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quinta-feira, 4 de maio de 2023

Andreia C. Faria


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904



Haveria árvores em vez de homens

no sentido em que os homens crescem
no lugar das árvores, ao invés das árvores

Fossem as árvores casas a desmontar e esquecer
como a cabeça que dói, cresceríamos
árvores de pernas para o ar, ramos
lutando no sentido do céu, o sentido da cabeça,
esse, para baixo, mais fundo
na morte, e ainda os cabelos e as memórias
irrompendo
da armação de osso por onde hão de espreitar
arqueólogos de dedos translúcidos

Haveria árvores em vez de homens

A cabeça que pouso
no reduto da árvore ausente
é ao invés da árvore uma casa
descendente, com o sentido de um jarro
esvaziado na terra

Andreia C. Faria, Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração, Edições Artefacto, 2015

 


O século das mulheres

O que mais me vem interessando na literatura de hoje é a poesia das novas poetas. A mulher é uma equação que o mundo nunca permitiu ser resolvida. Adiada pela História, mormente pela História dos homens, à mulher nunca lhe foi dada verdadeiramente a oportunidade. As mais das vezes, a cultura ocidental dá a mulher como tolerada ou sacralizada. Está constantemente colocada na posição de visita no mundo, mais do que sua proprietária, seu padrão natural.

Parece-me, contudo, que com tantas limitações, hipocrisia e paternalismo, a mulher chega ao seu século, depois das primeiras gerações académicas, depois das conquistas inestimáveis das sufragistas. A mulher culta de hoje, sem mais paciência para a expectativa dos homens, parece-me chegar a uma poesia profundamente própria que contrasta com uma mais linear poesia dos homens.

A poesia é sintoma do que está por vir. Arte de pressentimento profundo, ela denuncia muito do que outras artes e ciências apenas entendem mais tarde. Há um sem licença que faz com que a poesia das mulheres de hoje não se comporte como reação para passar a comportar-se como ensimesmamento. É uma identidade plena e não um complemento. Por mais que nos vejamos como partes dos outros, seres votados para o encontro, o poema sonha o absoluto de si mesmo, quer bastar-se, valer acima do seu autor, superá-lo.

Esta geração de mulheres poetas é sem precedentes. O passado preserva as mais magníficas poetas, mas quero crer que nunca como agora se assistiu a uma geração que revelasse tão vasta quantidade de autoras, tão grande qualidade, tão entusiasmante universo discutido. De certo modo, à poesia das mulheres, com exceções, faltava-lhe o seu extremo, coisa que parecia apenas denunciada por casos pontuais. O que vejo nas poetas de agora é muito mais do que um protesto ou resistência, é liberdade. O sujeito poético deita mão da sua plena dimensão, feita de sua inteligência, desejo ou escatologia, e faz de seus assuntos um sem limite, onde o corpo se usa inteiro, a casa deixa de ser lugar de submissão, o homem acaba como sentido último da vida ou, sequer, inevitável para a realização da mulher.

Gosto de ver estas poetas nos antípodas do que as cantigas d’amigo sonharam para as mulheres. Deixaram de ser medidas pela espera do cavaleiro encantado. Deixaram de temer. A vida da mulher não pode mais justificar-se pela conquista ou, sequer, pela presença do homem. A voz das poetas deixou-se disso.

São muitos os exemplos que podemos evocar em Portugal. Contudo, com maior ou menor distância, em todos os exemplos podemos sentir a marca de Adília Lopes. A voz sem concessões, suspirando francamente por seus ensejos mas sem se conduzir a uma higienização que modere o discurso, que lhe incuta medo ou uma subserviência, desde logo uma subserviência ao homem amado. Assisto à nova poesia das mulheres, de tantas mulheres, como o verdadeiro manifesto feminista. Algo que não propende para qualquer retaliação, mas que tem que ver, sim, com a liberdade que menciono acima.

