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sábado, 26 de novembro de 2022

Arrojos, Cesário Verde


 

FANTASIAS DO IMPOSSÍVEL

ARROJOS1

 






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Se a minha amada um longo olhar me desse 
Dos seus olhos que ferem como espadas, 
Eu domaria o mar que se enfurece 
E escalaria as nuvens rendilhadas. 

Se ela deixasse, extático2 e suspenso 
Tomar-lhe as mãos mignonnes3 e aquecê-las, 
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso 
Apagaria o lume das estrelas. 

Se aquela que amo mais que a luz do dia, 
Me aniquilasse os males taciturnos4,
O brilho dos meus olhos venceria 
O clarão dos relâmpagos nocturnos. 

Se ela quisesse amar, no azul do espaço, 
Casando as suas penas com as minhas, 
Eu desfaria o Sol como desfaço 
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura5 dos meus loucos desvarios 
Fosse menos soberba6 e menos fria, 
Eu pararia o curso aos grandes rios 
E a terra sob os pés abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos 
Me concedesse apenas dois abraços, 
Eu subiria aos róseos7 paraísos 
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos 
E os lamentos das cítaras8 estranhas, 
Eu ergueria os vales mais profundos 
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia 
Me estreitasse ao peito alvo como arminho9,
Eu nunca, nunca mais me sentaria 
Às mesas espelhentas do Martinho10.

Cesário Verde

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de março de 1874

Obra Completa (org. Joel Serrão), Lisboa, Livros Horizonte, 1988

 

___________

[1] extático: em êxtase; maravilhado.

[2] mignonnes (palavra francesa): delicadas; graciosas; pequenas.

[3] taciturnos: calados; tristes.

[4] Laura: a mulher celebrada pelo poeta italiano Petrarca, apresentada como amada inacessível.

[5] soberba: altiva; arrogante.

[6] róseos: da cor das rosas; rosados.

[7] cítaras: instrumentos musicais de cordas.

[8] arminho: animal das regiões polares, de pêlo macio e, no Inverno, muito branco.

[9] Martinho: café lisboeta.

 



 

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas ao questionário sobre o poema “Arrojos”, de Cesário Verde.

1. «Arrojos» foi publicado em conjunto com dois outros poemas de Cesário sob o antetítulo comum «Fantasias do Impossível».

Explicite as relações de sentido que este antetítulo estabelece com o texto.

2. Identifique quatro dos traços que caracterizam a figura feminina, documentando-os com elementos do texto.

3. Indique um dos efeitos de sentido da hipérbole presente nos versos: «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas» (vv. 7-8).

4. Refira a importância dos dois últimos versos para a interpretação do poema.

5. Analise a relação do «eu» com a «amada», tal como é expressa no discurso poético.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Através dos dois primeiros versos de cada uma das quadras do poema, vai-se tecendo a fantasia de uma paixão feliz (ele fantasia aquilo que faria com a amada se esta o permitisse): as sucessivas orações condicionais assinalam o carácter hipotético, não real, dessa felicidade. Assim se sugere uma série de «Fantasias do Impossível», anunciadas no antetítulo e depois desenvolvidas nos dois últimos versos de cada quadra, em que se projetam as ações sobre-humanas com que o «eu» celebraria a plenitude de tal paixão (se ela fosse real).

2. Afigura feminina apresenta os seguintes traços caracterizadores:

- sedutora, olhar cortante (glacial): «olhos que ferem como espadas» (v. 2);

- delicada, mãos pequenas e graciosas: «mãos mignonnes» (v. 6);

- amada inacessível: «a Laura» (v. 17);

- influência perversa sobre o «eu»: «a Laura dos meus loucos desvarios» (v. 17);

- arrogância e vaidade: «soberba» (v. 18);

- insensibilidade e indiferença: «fria» (v. 18);

- distância e irrealidade: «aquela visão da fantasia» (v. 29);

- pele muito branca (e macia): «peito alvo como arminho» (v. 30);

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de quatro traços caracterizadores.

3. A hipérbole, presente nos versos «Eu com um sopro enorme, um sopro imenso /Apagaria o lume das estrelas», produz, entre outros, os seguintes efeitos de sentido:

- exprime a intensidade da paixão;

- representa a força da paixão feliz, capaz de conferir os poderes sobre-humanos que permitem ao sujeito dominar as forças da Natureza;

- sugere, pelo desmesurado excesso da expressão (que se mantém, ao longo do poema, pelo menos até à penúltima estrofe), a presença de auto-ironia na atitude do «eu»;

- …

Nota - Recorda-se que o enunciado da pergunta requer a apresentação de um dos efeitos de sentido.

4. Os dois versos finais têm um marcado cunho irónico, porque apresentam como a mais ousada das audácias (dos «Arrojes») do «eu», apaixonado e feliz, aquela que não passa do corte com um hábito, próprio do quotidiano citadino: ir a um determinado café. Desta forma, estes versos evidenciam o carácter lúdico e irónico da composição (já enunciado ou sugerido pelo empolamento da linguagem hiperbólica presente ao longo do poema).

5. A relação do «eu» com a «amada» é marcada pelo desequilíbrio: à paixão do «eu» («aquela que amo mais que a luz do dia» - v. 9) correspondem a distância e a inacessibilidade do seu objeto, só transponíveis pela fantasia, pelos «Arrojos» da imaginação.

O poema é a expressão dessa fantasia. Nessa relação sonhada, o «eu», formulando de diferentes modos o desejo de que a «amada» corresponda aos seus votos de amor, representa-se expectante e suspenso, manifestando, por um lado, a consciência da impossibilidade da realização dos seus desejos e sugerindo, por outro lado, a atitude do «eu» enlevado na sua própria fantasia (que, a realizar-se, o transfiguraria em sujeito de ações sobre-humanas).

 

Fonte: Exame Nacional do Ensino Secundário n.º 139. 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 286/89, de 29 de agosto). Cursos Gerais e Cursos Tecnológicos. Prova Escrita de Português B. Portugal, GAVE, 2003, 1.ª fase, 2.ª chamada

 

Poderá também gostar de:

 

  • Comentário do poema “Arrojos”, de Cesário Verde, por Maria Figueiredo e Maria Belo, em Comentar um texto literário. Lisboa, Editorial Presença, 1999 (6.ª ed.), pp. 76.85

 


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