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segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Fúrias, Sophia Andresen

 

FÚRIAS

 

Escorraçadas do pecado e do sagrado

Habitam agora a mais íntima humildade

Do quotidiano. São

Torneira que se estraga atraso de autocarro

Sopa que transborda na panela

Caneta que se perde aspirador que não aspira

Táxi que não há recibo extraviado

Empurrão cotovelada espera

Burocrático desvario

 

Sem clamor sem olhar

Sem cabelos eriçados de serpentes

Com as meticulosas mãos do dia-a-dia

Elas nos desfiam

 

Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno

Sem rosto e sem máscara

Sem nome e sem sopro

São as hidras de mil cabeças da eficácia que se avaria

 

Já não perseguem sacrílegos e parricidas

Preferem vítimas inocentes

Que de forma nenhuma as provocaram

Por elas o dia perde seus longos planos lisos

Seu sumo de fruta

Sua fragrância de flor

Seu marinho alvoroço

E o tempo é transformado

Em tarefa e pressa

A contra tempo

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

ILHAS, 1.ª ed., 1989, Lisboa, Texto Editora, ilustração de Xavier Sousa Tavares • 2.ª ed., 1990, Lisboa, Texto Editora • 3.ª ed., 1992, Lisboa, Texto Editora, ilustração de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., 2001, Lisboa, Texto Editora • 5.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho.

 

Para uma leitura do poema “Fúrias”

Resumo: O título do poema “Fúrias”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, remete no plano pré-textual para as quotidianas cóleras ou irritações que o determinaram (tal como o título “Contrariedades”, de Cesário Verde), e no plano propriamente textual para a metalinguagem do mito. As deusas da mitologia clássica são convocadas e reconfiguradas neste texto de Sophia, no regime da paródia: dessacralizadas, trivializadas, as Fúrias são aqui a imagem da desordem do mundo atual, que nega ou destrói a ordem essencial da natureza. As representações descritivas das Fúrias ao longo do poema convertem um sentido em forma, ao mesmo tempo que operam a passagem do mito à eventualidade histórica, falando-nos dum tempo “a contratempo” que quebrou a ordem natural do mundo.

 

Antes de serem, no título do poema, nome de deusas da mitologia clássica, as “fúrias” são as iras, as cóleras, as quotidianas irritações que pré-textualmente o determinaram. Até certo ponto, esta composição faz lembrar “Contrariedades”, de Cesário Verde, onde também a impaciência e o ressentimento se convertem em ímpeto ou “furor” poético, e se corporizam na escrita. Ambos os poemas textualizam a exasperação num título seguido da sua ilustração discursiva; ambos exprimem uma ligação ao real de ordem sarcástica, condicionada por fatores adversos, por “contrariedades” (Cesário) ou “contratempos” (Sophia), por uma impossibilidade mais ou menos circunstancial de conciliação entre o sujeito e o mundo; ambos falam excessivamente desse real, se bem que de formas diferentes (o de Cesário é realista, o de Sophia não); e ambos têm uma tonalidade catártica, graças a esse modo excessivo.

Mas o título “Fúrias” remete, já no plano propriamente textual, para a metalinguagem do mito. Fúrias são os “génios do mundo infernal nas crenças populares romanas primitivas” (GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Lisboa: Difel, [19--]., p. 179), equivalentes às Erínias ou Euménides, descritas como “violentas deusas que pertencem ao grupo das mais antigas forças do panteão grego”, pelas quais “se exprime a conceção fundamental do espírito helénico a respeito de uma certa ordem do mundo, que deve ser protegido das forças anárquicas” (id., p. 147). Com os cabelos eriçados de serpentes, são geralmente três, e não reconhecem qualquer outra autoridade divina, nem mesmo a de Zeus. Da escuridão dos Infernos, onde moram, punem todos os excessos humanos, perseguem os criminosos e enlouquecem as suas vítimas, castigando-as assim da hybris que as faz esquecer a sua condição e desafiar a ordem social.

O poema de Sophia convoca e reconfigura o mito, no regime da paródia, ou seja, da inflexão que simultaneamente o decalca e deforma: “Sem cabelos eriçados de serpentes”, “Sem rosto e sem máscara”, “Já não perseguem sacrílegos e parricidas/ Preferem vítimas inocentes/ Que de forma nenhuma as provocaram”. Dessacralizadas, trivializadas, em vez de protetoras da ordem social, as Fúrias são aqui a imagem da desordem, ou duma nova ordem do mundo – esse mundo atual, estilhaçado e confuso, “tão bem organizado que se desorganizou”, como Sophia o definiu numa das suas fórmulas próprias. “A eficácia que se avaria”: eis a caracterização poética da contingência, duma contingência que se sobrepõe à ordem essencial da natureza, ocultando-a, negando-a ou destruindo-a (“Por elas o dia perde seus longos planos lisos/ Seu sumo de fruta/ Sua fragrância de flor/Seu marinho alvoroço”).