De Filipa Leal a Renata Correia Botelho, de Andreia C. Faria a Tatiana Faia, de Cláudia R. Sampaio a Sandra Andrade, de Rosalina Marshal a Matilde Campilho, e mais Margarida Vale de Gato, Margarida Ferra ou Golgona Anghel, entre tantas outras. De facto, o coletivo de mulheres poetas revelado desde 2000 é, como um todo, muito mais urgente do que o coletivo de homens poetas que lhe corresponde. Não encontro na História momento algum que se lhe compare. Faz-me acreditar que se levante um século das mulheres.

Sem ingenuidade, o futuro não está para graças. Regredimos em quase todos os índices no que respeita à paridade entre géneros, no entanto, a paridade que os homens podem não querer reconhecer já não pode impedir que as mulheres se assumam. O que espero deste século é isso. Que não deixem de ser livres por mais que o mundo que continua a ser dos homens, e a tender ser para homens, as queira disciplinar. Isto não é um apelo a um feminismo desenfreado que opere por ódio aos homens. É um sonho de ver o padrão feminino livre, sem preconceito nem submissão. Livre.

Escreve assim Andreia C. Faria: “Haveria árvores em vez de homens/ no sentido em que os homens crescem/ no lugar das árvores, ao invés das árvores”. E também: “Não desejes nada puro -/ compaixão, água fresca, incidências vegetais./ Não te queiras fímbria, orla/ humilde de substâncias imortais”. 

Valter Hugo Mãe, Jornal de Letras, 2018-03-29

Crónica disponível em: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/letras/2018-03-29-O-seculo-das-Mulheres


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904



Dupla negativa

 

Não comas nada que não possa apodrecer
Não comas nada que não anoiteça
à espera do grande luar de Agosto, a cabeça mansa
do boi que espreita à janela do curral
Nada que não resplandeça
e se abra, irregular odor ao vento

Não comas nada menos que aceso
e amadurecido pelas semelhanças, nada
que enquanto dormes te não pondere o sangue
Nada comas que te não acaricie ou ofereça a linha do dorso, suprema

Não queiras nada que não tenha
superfície e mistério

Não desejes nada puro─
compaixão, água fresca, incidências vegetais
Não te queiras fímbria, orla
humilde de substâncias imortais

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo. Porto Editora, 2019


 

Andreia C. Faria, por Rui Duarte Silva


poema de “Flúor”

(sem título)

 

Sou a mulher que se mata por amor a ti
e a mulher por amor de quem se morre
Sou o rapaz que há como uma água turva
na mulher por quem se morre
o bucal húmido do telefone onde ela expia
pensamentos violentos como plumas
Sou a pluma que lhe abre os lençóis
a lasca de madeira sobre a mesa
a lâmina à espera
que a nudez dê frutos
Sou aquilo que fere o rapaz
e a roupa que o tapa
Sou o brilho da janela onde a mulher
se balança

 

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo. Porto Editora, 2019




O trabalho de Andreia C. Faria está entre os mais urgentes, magníficos, da poesia contemporânea. A sua profundidade, uma contenção que não a impede da frontalidade, o enunciado terrivelmente irónico, o rasgo inesperado de cada verso, fazem do seu texto uma novidade por classificar, demarcando-a inclusive do coletivo de mulheres poetas que hoje escrevem também em força e bastante esplendor.

Admiro a sua atmosfera desarmante construindo grande intimidade, sem se tornar obscena e sem fazer cedências. Há uma bravura férrea que nos parece sugerir que a intimidade está posta no poema como matéria responsável, animal ciente que se analisa numa medicina rica, eficaz. São poemas da "difícil cria", pessoa improvável, consciência improvável, como desigual, desajustada, que profere para saber de si mas, sobretudo, para desmascarar. O poema está para a perplexidade mas está igualmente para a constatação de que adiantará muito pouco perante o elementar estrago existencial.

