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domingo, 19 de março de 2023

Roi Queimado morreu com amor (Cantiga de maldizer)

 


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Roi Queimado morreu com amor
em seus cantares, par Santa Maria,
por ũa dona que gram bem queria;
e, por se meter por mais trobador,
por que lh’ela nom quis [o] bem fazer,
feze-s’el em seus cantares morrer,
mais resurgiu depois, ao tercer dia.

Esto fez el por ũa sa senhor
que quer gram bem; e mais vos ém diria:
por que cuida que faz i maestria,
enos cantares que fez, á sabor
de morrer i e des i d’ar viver;
esto faz el, que x’o pode fazer,
mais outr’omem per rem nono faria.

E nom á ja de sa morte pavor,
se nom, sa morte mais la temeria,
mais sabe bem, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-[s’]em seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, - mais queno cuidaria!

E se mi Deus a mi desse poder
qual oj’el á, pois morrer, de viver,
ja mais morte nunca [eu] temeria.

 

Pêro Garcia Burgalês, CBN 1380/ CV 988

A Lírica Galego-Portuguesa, ed. de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 230

Notas:

v. 1 – Roi Queimado – poeta trovador, que viveu nos reinados de D. Afonso III e D. Dinis.

v. 4 – por se meter por mais trobador – para se mostrar melhor trovador.

v. 9 – ém – isso (o assunto).

v. 10 – faz i maestrianisso mostra grande talento; faz versos como um mestre.

vv. 11-12 – á sabor / de morrer i e des i d’ar viver – tem gosto em morrer neles e depois voltar a viver.

v. 13 – x’ –  se

v. 14 – per rem – por coisa nenhuma.

v. 14 – nono – não o.

v. 21 – queno – quem o.

v. 23 – qual oj’el á, pois morrer, de viver – que ele hoje tem, que é o de viver depois de ter morrido.

 

Paráfrase da cantiga: 

Roi Queimado morreu de amor
nos seus versos - por Santa Maria! -,
por causa de uma mulher que ele amava muito;
e, para se mostrar um grande trovador,
porque ela não lhe quis corresponder,
ele fez-se morrer nos seus versos,
mas ressuscitou depois, ao terceiro dia.

Ele fez isso por uma senhora sua
que ele ama muito; e mais vos dele diria:
porque ele pensa que mostra talento,
nos versos que faz, tem o gosto
de neles morrer para depois voltar à vida;
isto faz ele, que o pode fazer,
mas nenhum outro homem faria isso.

E já não tem pavor da sua morte,
senão, teria mais medo dela,
mas sabe bem, pela sua sabedoria,
que viverá, desde que esteja morto;
e faz-se morrer no seu canto,
desde que viva outra vez: vejam que poder
que Deus lhe deu - mas quem diria!

E se Deus me desse a mim o poder
que ele tem hoje, de viver depois de morrer,
eu jamais temeria a morte.


I - Questionário sobre a cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Roi Queimado morreu com amor”, de Pêro Garcia Burgalês.

1. Há, nesta composição poética, uma sátira ao trovador Roi Queimado.

1.1. Identifique o objeto da sátira.

1.2. Identifique os elementos que revelam mordacidade e ironia exemplificando com expressões do poema.

2. Classifique a composição e justifique.

3. Identifique os recursos estilísticos em:

a) «feze-s’el em seus cantares morrer,/ mais resurgiu depois, ao tercer dia» (vv. 6-7);

b) «á sabor/ de morrer i e des e d’ar viver». (vv. 11-12)

4. Complete a seguinte descrição formal da cantiga:

A cantiga é composta por três coblas uníssonas porque

O terceto final é designado deporque

A ligação por coblas «capdenals» faz-se do seguinte modo:

Palavra-rima:

Rima derivada:

Quanto à medida, os versos são

 

 

Proposta de resolução do questionário:

1.1. O objeto da sátira é a «morte de amor» (das cantigas de amor, da poesia trovadoresca). Trata-se de uma convenção poética das cantigas de amor que o trovador Roi Queimado explora com particular insistência.

