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domingo, 23 de abril de 2023

Aos amigos, Herberto Helder


 

AOS AMIGOS

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

 

Herberto Helder, Lugar (1961-1962)

 

No poema-dedicatória “Aos amigos”, que serve de pórtico de abertura ao livro Lugar (1961-1962), de Herberto Helder, o sujeito poético dirige-se aos seus amigos, que “são os escritores aos quais ele se vincula e dos quais se coloca como herdeiro, aqueles que não é preciso chamar, pois estão sempre presentes e próximos, por isso ele não se esquiva de considerá-los amigos. Em Edoi Lelia Doura, ‘antologia de teor e amor, unívoca na multiplicidade vocal, e ferozmente parcialíssima’ (HELDER, 1985, p. 8), o autor usa o termo ‘vozes comunicantes’ para apontar os poetas e os poemas que constroem tanto a sua poética quanto a si próprio:

‘Quando lemos lado a lado, todos estes poetas e poemas, sabemos estarem eles entregues ao serviço de uma inspiração comum, a uma comum arte do fogo e da noite, ao mesmo tempo patrocínio constelar. O que varia é a política das formas, maneira de guerra e hipnotismo das pessoas e dos tempos. Nunca o estilo de alimento, de morte, de mudança’ (HELDER, 1985, p. 8)”1.

Assim, o poema é uma homenagem aos seus mestres e companheiros de escrita, que partilham com ele um talento doloroso e obscuro, uma arte do fogo, uma paixão pelo silêncio e pela palavra.

O sujeito poético começa por apresentar a ideia de que o amor pelos amigos é algo que acontece devagar, como se fosse um gesto de cuidado e de compaixão. Essa expressão sugere que a amizade é algo que se desenvolve lentamente e que pode ser profundamente sentido.

O poema começa com a imagem dos amigos tristes, que têm "cinco dedos de cada lado", uma descrição estranha que sugere a humanidade universal desses amigos. Esta é uma possível interpretação da expressão, mas não é a única. Outra forma de interpretar o verso é considerar que os cinco dedos de cada lado se referem ao sujeito poético: Amo devagar, com cinco dedos de cada lado, os amigos que são tristes. Isto é, ele ama com as mãos, no sentido de que o seu amor é criativo, artístico, expressivo. Ele usa as suas mãos para escrever, para tocar, para comunicar o seu amor pelos amigos. Ou será, ainda, que ele usa a imagem dos dedos para contar os seus amigos, sugerindo que eles são poucos e frágeis?

“O poema em questão, texto que parece reivindicar uma aliança entre não só amigos, mas amigos poetas, indica, por meio de uma série de imagens que nos remete ao universo do ofício da escrita (os dedos, os livros, o talento), alguns dos topoi da poética herbertiana que mais de perto aqui nos interessa. A loucura (“Os amigos que enlouquecem e estão sentados”), primeiro desses topoi que gostaria de assinalar, marca da desrazão dionisíaca que rege esta poesia, surge em simultâneo com a condição sentada dos amigos, condição que simbolicamente aponta para a situação criativa, como é possível notar em outros passos da obra de Herberto. Sendo assim, loucura e criação são tópicos correlativos, de modo que podemos inferir ser a criação uma espécie de loucura, ou um gesto por ela movido, o que faz do poema (o objeto criado) uma obra que resguarda sentidos à margem da lógica racional – organizadora do mundo profano do trabalho e da produtividade.”2

A marca de identidade (compromisso estético) que possibilita a comunicabilidade entre esse grupo de amigos que compartilham uma paixão comum pela arte é representada pela imagem dos livros que estão atrás deles a arder para toda a eternidade. Essa paixão é tão intensa que constrói um lugar de silêncio, um lugar onde os amigos podem comunicar entre si apenas por meio da poesia, por meio das suas "vozes comunicantes".

Outra imagem recorrente na poesia de Herberto Helder é a do fogo, que exprime a sua visão do mundo e da arte como um processo de transformação constante, de busca incessante, de entrega total e de risco permanente. O fogo é, assim, o elemento que une os amigos no mesmo lugar de silêncio e de paixão.

O poema de Herberto Helder tem uma dimensão sublime que transcende a realidade e que toca o leitor pela sua força expressiva e pela sua capacidade de comunicar uma experiência única e profunda, nomeadamente a sua visão peculiar sobre a amizade e sobre a comunicação entre os escritores. Através da poesia, os amigos são capazes de estabelecer uma comunicação profunda e intensa que transcende as palavras e que é baseada numa paixão comum pela arte. Por isso, o título sugere uma dedicatória aos amigos do poeta, que partilham com ele uma condição de tristeza, loucura e paixão.

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1 Entre a ruptura e o contínuo: a poética da fragmentação em Photomaton & Vox, de Herberto Helder, Beatriz Lima. Belo Horizonte, Faculdade de Letras da UFMG, 2013

2 “Os sentidos da revelação: Sophia e Herberto”, Paulo Sousa. Revista do CESP, Belo Horizonte, v. 38, n. 60, p. 97-116, 2018. eISSN: 2358-9787. DOI: 10.17851/2358-9787.38.60.97-116

 

 


CARREIRO, José. “Aos amigos, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 23-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/aos-amigos-herberto-helder.html


 

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