Valter Hugo Mãe, coordenador da coleção elogio da sombra



Enquanto escrevo esta mensagem
o telemóvel vibra
como um pássaro que batesse as asas
entre as minhas mãos.
Apiedo-me dele, da luz morna que expele
como um hálito, da sofreguidão
de cria sondando-me
os dedos à procura de alimento.
Enraízo-me nele, na sua
lógica de pios e de palhas vãs,
e enraíza-se ele nos meus sonhos, trazendo
luas e marés às minhas mãos,
terra rara onde pousar palavras,
doces escoriações na alma por cada
homem que me lembra
e esquece
lembra
e esquece.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022, p. 40


 ***

Morrer
é talvez mudar de luz
como quem muda os lençóis
ou sacode
na erva o calor
de mantas sombrias.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022, p. 51

 

***

CANÍCULA

 

Reconheço a estrela baça de calor,
o cão que a segura
sobre a aziaga selva de gavetos,
avenidas, varandas que sustentam
planos sem trato nem meditação.

Como Goya, esgravatando o surdo adobe
procuro-a, inesperada e náufraga,
vinda da noite num derrame
de pele rósea, quase humana,
o crânio morno dormitando
na disjunta alba, entre as minhas mãos.

Em formas de carne e blandícia,
semelhando humana víscera, a borra
de cidades imortais: falo
de estrelas porque perco do amor a face
e só um húmido nariz me guarda
dos clamores da casa num dia de verão.

 

Andreia C. Faria, Canina. Edições Tinta-da-China, 2022


Andreia C. Faria, por Rui Duarte Silva

Andreia C. Faria: com a língua fora dos eixos

“Um desejo tão espúrio, escrever.” Assim começa um dos poemas de “Canina”, o último livro de Andreia C. Faria. Às tantas lemos que “nada do que importa está escrito” e que “é tão estranho viver, tão roubado às flores, ao sono, ao vinho”. Viver é estranho e o que importa não está escrito. E, no entanto, ela escreve desde que começou a ler e a palavra ganhou o peso do que existe. Em 2018, o volume “Tão Bela Como Qualquer Rapaz” (Língua Morta) ganhou o Prémio Autores da SPA e, um ano depois, “Alegria para o Fim do Mundo” — compilação dos seus livros mais alguns inéditos lançada pela Porto Editora — venceu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro. Na altura ouviu repetidamente uma frase: “Esperamos muito de si.” Porque uma poeta com menos de 40 anos está a começar, é incipiente, ainda que se sinta já “uma rapariga a envelhecer”.

“Ganhar prémios pode criar alguma esquizofrenia. Há uma pessoa que é a Andreia C. Faria, que não é exatamente quem eu sou no quotidiano. Por vezes tenho algumas saudades de quando escrevia e nem sabia o que estava a fazer”, diz ao Expresso. Nesses tempos, quando o primeiro livro deu à estampa, em 2008, andava à procura. Chamou-lhe “De Haver Relento”, 19 poemas marcados por leituras então feitas, e, se não os renega, também não os considera totalmente ‘seus’. “Continuo a gostar do livro, mas não me identifico com ele. É um número zero, um bom exercício”, comenta. Lembra-se de o ter escrito numa semana, de rajada, e que foi quase sem emendas que o entregou ao editor da Cosmorama, José Rui Teixeira, “amigo da Maia”, para este o publicar.

Antes de um poeta ser verdadeiramente há um caminho. E custa encontrar a própria voz. “Não é fácil explicar essa evolução da Andreia, até porque foi gradual e mantém alguns elementos dos poemas iniciais, mas diria que a sua poesia se foi tornando cada vez mais depurada, mais despida de artifícios, mais lapidar e mais potente”, reflete José Mário Silva, crítico literário que, em 2017, coordenou a antologia “Os Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos” (Companhia das Letras). Entre estes encontra-se um poema dela, extraído do livro “Um Pouco Acima do Lugar Onde Melhor Se Escuta o Coração” (Artefacto, 2015), no qual se lê: “As fúrias do vulcão são amadas/ por quem ele despe e desfeia/ (A lava, creem, é a pura língua/ do diabo que beija o sovaco.)/ (...) Mas a mim ninguém me ama/ Como um prometeu incapaz do fogo,/ sóbrio sísifo subo a encosta/ e escrevo tensos versos que coxeiam.”

