. Do mesmo modo, o poema analisado surge no tomo XV. Senhora do enigma da condição humana, é esta figura, já espectral, que o poeta e diarista defronta nos últimos passos do seu caminho. Assim, o monstro é também expressão do humanismo que caracteriza a obra torguiana. A interpretação que lhe confere – de que o Homem é a Esfinge de si próprio – ancora-se em alguns pormenores do mito, que seleccionou para metaforizar os conceitos que pretende. E foi o lado negro, o do abismo, de impotência, apesar do conhecimento, que o poeta recriou.

Não esqueçamos que (e o Édipo senequiano alerta-nos para este facto235), embora saindo vitorioso do confronto com a Esfinge, o herói iniciou, ao entrar em Tebas, o caminho do seu destino funesto, há tanto profetizado. A libertação desencadeou, em última análise, a desgraça, a queda e a sombra. Em Torga, encontramos o mesmo processo: a resolução do enigma nodoso conduz à consciência da própria mortalidade, aproximando o Homem do seu carrasco.

“Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade.”, contudo,

“Quanto a ele próprio [Torga], pelo contrário, nenhuma dúvida haverá de que tem sempre tratado de ouvir a Esfinge completamente e de lhe retorquir com frontalidade exemplar. Mas, da sua parte, isso não exclui, antes estimula, o recurso a múltiplos registos. É que a Esfinge é una, mas complexa; singular, mas versátil; unívoca, mas pluricórdica. Exatamente como a obra do grande poeta Miguel Torga.”236

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

 

__________

233 Aliás, presta-lhe uma homenagem nos Poemas Ibéricos, na “História Trágico-Telúrica” (pág. 264), com um poema de título “Séneca”, que transcrevemos pela sua beleza e simbologia: “Antes da loba tive mãe humana. / E desse ventre cordovês amado / Recebi o legado / De que Roma se ufana: // A severa moral, / O estoicismo teimoso da vontade, / E o alto ideal / Duma pobre e cristã fraternidade… // O mais, a toga e o acto suicida / Imposto pela dura tirania, / Foi o cenário que na minha vida / A tragédia pedia.”.

234 Séneca, Oedipus, 98-102: “(…) carmen poposci. Sonuit horrendum insuper, / crepuere malae, saxaque impatiens morae / reuulsit unguis uiscera expetans mea. / Nodosa sortis uerba et implexos dolos / ac triste carmen alitis solui ferae”. (O destacado é nosso.)

235 Op. cit., 106-108: “Ille, ille dirus callidi monstri cinis / in nos rebellat, illa nunc Thebas lues / perempta perdit.”

236 MOURÃO-FERREIRA, David, “Poética e poesia no Diário de Miguel Torga”, Colóquio/Letras 43 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978) 19.

 

***

 

Édipo hesita responder à Esfinge

A Esfinge, enviada por Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio – pois amara o filho de Pélops, Crisipo, em amores culpados –, assolava a região, devorando os seres humanos que não conseguissem decifrar os enigmas que lhes apresentava. De entre os vários enigmas, que todos os dias os tebanos, na ágora, tentavam decifrar em comum mas sem nunca conseguirem, um deles era: “Qual é o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro e que, contrariamente ao normal, quantos mais pés usa mais fraco é?” A resposta é “o homem” (Outro dos enigmas era: “Há duas irmãs: uma gera a outra e a segunda é gerada pela primeira”. Solução: o dia (feminino em grego) e a noite. ).

No entanto, no poema A ESFINGE, ao contrário do mito, a resposta ao enigma apresentado não é “o homem”, mas sim o sujeito poético identificado aqui e em muitos outros lugares com o poeta: “O enigma sou eu”. É o seu percurso existencial de três fases, “A criança, o adulto e o ancião”:

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

 

Segundo o mito, somente Édipo conseguiu responder-lhe e, como prémio, obteve o trono vagante e a mão da rainha Jocasta. A resposta, que parecia fazer dele um homem afortunado, mais não fez do que apressar, tal como ao sujeito poético do poema, a sua desgraça e permitir que se cumprisse o destino inexorável. É por isso “resposta inútil”:

 

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

(M. Torga, Diário XV, p. 1658).

 

No entanto, ao contrário do mito, o Édipo d’A ESFINGE, em Penas do Purgatório, não responde imediatamente à Esfinge. Sabe a resposta, mas inicialmente, por covardia, prefere calar. Responder implica revelar-se por completo e, dessa forma, comprometer o seu futuro. Só posteriormente, num acesso de coragem, ele perde “o sangue frio masculino” e responde abrupta e completamente, como se atirasse à Esfinge a resposta, consciente das terríveis consequências:

 

A ESFINGE

 

És tu ainda a mesma astuta

Do caminho de Tebas.

Voz feminina, ambígua,

Materna e sibilina inquisidora.

Paro e oiço a pergunta, a melodia,

O sofisma sonoro,

E tolhe-me tamanha covardia

Que não respondo - coro.

 

Tão confuso me vejo no dilema

De não ter salvação se me revelo,

E nem sossego enquanto te não diga

De mim tudo o que sei,

Que perco o sangue frio masculino

E, vencido, dou força à eterna lei

Que te manda brincar com o meu destino,

Por seres mulher e porque te encontrei.

 

(M. Torga, Poesia Completa II, Rio de Mouro, 2002, p. 516)

 

Manuel Francisco Ramos, Miguel Torga: manipulação do mito. Edição de Autor, 2013 (ISBN 978-989-98534-7-8)


  

Poderá também gostar de:

  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013




A Esfinge, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-01. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/a-esfinge-miguel-torga.html



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