Num conhecido ensaio intitulado “Le mythe, aujourd’hui”, Roland Barthes escreveu: “Quel est le propre du mythe? C’est de transformer un sens en forme” (BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, [19--] (1. ed. 1957) p. 204). É justamente o que Sophia faz neste poema, ao lançar mão do mito para representar o real: ao parodiar e atualizar esse mito, dá-lhe novas feições, enumera “formas” concretas das forças infernais que atormentam ou castigam o homem contemporâneo, na sua circunstância temporal e social: “São/ Torneira que se estraga atraso de autocarro/ Sopa que transborda na panela/ Caneta que se perde aspirador que não aspira/ Táxi que não há recibo extraviado/ Empurrão cotovelada espera/ Burocrático desvario”. Todos estes símiles ou exemplos se destinam a presentificar essas forças, numa expressividade paratática que culmina e encontra a sua síntese no verso “Elas são a peculiar maravilha do mundo moderno” – verso onde a antífrase surge como a figura retórica da exasperação dolorida.

Da presentificação do mito em formas hodiernas resulta outro aspeto importante do poema: a passagem do mito à História, da intemporalidade à contingência, do essencial ao acidental. Não esqueçamos que as Erínias pertencem, na mitologia grega, ao grupo das divindades mais antigas, anteriores ao próprio Zeus; a reconversão dessas forças arquetípicas em acidentes dum tempo presente não podia ter maior intencionalidade expressiva, pelo propositado desfasamento que cria. Abundam no texto as referências ao tempo (“a mais íntima humildade/ Do quotidiano”, “as meticulosas mãos do dia-a-dia”, “E o tempo é transformado/ Em tarefa e pressa/ A contratempo”), bem como as marcas duma deíxis temporal (“agora”, “mundo moderno”), reforçadas pela datação do poema (1988).

Assim, as equivalências descritivas das “Fúrias” não convertem apenas um sentido em forma(s): elas operam também a passagem do mito à eventualidade histórica, e falam-nos dum tempo “a contratempo”, que com o seu diferente compasso quebrou a ordem natural do mundo – e, na circunstância, perturbou a harmoniosa serenidade do poema.

 

Clara Rocha, “Para uma leitura do poema ‘Fúrias’, de Sophia de Mello Breyner Andresen”, SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 8, n. 15, p. 60-63, 2º sem. 2004

 

 

"AS FÚRIAS ou de como o pai venceu a mãe" - texto a partir de “As Euménides” de ÉSQUILO dramaturgia, encenação e figurinos FERNANDA LAPA
http://www.escolademulheres.com/producoes-2/2017-2/as-furias-ou-de-como-o-pai-venceu-a-mae/

 

O mundo disfórico: a «cidade suja»

Mas a crítica de Sophia ao reino da opressão e da divisão não se reduz ao tempo da opressão da Ditadura, estendendo-se, nos seus últimos livros, ao âmbito civilizacional. Seguindo os passos da crítica romântica ao culto da razão no iluminismo, a civilização ocidental é apresentada como aquela que «traiu a imanência»264, onde o «ser deixou de estar na phisis e passou a estar no logos»265, «o pensamento se desligou da mão»266. Nos versos de Sophia esta traição será aludida através das «Fúrias» e da cidade «Elsinore».

O poema «Fúrias», segundo a própria Sophia, versa «justamente sobre este mundo de destruição do quotidiano, de destruição do tempo da nossa vida»267.

Castigar os crimes suscetíveis de destruir a harmonia e a ordem social é a missão das «Fúrias», as deusas violentas e vingadoras, que nasceram das gotas de sangue de que a mutilação de Úrano impregnou a terra. Ironicamente apresentadas como «a peculiar maravilha do mundo moderno» e completamente dessacralizadas, as «Fúrias» neste poema não só castigam os criminosos, mas estendem a atitude de vingança sobre todos os homens ao serem responsáveis por um progresso alienante e voraz que procede à subversão da «humilde paz quotidiana»269, representando, desta forma, «todas aquelas implacáveis tarefas quotidianas que privam o homem de qualquer tipo de aliança com o mundo»270. Agora elas não procuram os criminosos, mas «Preferem vítimas inocentes / Que de forma nenhuma as provocaram». O seu poder devastador e persistente manifestado, invisivelmente, «Sem rosto e sem máscara / Sem nome e sem sopro», em múltiplas atuações, leva a poetisa a identificá-las com as terríveis «hidras de mil cabeças» com as quais os homens, privados de uma força hercúlea, se debatem sem as poder vencer.

São as «Fúrias», com o seu maléfico domínio, que impossibilitam as sociedades modernas de fruir o que de melhor há no mundo, como o «sumo da fruta», a «fragrância da flor» e o «marinho alvoroço», tal é o ritmo alucinante a que estão votadas, «o tempo é transformado / Em tarefa e pressa / A contratempo». Desta forma, o homem «torna-se vítima de si mesmo»271.