José Mário Silva escolheu-o “por razões de lógica interna da antologia”, mas vê nele “elementos essenciais” que percorrem a produção da poeta, como “o carácter explosivo e expansivo (vulcão), o diálogo com outras artes, a intertextualidade, o esplendor da matéria e do corpo na sua mais radical animalidade”. “O que a distingue é um certo carácter visceral, uma capacidade de fazer do corpo escrita e da escrita corpo, uma espécie de pulsação que atravessa todos os seus textos. Seja poesia ou prosa, há neles uma espécie de incandescência, um abrir de caminhos sumptuosos, um saber olhar de frente ‘o labor excessivo da beleza’”, explica o crítico.

Para a escrita, Andreia C. Faria acrescentou o ‘C’ à sua assinatura. Urgia distinguir a poeta da jornalista formada na Universidade do Porto e que chegou a estagiar na secção de Cultura do “Jornal de Notícias”, embora aquele não fosse o seu lugar. “Logo que entrei na faculdade percebi que não tinha olhado bem para o currículo, muito virado para os novos meios, multimédia, edição de áudio e vídeo. E muito pouco para a escrita. Fiz o curso sabendo que aquilo não era o que tinha em mente”, recorda. No contexto de uma das cadeiras criou o blogue “Muita Letra”, onde vertia textos sobre livros e literatura. E essa constante atualização sobre o que as editoras iam lançando criou as condições para, ao longo de quatro anos, trabalhar na livraria Leitura, recebendo “uma verdadeira formação” na companhia de livreiros experientes. Não por acaso, atualmente é coordenadora editorial da ESAD Idea, ainda que, até julho, usufrua de uma bolsa de criação literária atribuída pela DGLAB.

Outra grande fonte de ‘nutrientes’ poéticos foi um mestrado em estudos anglo-americanos, feito na Universidade do Porto e então dirigido por Ana Luísa Amaral. Ali descobriu autoras importantes, como Sylvia Plath ou Emily Dickinson. Aprofundou também a teoria feminista, o que naquele momento “fazia mais sentido do que agora”. “Nestes dez anos, as coisas passaram de uma certa marginalidade para um certo mainstream que ultrassimplificou a luta das mulheres, retirando-lhe as contradições. O lado de demarcação do espaço individual não me interessa. O feminismo é uma questão de direitos cívicos”, nota, observando que a expressão ‘poeta feminista’ não é mais do que “outra forma de limitar as mulheres e de lhes tirar força, de as pôr dentro de um saco para que não incomodem, diluindo e apagando a sua especificidade”.

Relevante é igualmente que se considere uma autora política apenas num sentido muito lato. Andreia não se revê numa poesia-manifesto, que seja “um lugar de certezas, de slogans, de murais ou de didatismos”. A poesia intervém, mas subterraneamente, e talvez por isso ela prefira nem sequer ser apelidada de poeta. “Considero-me escritora, a palavra ‘poeta’ provoca-me pudor. Vejo-me sobretudo como alguém que trabalha com a imaginação, talvez de um modo mais extremo. O espaço do poeta não é o de aparecer como poeta, é o dos livros e do confronto silencioso com os leitores, na página. Desconfio da ideia de ser poeta. É uma jarretice”, sublinha.

Escrever poesia é, acima de tudo, um trabalho de estranheza, “de distância do que estamos a observar, de estranhamento da língua em relação aos seus eixos mais formatados”. É tirar a língua dos eixos, o que para Andreia significa uma certa ferocidade e impiedade, uma crueza (não misantrópica), um rasgão, um confronto “corpo a corpo”. Em Andreia C. Faria, escrever não tem a ver com o desabafo das próprias obsessões. Não é uma poeta da neurose urbana contemporânea. “Até posso ser, mas não o vou publicar.” Há dias, na exposição sobre Eugénio de Andrade na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, chamou-lhe a atenção o poema “Requiem a Pasolini”. “A primeira versão é péssima, porque é um desabafo. Ele trabalha-o ao longo de sete versões, e a última é maravilhosa”, assinala.