1.2. Elementos que revelam crítica e ironia:

- morte de amor nos seus cantares («morreu con amor», 1; «feze-s’el em seus cantares morrer», 6; «há sabor / de morrer i», 11-12; «faz-se em seu cantar morte prender», 19);

- ressurreição ou vida que recebe por ter morrido («mais resurgiu depois, ao tercer dia», 7; «des i d’ar viver», 12; « viverá, des quando morto for», 18; « des i ar vive», 20);

- querer passar por trovador («por se meter por mais trobador», 4);

- pensar que sabe compor cantigas com mestria («cuida que faz i maestria», 10);

- o poder que presume ter («vedes que poder / que lhi Deus deu», 20-21; «se mi Deus a mi desse poder / qual oj’el á», 22-23);

- ...

(Adaptado de Português B 11.º Ano- teste de avaliação 1, Porto Editora)

2. Trata-se de uma cantiga de maldizer por dirigir a sátira diretamente a uma pessoa (um trovador conhecido). Ainda quanto ao género, esta composição pode ser classificada como sirventês literário.

3. a) A ironia e a hipérbole nos versos «feze-s’el em seus cantares morrer,/ mais resurgiu depois, ao tercer dia» (vv. 6-7) consistem em exagerar e ridicularizar a atitude do trovador que finge morrer de amor por uma senhora que não lhe corresponde e depois ressuscita como se fosse um milagre divino. Essa comparação com a morte e ressurreição de Cristo é uma forma de zombar da pretensão e da falsidade do trovador que usa os seus cantares para impressionar a sua senhor.

3. b) A ironia presente nos versos «á sabor/ de morrer i e des i d’ar viver» (vv. 11-12) consiste em sugerir que o trovador tem prazer em fingir morrer e ressuscitar nos seus cantares, como se fosse um jogo ou uma arte. Essa ironia reforça a ideia de que o trovador não tem sentimentos verdadeiros pela sua senhor, mas apenas quer mostrar a sua habilidade artística.

4. Descrição da estrutura métrica e estrófica da cantiga:

A cantiga é composta por três coblas uníssonas porque apresentam o mesmo esquema rimático (abbaccb) e a mesma manifestação vocálica (a: -or; b: -ia; c: -er).

O terceto final é designado de finda porque constitui um artifício que serve de conclusão do assunto da cantiga.  Esta finda é composta por três versos que retomam a rima dos últimos das estrofes (ccb).

A ligação por coblas «capdenals» faz-se do seguinte modo: v. 7 “mais” nas coblas I-II.

Palavra-rima: “fazer” (vv. 5, 13); “poder” (vv. 20, 22); “temeria” (vv. 16, 24); “viver” (vv. 12, 23).

Rima derivada: “fazer” / “faria”.

Quanto à medida, os versos são decassílabos agudos (1.º, 4.º, 5.º e 6.º de cada copla) e graves (2.º, 3.º e 7.º de cada copla); o primeiro e o último versos são eneassílabos.

 

II – Resolve o seguinte questionário do Exame Nacional sobre a cantiga “Roi Queimado morreu com amor”, de Pero Garcia Burgalês.

1. Com base na primeira estrofe do poema, explicite dois dos motivos pelos quais Roi Queimado é alvo da sátira de Pero Garcia Burgalês.

2. Refira de que modo a crítica inicial é desenvolvida na segunda e na terceira estrofes, destacando dois aspetos relevantes.

3. Proceda à análise formal da cantiga, no que respeita à estrutura estrófica e à rima.

4. Analise a importância da finda para o sentido geral do poema.

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Explicita, adequadamente, dois dos motivos pelos quais Roi Queimado é alvo da sátira, com base na primeira estrofe.

Linhas de leitura

Com base na primeira estrofe, Roi Queimado é o alvo da sátira de Pêro Garcia Burgalês pelos seguintes motivos:

− ter proclamado, nos seus cantares, a sua morte «por u ~ a dona que gram bem queria» (v. 3), dado ela não corresponder ao seu sentimento amoroso (v. 5);

− revelar o artificialismo da coita de amor subjacente às convenções do código de amor cortês (vv. 6-7);

− ter-se por bom trovador (v. 4), quando o que faz é recorrer excessivamente ao tópico da morte por amor (v. 4 e v. 6).

2. Refere, adequadamente, de que modo a crítica inicial é desenvolvida na segunda e na terceira estrofes, destacando dois aspetos relevantes.