O que há de mais doloroso em poemas como este é a «consciência da falta coletiva e a impossibilidade de quem quer que seja poder deixar de partilhar nessa falta»272. Helena Langrouva chega mesmo a afirmar que a «consciência do “pecado organizado” do homem e da sociedade por ele criada constitui um dos fulcros da obra de Sophia»273. E, na verdade, na obra de Sophia existem referências ao «pecado burguês»274, ao «pecado organizado»275, àqueles «que atormentam o ar com os seus pecados»276, ao não pagar o justo salário que é um «pecado que brada aos céus»277 e ao «pecado da revolta»278. A palavra pecado, não sendo muito frequente na escrita de Sophia, está sempre associada à sua dimensão social, como transparece no poema «Elsinore»279:

 

No palácio dos Átridas como em Elsinore

Tudo era cavernoso – as paredes

Eram grossas o espaço excessivo e sonoro

Roucas as vozes da maldição antiga

 

Porém em Micenas o sangue era exposto

E corria vermelho como num grande talho

Sujando apenas as mãos dos assassinos

E a água da bandeira –

Lá fora o rio a luz

Continuavam limpos e transparentes

O crime era um corpo estranho circunscrito

Não pertencia à natureza das coisas

 

Em Elsinore ao contrário o mal era um veneno

Subtil

Invadia o ar e a luz – penetrava

Os ouvidos as narinas o próprio pensamento –

O amor era impossível e ninguém podia

Libertar-se:

O inferno vomitava sua pestilência invadia

As veias e os rios:

No entanto o mal não se via era apenas

Um leve sabor a podre que fazia parte

Da natureza das coisas280.

 

A oposição mar/cidade, já desenvolvida anteriormente, neste poema surge na contraposição entre a unidade e a perfeição do mundo grego (Átridas) e o caos do mundo contemporâneo (Elsinore). No mundo grego, ordenado e harmonioso, o miasma estava circunscrito aos lugares do crime e aos criminosos, tal como convoca na invocação dos Átridas: «O crime era um corpo estranho circunscrito / Não pertencia à natureza das coisas», o mal não vazava para o exterior, contaminando somente quem o praticava: «Sujando apenas as mãos dos assassinos / E a água da banheira - / Lá fora o rio a luz / Continuavam limpos e transparentes». Já em Elsinore, reino da Dinamarca, o mal revestia-se de uma subtil complexidade, «um veneno subtil», e expandia-se pelo mundo inteiro, tornando-se incontrolável, «Invadia o ar e a luz», «As veias e os rios». Os horrores não eram exorcizados e «ninguém podia / Libertar-se», pois, ao contrário de Micenas, o mal «fazia parte / Da natureza das coisas». Neste mundo contemporâneo, todo o corpo social se torna responsável, todos pactuam, todos o alimentam: «o mal não se via era apenas / Um leve sabor a podre que fazia parte / Da natureza das coisas».

Esse mal surge na metáfora englobante do mundo contemporâneo, um mundo cada vez mais experimentado como caos sem horizontes que é ainda evocado nos dois últimos versos de «Não te esqueças nunca», de Ilhas: «Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima / o horror o terror a suprema ignomínia»281. Daí que por mais que o sujeito poético» suba e desça montanhas e colinas, atravesse rios, na procura de um de um «país sem mal»282, tal como o revolucionário do seu tempo, nada tinha «encontrado»283.

 

Emanuel Sousa, Poesia e Transcendência: Uma leitura teológica da obra de Sophia de Mello Breyner Andresen. Universidade Católica Portuguesa - Faculdade de Teologia, 2010 (data de defesa da tese: 2012)

 

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264 Carta de Sophia de Mello Breyner Andresen a Jorge de Sena, 18 de novembro de 1972. In Correspondência: Sophia Mello Breyner e Jorge de Sena, p. 124.

265 Carta de Sophia de Mello Breyner Andresen a Jorge de Sena, 18 de novembro de 1972. In Correspondência: Sophia Mello Breyner e Jorge de Sena, p. 124.

266 ANDRESEN – O Nome das Coisas, p. 43.

267 Entrevista a J. A. Sousa. Jornal de Notícias (28 de março de 1990) 9.

269 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p. 43.

270 CUNHA, António M. dos Santos – Sophia de Mello Breyner Andresen: Mitos gregos e encontro com o real. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2004, p. 120.

271 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p. 43.

272 MAGALHÃES – Sophia de Mello Breyner, p. 43.

273 LANGROUVA – De Homero a Sophia, p. 162.

274 ANDRESEN – Posfácio, p. 74.

275 ANDRESEN – Posfácio, p. 74.

276 ANDRESEN – Geografia, p. 23.

277 ANDRESEN – Contos Exemplares, p. 58.

278 ANDRESEN – Contos Exemplares, p. 65.

279 Elsinore é uma localidade situada na Dinamarca, ligada à peça de Hamlet de William Shakespeare, traduzida por Sophia, publicada pela Editora Lello, em 1987.

280 ANDRESEN – Ilhas, p. 68.

281 ANDRESEN – Ilhas, p. 16.

282 ANDRESEN – Ilhas, p. 56.

 

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Fúrias, Sophia Andresen”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-17. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/furias-sophia-andresen.html



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