Para José Mário Silva, ela tem “uma poesia de uma radical originalidade e coerência, que desde muito cedo criou a sua própria dicção e léxico, uma voz lírica expansiva que vem crescendo de livro para livro, culminando na beleza crua e brutal de ‘Canina’ [Tinta da China, 2022], em que fala da ‘memória dos ossos’ e se vai definindo através de versos extraordinários.” “Canina” é esse recanto claro e escuro com ossos e arestas e sede animal, brutal e comovedor, onde “morrer é talvez mudar de luz”. Algo assim como o retorno à terra pura, suja e elementar, que se encontra andando uns quilómetros para fora da cidade. Um pouco como aconteceu à própria Andreia, nascida no Porto, mas criada numa Maia de contornos rurais.

Se a sua não era uma casa com livros — a mãe era operária têxtil e o pai metalúrgico —, a influência de uma professora primária que lhe captou uma “hipersensibilidade para a linguagem” levou a que os pais a fossem rodeando de boas leituras. O bibliotecário local também lhe emprestou vasta orientação. Já em adulta, a voz poética de Andreia carrega as referências “óbvias” de Luís Miguel Nava e Luiza Neto Jorge, diz José Mário Silva, “embora seja evidente que ela vai beber a muitas fontes e leu certamente muitos outros poetas, escapando sempre às armadilhas do epigonismo”.

Um dos nomes do futuro da poesia portuguesa, Andreia C. Faria foi, como é costume, uma aposta das pequenas editoras. “Se olharmos para o catálogo da Assírio & Alvim ou da Relógio D’Água, encontramos poetas consagrados, conhecidos. Os mais novos não chegam lá e, se chegam, é graças à aposta anterior de editoras mais pequenas. Daqui a uns anos vamos perceber, olhando para o catálogo dessas editoras, que a elas devemos o andamento da poesia.” Ela, nova mas já não tanto, sabe-o por experiência própria: “Talvez o reconhecimento pressuponha que estou no caminho de algo reconhecível, predefinido, mensurável. Pode ser que seja, pode ser que não. Nem estou empenhada em gorar as expectativas nem me pauto por elas.”

Luciana Leiderfarb, Expresso 50 n.º 3 (O futuro foi ontem - 50+50 personalidades que marcaram e vão marcar o país e o mundo), 2023-03-03. Disponível em https://expresso.pt/50anos/100-personalidades/2023-03-09-Andreia-C.-Faria-com-a-lingua-fora-dos-eixos--uma-das-50-vozes-do-futuro-escolhidas-pelo-Expresso--ed67f663

 

***


Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
– Fernando Assis Pacheco


Um desejo tão espúrio, escrever,
quando a monte tem andado tudo.
Nada do que importa está escrito, só repousa
a intensa sombra dos seus olhos
entre o seco arvoredo dos signos.
É tão estranho viver, tão roubado
às flores, ao sono, ao vinho, quanto mais
esta vaidade do que nunca teve brilho
mas empluma a linguagem
pelas falhas do que outros dizem.

Tinha passado anos a talhar madeira
alumbrada e rosa, quase viva, enquanto
no rosto a ilusória imobilidade
do fogo me dava a impressão de existir.
Sabia como recrudesce o tempo
em redor dos materiais — cada hora
uma navalha suja, cada imagem
uma joia deletéria, o mar
lavrando pelas ondas a sua cicatriz.

Quis sofrer o mel, metáforas ocultas,
espécies rebentando-me por dentro
com os seus anzóis extintos. Nada mais
cretino, já que à vista começava a apodrecer
a infância, os frascos a estalar, a carne
rigorosa, uma arca desfalcada por invernos
e famílias vagamente nucleares.
E eu não via, eu queria estar à sombra e escrever
mulheres no esquema dos meus dias,
mulheres cujo coração se abate, o meu
estético sentido era o terror. Eu via e não via,
e de livros e mulheres só queria
erguê-los como grandes naus

e escrevia. Escrevo ainda,
qual aranha com as patas na penumbra.
Escrevo as coisas que das mãos
me caem, rachadas e celestiais.
De óculos escuros, dou-lhes o veludo
do outono, ou da fé o roxo manto.
Faço grandes passeios a pulso. De resto,
ando a monte como tem andado tudo.