Linhas de leitura

A crítica humorística inicial é reiterada, com algumas variações, na segunda e na terceira estrofes, no que se refere aos seguintes aspetos:

− a falta de talento poético do trovador satirizado, que, no entanto, se considera um bom trovador (v. 10);

− o manifesto exagero com que afirma, nesses seus cantares corteses, que morre pela sua «senhor» (vv. 11-12);

− a capacidade de morrer e de ressuscitar na sua poesia, que sugere que Roi Queimado seria dotado de um poder especial, que mais nenhum homem possuiria (vv. 13-14);

− a imaginária benção recebida por graça divina (vv. 20-21).

3. Procede, adequadamente, à análise formal da cantiga, no que respeita à estrutura estrófica e à rima.

Linhas de leitura

O poema (uma cantiga de mestria) é composto por quatro estrofes, correspondendo a última à finda.

Exceto esta, que é um terceto, as restantes estrofes são constituídas por sete versos.

O esquema rimático (fixo) é abbaccb nas três primeiras estrofes e ccb na finda, apresentando rima interpolada no primeiro e no quarto versos das estrofes e emparelhada nos segundo, terceiro, quinto e sexto versos. O sétimo verso retoma a rima do segundo e terceiro versos.

4. Analisa, adequadamente, a importância da finda para o sentido geral do poema.

Linhas de leitura

Na finda desta cantiga, o trovador reafirma as razões que motivaram a sátira a Roi Queimado, apresentadas nas estrofes anteriores. Assim, conclui, em tom jocoso, que também gostaria de receber de Deus esse poder de ressuscitar, embora saiba muito bem, como Roi Queimado sabe, que não chega nunca a haver senão uma morte fingida.

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa. Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2017 | 11.º Ano de Escolaridade | Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho. República Portuguesa – Educação / IAVE-Instituto de Avaliação Educativa, I.P.

 

 

III - Leia atentamente o seguinte excerto da Arte de Trovar:

«Cantigas d’escarneo som aquelas que os trobadores fazem querendo dizer d’alguem em elas, e dizem-lho per palavras cubertas que ajam dous entendimentos...»

Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/artedetrovar.asp

1. Especifique e explique o recurso estilístico que é definido no texto, demonstrando a sua função nas cantigas estudadas em aula.

2. De que forma as cantigas de escárnio são ilustrativas de uma certa liberdade de expressão da época?

 

Proposta de resolução:

1. O recurso estilístico que é definido no texto é a equivocatio, que consiste em usar palavras ou expressões que podem ter mais de um sentido. A função da equivocatio (ambiguidade) nas cantigas de escárnio é encobrir a agressividade da crítica e permitir ao trovador zombar do seu alvo sem o nomear diretamente. Assim, o trovador pode escapar à censura ou à vingança do ofendido, que nem sempre percebe a intenção satírica da cantiga. Por exemplo, na cantiga “Ai dona fea”, João Garcia de Guilhade elogia ironicamente uma mulher feia e velha, chamando-a de “formosa” e “bela”, mas insinuando que ela é tão repulsiva que ninguém a quer.

2. As cantigas de escárnio são ilustrativas de uma certa liberdade de expressão da época porque mostram que os trovadores podiam criticar abertamente vários aspetos da sociedade medieval, como a corrupção dos nobres e do clero, os costumes amorosos e sexuais, as rivalidades políticas e literárias, etc. As cantigas de escárnio também revelam um espírito crítico e humorístico dos trovadores, que usavam a poesia como uma forma de intervenção social e cultural. No entanto, essa liberdade não era absoluta nem isenta de riscos, pois os trovadores podiam ser perseguidos ou castigados pelos seus alvos se fossem descobertos ou denunciados.

 

Bibliografia:

"10 Cantigas de Escárnio - Minhas Atividades", disponível em https://minhasatividades.com/cantigas-de-escarnio/, acedido em 17/03/2023

"O que é cantiga de escárnio?", disponível em https://todasasrespostas.pt/o-que-e-cantiga-de-escarnio, acedido em 17/03/2023

"Poesia trovadoresca: Cantigas de Escárnio e Maldizer", disponível em https://estudoemcasaapoia.dge.mec.pt/recurso/poesia-trovadoresca-cantigas-de-escarnio-e-maldizer, acedido em 17/03/2023


 


CARREIRO, José. “Roi Queimado morreu com amor (Cantiga de maldizer)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 19-03-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/03/roi-queimado-morreu-com-amor-cantiga-de.html


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