Este e outros poemas de Andreia C. Faria lidos pela própria, em https://poesia.fm/piece/andreia-c-faria-compacto/


Teresa David, 2023-11-19
https://www.facebook.com/teresa.david.904


quarta-feira, 3 de maio de 2023

A homossexualidade de Fernando Pessoa


 

A homossexualidade de Fernando Pessoa, Victor Correia

Edições Vieira da Silva, 2023


O objetivo deste livro é mostrar as formas variadas como a homossexualidade aparece tratada, implícita e explicitamente, na vasta obra de Fernando Pessoa. Por outro lado, baseando-nos na sua obra, em alguns pormenores da sua vida, em alguns textos de amigos mais próximos e conhecidos, e em alguns textos de investigadores, este livro mostra, através de uma investigação atenta e sem preconceitos, que Fernando Pessoa era homossexual.

Alguns autores e leitores, embora estando convictos disso, não lhe têm dado a devida importância. Ora, a homossexualidade de Fernando Pessoa não é algo secundário, mas sim fundamental, pois permite compreender melhor muito da obra de Fernando Pessoa, e o próprio Fernando Pessoa enquanto indivíduo. Apesar de ser homossexual, Fernando Pessoa reprimiu a sua homossexualidade, deixando nos seus escritos, muitos deles desconhecidos do grande público, determinados pormenores que aqui revelamos e explicamos.  Juntámos e relacionámos tudo como peças de um puzzle, e dividimos por diversos temas, de modo a uma compreensão mais pormenorizada e profunda.

No panorama editorial, tanto a nível nacional como internacional, não existe nenhum livro de análise específica sobre a homossexualidade de Fernando Pessoa, e portanto este é o primeiro livro que é publicado em todo o mundo, analisando exclusivamente este tema.

 

https://www.edicoesvieiradasilva.pt/livros/ensaio/ahomossexualidadedefernandopessoa

segunda-feira, 1 de maio de 2023

A Virgínia da Bretanha (crónica de Alfredo da Ponte)

 


A Virgínia da Bretanha

Num destes dias tive de ir ao Wall Mart, um pouco antes das oito da manhã. Estas conveniências de comércio aberto a balançar com os nossos horários de trabalho simplificam-nos a vida, de tal maneira que, se algum dia há um desequilíbrio neste sistema, para muita gente será uma visão do fim do mundo. Uma adaptação que muitas vezes não damos o devido valor. Graças a estas vantagens, quem não gosta de estragar tempo, segue as regras do ditado: “É de manhã que começa o dia”.

Ao entrar na loja deparei-me com a Virgínia, que vinha a sair com dois sacos de compras. Reconheci-a, claro! Mas, ao que parece, ela reconheceu-me muito mais, por ter naquela altura o meu nome debaixo da língua, e soltá-lo a bom som, mesmo ainda quando se encontrava a cerca de dez metros de distância de mim.

- Eh, Alfredo, há que anos eu não te vejo!...

- Sra. Virgínia, sempre nova!... Parece uma rapariga de vinte anos...

- Eh, hóme, isto já não é o que era...

- A mim, parece-me, que além do que era é muito mais.

Uma gargalhada dos dois lados, que durou a caminhada de ambos até ficarem frente-a-frente. Nisto, ela deixou o solo segurar os sacos, e no mesmo instante me atirou seus braços, lançando-os à minha volta.

Não resisti. Tive de fazer o mesmo. Apertou-me com metade da sua força, e o abraço demorou perto de dez segundos - o tempo suficiente para me deixar sem jeito, num espaço onde todos passam, e que sem fazer caso, toda a gente vê. Ninguém fala, mas português critica, e faz enredos.

-Os teus pequenos estão bons? Credo, já devem estar tão grandes!... a tua mulher, também...

Que sim, respondi. Perguntei-lhe pelo marido, e ela, então, contou-me que o seu companheiro havia partido deste mundo, há pouco mais de dez anos.

Lamentei, fazendo os gestos de dor, tentando mostrar a cara triste, enfim: usando aquelas expressões que devemos apresentar em momentos como aquele.

Reviveu comigo aquele dia triste, em pouco mais de um minuto; e enquanto ela falava, apreciei-a de alto a baixo sem más intenções.

Terá sido impressão minha, ou a Virgínia, realmente, não envelheceu. Tem oitenta e seis anos, com os dentes todos que Deus lhe deu. Na cabeça, o tom doirado domina de longe a cabeleira rija e farta, e as rugas ainda hesitam quando pensam em atacar-lhe. É uma sortuda.

A Virgínia é de estatura pequena, mas muito viva. Sempre assim foi. Impunha respeito aos colegas de trabalho, e seria capaz de lançar um soco, ou uma punhada, sopapos ou pontapés, fosse a quem fosse, sem avisar.

Na sua Bretanha, em São Miguel, era campesina. Por isso, na América sempre cuidou do seu quintal nas horas vagas, tirando dele a mais variada colheita de frutas e vegetais.

Por sua vez, o marido, por aquilo que ela me dizia, há pouco mais de vinte e cinco anos, cuidava das lides domésticas. Porque se reformara aos cinquenta e tal, estava em casa à espera da terceira idade da mulher para lhe fazer companhia. Embora estivesse a tomar conta da casa, era ele quem vestia as calças, porque a Virgínia só usou saias toda a vida. É de realçar o fato das calças do Manuel andarem sempre bem seguras ao corpo, porque para além de usar cinto, ele não saía à porta da rua sem lhe acrescentar os suspensórios.

Nas horas vagas, quando as lides caseiras estavam adiantadas, o Manuel dedicava-se à leitura. Gostava muito de ler, sem nunca lamentar a pouca escola que teve. Possuía em casa uns dez livros, e já os havia devorado várias vezes, porque não tinha mais nada para ler. Até as publicações semanais de O Jornal, em cada semana era lidas duas ou três vezes.

Quando a Virgínia me contou isto, eu prometi oferecer-lhe alguns livrinhos. Daqueles que já não me faziam falta.

Dito e feito. Uns dias depois entreguei à Virgínia cerca de uma dúzia. O marido consolou-se, e a alegria dele, descrita pela esposa, foi como se estivesse nas ilhas, naquele tempo, recebendo uma saca de roupa da América, com “candins” e tudo. Não se fartou de agradecer.

Agarrou-se, com unhas e dentes, pelo menos por uma semana, ao trabalho do Dr. Mário Moura, intitulado “Os moinhos da ribeira Grande”. Depois, chegou ao meu conhecimento que ele queria ter uma conversa comigo, para falarmos de levadas, rodizes, eixos, pedras, milhos e farinhas. Tudo fiz para que esta reunião não se realizasse. Será que ele pensava que eu era moleiro? Moleiro, não; fuseiro, sim, com todo o gosto. Com muitas graças a Deus, livrei-me da conversa das mós.

O Manuel quando era rapazote brincou muitas vezes nos arredores do moinho de vento do Pico Vermelho, na Ajuda da Bretanha. Aquele que há poucos anos foi restaurado e, como hoje se vê, faz-nos lembrar do Moulin Rouge de Paris, pelas suas cores, claro; onde predomina o vermelho em cima do branco. Já, agora, podiam adicionar-lhe o azul. Ás velas, talvez. É que se formos a aprofundar as coisas vamos acabar ao lado da teoria que defende que as raízes dos bretões micaelenses vieram da Bretanha francesa; e os inhames de Portugal Continental, que sendo também raízes, foram os portugueses que ensinaram os bretões a cultivar.

Com cinquenta e tal anos de América, a Virgínia só foi aos Açores uma vez, e diz à boca-cheia que não tem saudades nenhumas. Para ela pouco importa se a Ajuda e o Pilar são outras duas freguesias independentes, tal como já eram os Remédios desde 1960. Para ela tudo isto é, e sempre há-de ser, a Bretanha. João Bom também está lá metido. Porque é João Bom. Se fosse João Mau, haveria de ficar para os lados de Rabo de Peixe.

O Manuel vê a coisa de maneira diferente. Nas três vezes que lá foi, sozinho, descuidou-se das datas de regresso, e as viagens de retorno lhe saíram muito mais caras.  

Numa daquelas vezes em que lá se encontrava, um amigo convidou-o a ir ao mercado das rezes, na Ribeira Grande, num domingo de manhã. Isto, lá pelos finais da década de setenta.

Aceitando, com todo o gosto, o homem ficou maravilhado com o movimento do mercado agrícola, pelas seis da manhã, devido ao alvoroço das gentes e com os altos pregões dos vendedores. Porém, o que mais o impressionou foi que dali a pouco mais de meia hora já estava tudo calmo!

Dali, da praça, atravessaram a rua e foram ao mercado dos porcos. Outro alvoroço. Um endoidecimento.

O amigo do Manuel comprou quatro leitões. Quatro “marrãos do norte”, como se dizia; e o Manuel fez questão de comprar um. Todo pretinho, menos as orelhas e a rabiça, que era pequena. Se a Virgínia soubesse, fazia um grande leilão, e dava-lhe com o marrão pela cara, até lhe partir o nariz!

Dali, foram à loja do Amâncio, às favas. Meiozinho de vinho a cada um, e um prato de favas para os dois.

Marrãos para baixo, marrãos para cima. Estando mais calmo, Manuel pensou que não poderia trazer o porquinho para a América. Mas era tão riquinho, e desejava que não lhe acontecesse mal nenhum. Por isso decidiu oferecê-lo ao amigo, que já tinha quatro.

Afinal, como eram todos irmãos, deviam crescer juntos. Bendita porca foi aquela de Água de Pau, que fez questão de furar o Pico para ir à Ribeira Grande – a terra das oportunidades.

Para não perdermos mais tempo com esta estória, importa-nos deixar claro que estes descuidos do Manuel da Bretanha eram causados pelos frequentes ataques da saudade. Se a Virgínia não fosse capaz de controlar a situação em cada momento de desastre, o Manuel teria perdido o sentido da vida, há muitos, muitos anos.

Duas semanas depois de eu ter entregue os livros à Virgínia, num daqueles dias, ela chegou ao trabalho maldisposta.

Perguntei-lhe se estava tudo nos conformes. Ela olhou para mim furiosa, e avançou na minha direção com ar de guerreira. Inspirou fundo, e despregou-se com esta conversa:

- Tu, nunca mais me tragas livros p’ró meu home!... Ele mete-se a ler o dia todo, e as coisas de casa ficam por fazer... Eu tive uma briga com ele por causa disso...

Eis mais um exemplo de como um benfeitor se transforma em culpado de certos dramas familiares.

Condenei-me, então, a mim mesmo, e fiz todo o possível para a Virgínia soltar um sorriso. Pregou-me um empurrão, e desatou à gargalhada. Viva! A Virgínia estava de volta!

Nestes escassos minutos do reencontro com a Virgínia vieram tantas recordações à mente. Se eu tivesse dado fio à meada teria várias horas de conversa que me trariam anos de boas recordações. Mas como o tempo é marcante e cada segundo conta, tive de pôr termo ao diálogo, com a desculpa de ter que ir trabalhar.

A verdade é que estes escassos minutos, que nem chegaram a quatro, trouxeram-me um pouco de felicidade para o dia todo. Talvez nem a própria conversa tenha sido a responsável, ficando em seu lugar o primeiro sorriso, ou a gaitada. A festa da Virgínia. Sim, foi isso:

A festa que a Virgínia fez quando me viu proporcionou-me um dia feliz.

Haja saúde!

 

Os inhames da Bretanha
Regalam o coração,
Alegram quem os apanha,
Fazem boa refeição!

No teu moinho de vento
Do milho se fez farinha.
Porque o pão era o sustento
Da nossa humilde casinha.

Os inhames e as batatas,
Quando está o tempo fresco
Valem as mesmas patacas,
São do mesmo parentesco.

 

Crónica de Alfredo da Ponte (EUA).

Diário dos Açores, 11-04-2023